A tutela dos particulares, como é
sabido, é um ponto de chegada do actual direito administrativo, jamais tendo
sido concebido como um ponto de partida. Relembre-se e retome-se a psicanalise
histórica do direito administrativo. Sendo configurado inicialmente como um
conceito misto entre julgar e administrar, o direito administrativo não previa
qualquer tipo de garantia dos particulares. A sua evolução foi demonstrativa de
que só gradualmente tais garantias dos particulares foram surgindo: primeiro,
mas ainda de modo algo nebuloso com a “justiça delegada”[1];
depois com a jurisdicionalização do contencioso; mais tarde seguida da
constitucionalização do contencioso[2];
e que por esse motivo levou ao último estágio de europeização do contencioso administrativo[3].
Nesta evolução cronológica (e
também lógica), decisivos foram os momentos em que as garantias dos
particulares face a Administração se intensificaram. Parte-se por isso, no
âmbito deste artigo, da constitucionalização do contencioso. Afirma o Prof.
Vasco Pereira da Silva, que com a constitucionalização do contencioso a “protecção
plena e efectiva dos direitos dos particulares, implica a existência de meios
processuais adequados (a título principal, cautelar e executivo) à tutela de
cada uma dessas posições de vantagem”[4].
Tutela essa, que entre nós surge pela Constituição de 1976 e se concretiza na
reforma de 2004, altura em que se encerra a questão de divergência entre o
texto e a realidade constitucional. Infira-se que a presente reforma institui
um sistema coerente e linear com as garantias dos particulares, aplicando um
modelo mais apto à tutela judicial plena e efectiva dos direitos dos particulares.
A europeização do contencioso administrativo tem sido também, e cada vez mais,
um factor extrínseco aos Estados-Membros, que tem permitido a aproximação de
soluções. As normas supraestaduais bem como aquelas que, embora de âmbito interno,
visam alcançar uma harmonia legislativa comunitária, tem sido fundamentais na
construção deste contencioso administrativo europeu. É no cenário europeu,
neste processo de europeização do contencioso, que refere Fausto Quadros que a “concessão
de providências cautelares pelos tribunais estaduais para a protecção
provisória de direitos subjectivos baseados no direito comunitário constitui
mais um domínio e dos mais arrojados, do direito comunitário que deve a sua
criação à jurisprudência do tribunal de justiça” sendo “o instrumento mais
importante (…) da euripeização[5].
Efectivamente a subjectivização
do direito administrativo, que levou posteriormente ao contencioso
administrativo é fruto de uma gradual, progressiva e lenta evolução do sistema,
o qual é ainda influenciado pelas várias transformações dos modelos de Estado.
Cabe aferir, no âmbito da presente analise, de que forma contribuem as
providências cautelares para a tutelados particulares. Toma-se por isso foco,
na relação jurídica entre a Administração e os particulares, ou destes entre
si. Partindo deste ponto, será fulcral determinar a importância das providências
cautelares e quais os seus impactos na tutela jurídica dos direitos dos
particulares.
A subjectivização que supra
mencionei, veio de modo claro e inequívoco da nossa Constituição. Refere-se no
seu art.20º/5 que “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais,
a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade
e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra meças ou
violações desses direitos”. Segundo o disposto nesta norma, a lei deve
concretizar e assegurar estes “procedimentos judicisais (…) de modo a obter a
tutela efectiva” dos seus administrados.
A celeridade e prioridade são
conceitos que o legislador do CPTA, tomou em foco em vista da protecção de
direitos, liberdades e garantias. Nesta lógica, foi criado no CPTA, dois tipos
de tutela urgente de direitos, liberdades e garantias. A tutela cautelar
(provisória, que se encontra estatuída no art.131ºCPTA) e a tutela definitiva (concretizada
nos artigos 109º a 111º do CPTA). O
critério de distinção entre os tipos de tutela urgente passa pela subsidiariedade
desta última, relativamente à tutela cautelar. A própria letra do artigo 109º/1
CPTA é alusiva à indicação dessa subsidiariedade, pois a intimação só é
admitida quando à Administração se imponha “a adopção de uma conduta positiva
ou negativa” que seja “indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil,
de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível” recorrer à tutela
cautelar, prevista no art.131ºCPTA.
Conclui-se desta forma que, para
que, a intimação do art.109º procede é necessário que o particular, justifique
a insuficiência do decretamento provisório da providência cautelar. Assinala (e
bem) Lisa Pinto de Sousa Ferreira[6]
que os pressupostos do art.111ºCPTA, são idênticos aos do art.131ºCPTA, pois em
ambos se prevê a necessidade de uma solução em “tempo útil” para a tutela de
direitos, liberdades e garantias que não possa ser exercida de uma outra forma[7].
Por isso afirma o Mestre Tiago Antunes, nas suas aulas práticas, que o art.109º
e o art.131º do CPTA “articulam-se, não pela urgência (que é manifesta em ambos
os artigos), mas sim, pela definitividade ou não”[8].
Assim estes dois tipos de tutela distinguem-se não só pela subsidiariedade mas também
pela definitividade. Em termos objectivos, o processo de intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias (art.109ºCPTA) é um processo principal
e não cautelar, no qual ao tribunal é pedido que este imponha, em termos de
urgência, a adapção de um acto negativo ou positivo, à Administração[9].
Por seu turno, o decretamento provisório da providência, não é específico, e
aplica-se por isso a toda e qualquer providência cautelar. Nas palavras do
Mestre Tiago Antunes, “destina-se a acautelar o próprio processo cautelar”.
