terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Tipos de tutela urgente de direitos, liberdades e garantias. Importância histórica e actual tendo em conta a subjectivização do contencioso administrativo.



A tutela dos particulares, como é sabido, é um ponto de chegada do actual direito administrativo, jamais tendo sido concebido como um ponto de partida. Relembre-se e retome-se a psicanalise histórica do direito administrativo. Sendo configurado inicialmente como um conceito misto entre julgar e administrar, o direito administrativo não previa qualquer tipo de garantia dos particulares. A sua evolução foi demonstrativa de que só gradualmente tais garantias dos particulares foram surgindo: primeiro, mas ainda de modo algo nebuloso com a “justiça delegada”[1]; depois com a jurisdicionalização do contencioso; mais tarde seguida da constitucionalização do contencioso[2]; e que por esse motivo levou ao último estágio de europeização do contencioso administrativo[3].
Nesta evolução cronológica (e também lógica), decisivos foram os momentos em que as garantias dos particulares face a Administração se intensificaram. Parte-se por isso, no âmbito deste artigo, da constitucionalização do contencioso. Afirma o Prof. Vasco Pereira da Silva, que com a constitucionalização do contencioso a “protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, implica a existência de meios processuais adequados (a título principal, cautelar e executivo) à tutela de cada uma dessas posições de vantagem”[4]. Tutela essa, que entre nós surge pela Constituição de 1976 e se concretiza na reforma de 2004, altura em que se encerra a questão de divergência entre o texto e a realidade constitucional. Infira-se que a presente reforma institui um sistema coerente e linear com as garantias dos particulares, aplicando um modelo mais apto à tutela judicial plena e efectiva dos direitos dos particulares. A europeização do contencioso administrativo tem sido também, e cada vez mais, um factor extrínseco aos Estados-Membros, que tem permitido a aproximação de soluções. As normas supraestaduais bem como aquelas que, embora de âmbito interno, visam alcançar uma harmonia legislativa comunitária, tem sido fundamentais na construção deste contencioso administrativo europeu. É no cenário europeu, neste processo de europeização do contencioso, que refere Fausto Quadros que a “concessão de providências cautelares pelos tribunais estaduais para a protecção provisória de direitos subjectivos baseados no direito comunitário constitui mais um domínio e dos mais arrojados, do direito comunitário que deve a sua criação à jurisprudência do tribunal de justiça” sendo “o instrumento mais importante (…) da euripeização[5].

Efectivamente a subjectivização do direito administrativo, que levou posteriormente ao contencioso administrativo é fruto de uma gradual, progressiva e lenta evolução do sistema, o qual é ainda influenciado pelas várias transformações dos modelos de Estado. Cabe aferir, no âmbito da presente analise, de que forma contribuem as providências cautelares para a tutelados particulares. Toma-se por isso foco, na relação jurídica entre a Administração e os particulares, ou destes entre si. Partindo deste ponto, será fulcral determinar a importância das providências cautelares e quais os seus impactos na tutela jurídica dos direitos dos particulares.

A subjectivização que supra mencionei, veio de modo claro e inequívoco da nossa Constituição. Refere-se no seu art.20º/5 que “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra meças ou violações desses direitos”. Segundo o disposto nesta norma, a lei deve concretizar e assegurar estes “procedimentos judicisais (…) de modo a obter a tutela efectiva” dos seus administrados.

A celeridade e prioridade são conceitos que o legislador do CPTA, tomou em foco em vista da protecção de direitos, liberdades e garantias. Nesta lógica, foi criado no CPTA, dois tipos de tutela urgente de direitos, liberdades e garantias. A tutela cautelar (provisória, que se encontra estatuída no art.131ºCPTA) e a tutela definitiva (concretizada nos artigos 109º a 111º do CPTA).  O critério de distinção entre os tipos de tutela urgente passa pela subsidiariedade desta última, relativamente à tutela cautelar. A própria letra do artigo 109º/1 CPTA é alusiva à indicação dessa subsidiariedade, pois a intimação só é admitida quando à Administração se imponha “a adopção de uma conduta positiva ou negativa” que seja “indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível” recorrer à tutela cautelar, prevista no art.131ºCPTA.

Conclui-se desta forma que, para que, a intimação do art.109º procede é necessário que o particular, justifique a insuficiência do decretamento provisório da providência cautelar. Assinala (e bem) Lisa Pinto de Sousa Ferreira[6] que os pressupostos do art.111ºCPTA, são idênticos aos do art.131ºCPTA, pois em ambos se prevê a necessidade de uma solução em “tempo útil” para a tutela de direitos, liberdades e garantias que não possa ser exercida de uma outra forma[7]. Por isso afirma o Mestre Tiago Antunes, nas suas aulas práticas, que o art.109º e o art.131º do CPTA “articulam-se, não pela urgência (que é manifesta em ambos os artigos), mas sim, pela definitividade ou não”[8]. Assim estes dois tipos de tutela distinguem-se não só pela subsidiariedade mas também pela definitividade. Em termos objectivos, o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (art.109ºCPTA) é um processo principal e não cautelar, no qual ao tribunal é pedido que este imponha, em termos de urgência, a adapção de um acto negativo ou positivo, à Administração[9]. Por seu turno, o decretamento provisório da providência, não é específico, e aplica-se por isso a toda e qualquer providência cautelar. Nas palavras do Mestre Tiago Antunes, “destina-se a acautelar o próprio processo cautelar”.

