A primeira
questão que se coloca aquando do estudo dos pressupostos da declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral diz respeito ao objecto deste mecanismo
impugnatório. Com a publicação do CPTA desaparecem em definitivo as distinções
de regime jurídico, baseadas no autor, das normas que, desde o aparecimento do
contencioso regular no século XIX, caracterizavam o sistema português.
Assim,
quaisquer normas emanadas ao abrigo de direito administrativo, artigo 72º, nº1
do CPTA, podem ser objecto de impugnação contenciosa. Apesar de aparentemente
claro, esta norma levanta um conjunto de questões.
Em primeiro
lugar, cabe saber quais os regulamentos que integram a noção prevista no
artigo, ou seja, saber em que circunstâncias nos deparamos com normas emanadas
ao abrigo de disposições administrativas. A questão pode ser delicada no que
diz respeito ao autor da norma, especialmente se for tida em conta a tendência
para a privatização de actuações administrativas. No fundo, trata-se de uma
questão de Direito Administrativo substantivo, relativo à noção de regulamento
administrativo.
Entende-se que
o sentido a atribuir ao nº1 do art. 72º é o de incluir todas as normas emitidas
no exercício da função administrativa, por qualquer entidade, pública ou
privada. Trata-se, na realidade, de retirar todas as conclusões do critério
que, não obstante alguns alargamentos e restrições, preside à definição do
âmbito da jurisdição administrativa pelo ETAF/2002: o exercício da função
administrativa. Assim sendo, é extremamente útil o conteúdo que se retira do
artigo 4º do Estatuto. Na alínea b) do nº1 encontra-se consagrada a competência
dos tribunais administrativos para a “fiscalização das normas (...) emanadas
por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições do direito
administrativo”, enquanto a alínea d) do mesmo numero dá a conhecer da
“legalidade das normas (…) praticadas por sujeitos privados, designadamente
concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
Em suma, pode
incluir-se na previsão do art. 72º/1 as normas produzidas no desempenho da
função administrativa por concessionários, sociedades de capitais públicos,
empresas públicas, associações públicas e pessoas colectivas de utilidade
pública administrativa. Em muitos casos, tratam-se de entidades regulamentos já
eram susceptíveis de impugnação contenciosa nos termos da LPTA. Contudo, uma
vez que se passou a adoptar um regime de enumeração taxativa, art. 51º/1, c) do
ETAF de 84, para um sistema de cláusula geral, tem enorme utilidade definir
claramente as entidades abrangidas.
No próprio
domínio do Direito Administrativo substantivo esta realidade é agora
expressamente reconhecida, designadamente através de uma evolução do conceito
dogmático de regulamento administrativo. O Prof. Diogo Freitas do Amaral altera a noção de regulamento que vinha até
recentemente a admitir e passa a definir aquela forma de actuação
administrativa como “normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo
por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal
habilitada por lei”. Como sublinha o Prof., o facto de a função administrativa
ser actualmente também desempenhada por entidades de direito privado, tem de
implicar como consequência lógica a possibilidade de estas poderem emanar
regulamentos administrativos.
Quanto ao
contencioso administrativo português deve considerar perfeitamente ultrapassada
a restrição à impugnabilidade dos regulamentos administrativos internos, questão
que, a título de exemplo, ainda é consensual na Alemanha federal. Por
conseguinte, o único factor decisivo deve ser a produção de efeitos lesivos
pela norma em causa.
O principal
problema, recorrente a este respeito, relaciona-se com o conceito de norma para
efeitos de impugnação junto dos tribunais administrativos. As dúvidas devem-se
à dificuldade, clássica, em distinguir regulamentos administrativos de actos
administrativos gerais, ou seja, actos administrativos que se aplicam de
imediato a um grupo inorgânico de cidadãos determinados ou determináveis. Como
forma de obviar a grande parte dos problemas processuais causados por esta
discussão o CPTA introduziu algumas soluções.
Por um lado
determina-se que a não impugnação de um acto geral (acto que não individualize
os seus destinatários, nos termos do Código) não obsta à impugnação de
eventuais actos de aplicação ou execução que identifiquem os seus
destinatários, art. 52º, nº3 do CPTA. Trata-se, deveras, de excepcionar a
impossibilidade de impugnação de actos meramente confirmativos, prevista no
artigo 53º, evitando que o autor da acção seja penalizado pelas dificuldades de
qualificação do acto geral.
Com o mesmo
intuito o art. 89º, nº3, permite ao autor apresentar nova petição inicial, nos
termos do nº 2 do mesmo artigo, sempre que o pedido formulado não tenha sido o
adequado, por erro na qualificação do acto jurídico impugnado como acto
administrativo ou como norma.
São soluções
que revelam utilidade mas que, na verdade, não são suficientes para eliminar
definitivamente todos os inconvenientes. O artigo 52, nº3 é elucidativo quanto
à qualificação dos actos gerais como verdadeiros actos administrativos, o que
significa que, apesar de criar um regime mais favorável para os particulares no
que respeita à inimpugnabilidade de actos meramente confirmativos, não afasta a
existência de um prazo para a acção. Ora, nos casos em que não se verifiquem
quaisquer actos de execução por aplicação do acto geral após a sua prática e em
que o lesado confiou tratar-se de um regulamento administrativo, o decurso do
prazo marca o fim das possibilidades de defesa do particular.
A resposta
fica dependente da interpretação que os tribunais derem ao preceito em causa, e
da noção de norma administrativa e de acto administrativo que adoptarem.
Outra matéria
que o Código não parece esclarecer quanto à normas impugnáveis diz respeito à
sua vigência. Ou seja, pergunta-se se o regulamento administrativo tem de estar
em vigor para poder ser impugnado, ou se podem os particulares agir em juízo
contra ele antes e depois de iniciada a sua vigência. Nada parece indicar
negativamente. Já que está consagrada a regra da eficácia ex tunc da decisão jurisdicional, pode haver interesse na
invalidação de regulamentos caducos ou revogados. Apesar de se poderem levantar
algumas incertezas quanto ao destino dos actos entretanto consolidados tal não
implica uma impossibilidade de per si
de impugnação destes regulamentos.
Já
nos casos em que o regulamento se encontra em período de vacatio legis ou
suspenso podem colocar-se algumas dúvidas quanto à possibilidade de ele
produzir efeitos imediatamente, nos termos que permitem a sua impugnação por
via do art. 73º, nº2. Contudo, a leitura a fazer da referencia aos efeitos
imediatos da norma não deve reportar-se a uma efectiva produção imediata de
efeitos lesivos, mas antes a uma susceptibilidade de, logo que em vigor,
produzir imediatamente esses efeitos.
Quanto à
legitimidade para a impugnação de normas com força obrigatória geral, cabe a
todas as pessoas que sejam prejudicadas pela aplicação da norma ou possam
previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, ao que se exige uma lesão ou
lesão potencial da esfera jurídica do autor para que este possa deduzir o
pedido, desde que a aplicação da norma tenha sido recusada em três casos
concretos, de acordo com o art. 73º, nº1 do CPTA.
Sem comentários:
Enviar um comentário