Não obstante das distinções entre
as figuras, cabe apreciar a sua importância no contexto actual, tomando em
consideração a evolução histórica supra mencionada. Ressalta desde logo da
própria Constituição Portuguesa, no seu art.266º/1 que a Administração deve
actuar com “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos”. Este é do ponto de vista da importância de tais figura o ponto de
partida. A possibilidade de a Administração, no seu actuar, vir a lesar
direitos, garantias ou liberdades dos particulares, sem que estes em tempo
útil, possa recorrer dos normais procedimentos, leva a que os mecanismos
urgentes tenham sentido prático e se demonstrem lineares com este preceito constitucional.
De outra forma, poderíamos ser levados, mais uma vez, à semelhança do que
aconteceu antes da reforma de 2004, a não conseguir um alcance material,
daquilo que formalmente se dispõe na Constituição. Todavia isso não se
verifica, e o legislador do CPTA acautelou essa realidade.
Noutra vertente, enunciada por
Lisa Pinto de Sousa Ferreira, o principio enunciado no art.266º/1 CRP, “permite
o controlo jurisdicional, na medida em que diminuem as zonas de livre
apreciação administrativa”[10].
Esta conclusão necessita no entanto de ser complementada, lançando mão nas
normas constitucionais, enunciadas pelos artigos 266º/2 e 268º/3, onde se impõe
à Administração o dever de actuar com respeito aos princípios da igualdade,
proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé; e onde se exige o dever de
fundamentação expressa dos actos que afectem direitos ou interesses legalmente
protegidos, respectivamente. O conjunto destes princípios, impede a livre
margem de apreciação, e por isso, actuação, da Administração. A sua autonomia
de actuação encontra deste modo, estes “princípios-limite”, não permitindo uma
actuação administrativa que os estravasse.
É no entanto, nos termos do
art.268º/4 da Constituição, que verdadeiramente se consagra a importância
destes mecanismos urgentes de tutela. Veja-se minuciosamente o que aí se
dispõe. Em primeiro lugar, é dada garantia aos administrados a tutela
jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Relembrando
a evolução histórica do contencioso administrativo, bem se pode dizer, que esta
consagração é o apogeu da vertente subjectivista do contencioso. Todos os
direitos e interesses legalmente protegidos, cabem no sentido da norma, e é
pela própria letra da lei que leva a esta conclusão. Em segundo lugar, a norma
do nº4 do art.268º CRP refere ainda que a tutela incide, sobre o “reconhecimento
desses direitos ou interesses”, permitindo “a impugnação de quaisquer actos que
os lesem, independentemente da sua forma”, sendo ainda de admitir “a
determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos” e
tutelando-se tais direitos, liberdades e garantias, pela “adopção de medidas
cautelares adequadas”. O preceito, abrangente como é, dispõe de forma clara,
directa e inequívoca que é garantido aos administrados a possibilidade de
recorrer às medidas cautelares adequadas, a fim de proteger os seus direitos e
interesses, desde de que, legalmente previstos.
Neste seguimento, é possível
concluir, que os procedimentos urgentes, tais como a intimação e a providência
cautelar, são concretizações legais, de princípios e garantias constitucionais,
que surgiram com a constitucionalização do contencioso administrativo,
permitindo aos particulares, além dos típicos modos de reagir à actuação de
Administração, formais mais úteis e eficazes de acautelar os seus direitos, se,
por uma questão de tempestividade, for necessário reagir urgentemente, sob o
perigo de haver um dano cuja lesão se tornará irreversível.
Diogo Duarte
Nº 18107
[1]
Relembre-se que neste âmbito existiam duas vertentes da Administração que se
procuravam conciliar: as exigências da supremacia da vontade da Administração,
e as exigências jurisdicionais de garantia dos particulares. Parece que esta é
até uma desconsideração feita pelo Professor Vasco pereira da Silva, para quem
os pretensos direitos subjectivos inexistentes, não sendo nada mais do que um
“nomen iuris”. Vide Vasco Pereira da Sila, O contencioso administrativo no divã
da psicanalise, pág.28 e ss.
[2]
Numa dupla vertente: por um lado a independência e plenos poderes do juiz fase
à administração e por outro, a protecção efectiva das garantias dos
particulares.
[3]
Repare-se que a constitucionalização do Contencioso Administrativo, permitiu a
diluição das concepções então vigentes como seriam as alemãs e francesas, e entre
as continentais e anglo-saxónicas, o que permitiu a posterior europeização do
contencioso.
[4]
Vide Vasco Pereira da Sila, O contencioso administrativo no divã da
psicanalise, pág.92 e ss.
[5] Apud,
Fausto de Quadros, “A Nova Dimensão do D.A. – o Direito A. P. Na P. C.”, cit.,
p.30.
[6]
Lisa Pinto de Sousa Ferreira – “Intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias: contencioso administrativo e tutela efectiva da
urgência”, Curso de Mestrado 2001/2002.
[7]
A diferente entre o disposto é pouco relevante face à ratio da norma. No
art.109º/1CPTA, fala-se numa tutela “indispensável para assegurar o exercício”;
quanto no art.131º/1CPTA se refere que à tutela de direitos que “de outro modo
não possam ser exercidos”.
[8]
No mesmo sentido, Acórdão TCAN de 26/10/2006 – "meio processual regulado nos arts.109º a 11º do CPTA constitui um processo autónomo que implica a emissão duma decisão definitiva e destina-se a dar cumprimento à exgiência ditada pelo art.20.º, n.º5 da CRP"
[9]
Neste sentido, vide acórdão do TCAN de 25/01/2007.
[10]
Lisa Pinto de Sousa Ferreira – “Intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias: contencioso administrativo e tutela efectiva da
urgência”, Curso de Mestrado 2001/2002.
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