quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Declaração de Ilegalidade com Força Obrigatória Geral



A primeira questão que se coloca aquando do estudo dos pressupostos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral diz respeito ao objecto deste mecanismo impugnatório. Com a publicação do CPTA desaparecem em definitivo as distinções de regime jurídico, baseadas no autor, das normas que, desde o aparecimento do contencioso regular no século XIX, caracterizavam o sistema português.
Assim, quaisquer normas emanadas ao abrigo de direito administrativo, artigo 72º, nº1 do CPTA, podem ser objecto de impugnação contenciosa. Apesar de aparentemente claro, esta norma levanta um conjunto de questões.

Em primeiro lugar, cabe saber quais os regulamentos que integram a noção prevista no artigo, ou seja, saber em que circunstâncias nos deparamos com normas emanadas ao abrigo de disposições administrativas. A questão pode ser delicada no que diz respeito ao autor da norma, especialmente se for tida em conta a tendência para a privatização de actuações administrativas. No fundo, trata-se de uma questão de Direito Administrativo substantivo, relativo à noção de regulamento administrativo.
Entende-se que o sentido a atribuir ao nº1 do art. 72º é o de incluir todas as normas emitidas no exercício da função administrativa, por qualquer entidade, pública ou privada. Trata-se, na realidade, de retirar todas as conclusões do critério que, não obstante alguns alargamentos e restrições, preside à definição do âmbito da jurisdição administrativa pelo ETAF/2002: o exercício da função administrativa. Assim sendo, é extremamente útil o conteúdo que se retira do artigo 4º do Estatuto. Na alínea b) do nº1 encontra-se consagrada a competência dos tribunais administrativos para a “fiscalização das normas (...) emanadas por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições do direito administrativo”, enquanto a alínea d) do mesmo numero dá a conhecer da “legalidade das normas (…) praticadas por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
Em suma, pode incluir-se na previsão do art. 72º/1 as normas produzidas no desempenho da função administrativa por concessionários, sociedades de capitais públicos, empresas públicas, associações públicas e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa. Em muitos casos, tratam-se de entidades regulamentos já eram susceptíveis de impugnação contenciosa nos termos da LPTA. Contudo, uma vez que se passou a adoptar um regime de enumeração taxativa, art. 51º/1, c) do ETAF de 84, para um sistema de cláusula geral, tem enorme utilidade definir claramente as entidades abrangidas.
No próprio domínio do Direito Administrativo substantivo esta realidade é agora expressamente reconhecida, designadamente através de uma evolução do conceito dogmático de regulamento administrativo. O Prof. Diogo Freitas do Amaral altera a noção de regulamento que vinha até recentemente a admitir e passa a definir aquela forma de actuação administrativa como “normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei”. Como sublinha o Prof., o facto de a função administrativa ser actualmente também desempenhada por entidades de direito privado, tem de implicar como consequência lógica a possibilidade de estas poderem emanar regulamentos administrativos.

Quanto ao contencioso administrativo português deve considerar perfeitamente ultrapassada a restrição à impugnabilidade dos regulamentos administrativos internos, questão que, a título de exemplo, ainda é consensual na Alemanha federal. Por conseguinte, o único factor decisivo deve ser a produção de efeitos lesivos pela norma em causa.

O principal problema, recorrente a este respeito, relaciona-se com o conceito de norma para efeitos de impugnação junto dos tribunais administrativos. As dúvidas devem-se à dificuldade, clássica, em distinguir regulamentos administrativos de actos administrativos gerais, ou seja, actos administrativos que se aplicam de imediato a um grupo inorgânico de cidadãos determinados ou determináveis. Como forma de obviar a grande parte dos problemas processuais causados por esta discussão o CPTA introduziu algumas soluções.
Por um lado determina-se que a não impugnação de um acto geral (acto que não individualize os seus destinatários, nos termos do Código) não obsta à impugnação de eventuais actos de aplicação ou execução que identifiquem os seus destinatários, art. 52º, nº3 do CPTA. Trata-se, deveras, de excepcionar a impossibilidade de impugnação de actos meramente confirmativos, prevista no artigo 53º, evitando que o autor da acção seja penalizado pelas dificuldades de qualificação do acto geral.
Com o mesmo intuito o art. 89º, nº3, permite ao autor apresentar nova petição inicial, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, sempre que o pedido formulado não tenha sido o adequado, por erro na qualificação do acto jurídico impugnado como acto administrativo ou como norma.
São soluções que revelam utilidade mas que, na verdade, não são suficientes para eliminar definitivamente todos os inconvenientes. O artigo 52, nº3 é elucidativo quanto à qualificação dos actos gerais como verdadeiros actos administrativos, o que significa que, apesar de criar um regime mais favorável para os particulares no que respeita à inimpugnabilidade de actos meramente confirmativos, não afasta a existência de um prazo para a acção. Ora, nos casos em que não se verifiquem quaisquer actos de execução por aplicação do acto geral após a sua prática e em que o lesado confiou tratar-se de um regulamento administrativo, o decurso do prazo marca o fim das possibilidades de defesa do particular.
A resposta fica dependente da interpretação que os tribunais derem ao preceito em causa, e da noção de norma administrativa e de acto administrativo que adoptarem.

Outra matéria que o Código não parece esclarecer quanto à normas impugnáveis diz respeito à sua vigência. Ou seja, pergunta-se se o regulamento administrativo tem de estar em vigor para poder ser impugnado, ou se podem os particulares agir em juízo contra ele antes e depois de iniciada a sua vigência. Nada parece indicar negativamente. Já que está consagrada a regra da eficácia ex tunc da decisão jurisdicional, pode haver interesse na invalidação de regulamentos caducos ou revogados. Apesar de se poderem levantar algumas incertezas quanto ao destino dos actos entretanto consolidados tal não implica uma impossibilidade de per si de impugnação destes regulamentos.
            Já nos casos em que o regulamento se encontra em período de vacatio legis ou suspenso podem colocar-se algumas dúvidas quanto à possibilidade de ele produzir efeitos imediatamente, nos termos que permitem a sua impugnação por via do art. 73º, nº2. Contudo, a leitura a fazer da referencia aos efeitos imediatos da norma não deve reportar-se a uma efectiva produção imediata de efeitos lesivos, mas antes a uma susceptibilidade de, logo que em vigor, produzir imediatamente esses efeitos.

Quanto à legitimidade para a impugnação de normas com força obrigatória geral, cabe a todas as pessoas que sejam prejudicadas pela aplicação da norma ou possam previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, ao que se exige uma lesão ou lesão potencial da esfera jurídica do autor para que este possa deduzir o pedido, desde que a aplicação da norma tenha sido recusada em três casos concretos, de acordo com o art. 73º, nº1 do CPTA.

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