Não obstante das distinções entre as figuras, cabe apreciar a sua importância no contexto actual, tomando em consideração a evolução histórica supra mencionada. Ressalta desde logo da própria Constituição Portuguesa, no seu art.266º/1 que a Administração deve actuar com “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Este é do ponto de vista da importância de tais figura o ponto de partida. A possibilidade de a Administração, no seu actuar, vir a lesar direitos, garantias ou liberdades dos particulares, sem que estes em tempo útil, possa recorrer dos normais procedimentos, leva a que os mecanismos urgentes tenham sentido prático e se demonstrem lineares com este preceito constitucional. De outra forma, poderíamos ser levados, mais uma vez, à semelhança do que aconteceu antes da reforma de 2004, a não conseguir um alcance material, daquilo que formalmente se dispõe na Constituição. Todavia isso não se verifica, e o legislador do CPTA acautelou essa realidade.
Noutra vertente, enunciada por Lisa Pinto de Sousa Ferreira, o principio enunciado no art.266º/1 CRP, “permite o controlo jurisdicional, na medida em que diminuem as zonas de livre apreciação administrativa”[10]. Esta conclusão necessita no entanto de ser complementada, lançando mão nas normas constitucionais, enunciadas pelos artigos 266º/2 e 268º/3, onde se impõe à Administração o dever de actuar com respeito aos princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé; e onde se exige o dever de fundamentação expressa dos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, respectivamente. O conjunto destes princípios, impede a livre margem de apreciação, e por isso, actuação, da Administração. A sua autonomia de actuação encontra deste modo, estes “princípios-limite”, não permitindo uma actuação administrativa que os estravasse.

É no entanto, nos termos do art.268º/4 da Constituição, que verdadeiramente se consagra a importância destes mecanismos urgentes de tutela. Veja-se minuciosamente o que aí se dispõe. Em primeiro lugar, é dada garantia aos administrados a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Relembrando a evolução histórica do contencioso administrativo, bem se pode dizer, que esta consagração é o apogeu da vertente subjectivista do contencioso. Todos os direitos e interesses legalmente protegidos, cabem no sentido da norma, e é pela própria letra da lei que leva a esta conclusão. Em segundo lugar, a norma do nº4 do art.268º CRP refere ainda que a tutela incide, sobre o “reconhecimento desses direitos ou interesses”, permitindo “a impugnação de quaisquer actos que os lesem, independentemente da sua forma”, sendo ainda de admitir “a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos” e tutelando-se tais direitos, liberdades e garantias, pela “adopção de medidas cautelares adequadas”. O preceito, abrangente como é, dispõe de forma clara, directa e inequívoca que é garantido aos administrados a possibilidade de recorrer às medidas cautelares adequadas, a fim de proteger os seus direitos e interesses, desde de que, legalmente previstos.

Neste seguimento, é possível concluir, que os procedimentos urgentes, tais como a intimação e a providência cautelar, são concretizações legais, de princípios e garantias constitucionais, que surgiram com a constitucionalização do contencioso administrativo, permitindo aos particulares, além dos típicos modos de reagir à actuação de Administração, formais mais úteis e eficazes de acautelar os seus direitos, se, por uma questão de tempestividade, for necessário reagir urgentemente, sob o perigo de haver um dano cuja lesão se tornará irreversível.  

Diogo Duarte
Nº 18107


[1] Relembre-se que neste âmbito existiam duas vertentes da Administração que se procuravam conciliar: as exigências da supremacia da vontade da Administração, e as exigências jurisdicionais de garantia dos particulares. Parece que esta é até uma desconsideração feita pelo Professor Vasco pereira da Silva, para quem os pretensos direitos subjectivos inexistentes, não sendo nada mais do que um “nomen iuris”. Vide Vasco Pereira da Sila, O contencioso administrativo no divã da psicanalise, pág.28 e ss.
[2] Numa dupla vertente: por um lado a independência e plenos poderes do juiz fase à administração e por outro, a protecção efectiva das garantias dos particulares.
[3] Repare-se que a constitucionalização do Contencioso Administrativo, permitiu a diluição das concepções então vigentes como seriam as alemãs e francesas, e entre as continentais e anglo-saxónicas, o que permitiu a posterior europeização do contencioso.
[4] Vide Vasco Pereira da Sila, O contencioso administrativo no divã da psicanalise, pág.92 e ss.
[5] Apud, Fausto de Quadros, “A Nova Dimensão do D.A. – o Direito A. P. Na P. C.”, cit., p.30.
[6] Lisa Pinto de Sousa Ferreira – “Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: contencioso administrativo e tutela efectiva da urgência”, Curso de Mestrado 2001/2002.
[7] A diferente entre o disposto é pouco relevante face à ratio da norma. No art.109º/1CPTA, fala-se numa tutela “indispensável para assegurar o exercício”; quanto no art.131º/1CPTA se refere que à tutela de direitos que “de outro modo não possam ser exercidos”.
[8] No mesmo sentido, Acórdão TCAN de 26/10/2006 – "meio processual regulado nos arts.109º a 11º do CPTA constitui um processo autónomo que implica a emissão duma decisão definitiva e destina-se a dar cumprimento à exgiência ditada pelo art.20.º, n.º5 da CRP" 
[9] Neste sentido, vide acórdão do TCAN de 25/01/2007.
[10] Lisa Pinto de Sousa Ferreira – “Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: contencioso administrativo e tutela efectiva da urgência”, Curso de Mestrado 2001/2002.

Sem comentários:

Enviar um comentário