A equiparação entre o acto administrativo e a sentença foi inicialmente protagonizado por Otto Meyer[1]. Para este autor o acto administrativo a que tivesse expirado o prazo de impugnação fazia caso decidido, tal como ocorria com a sentença, que após passado prazo para recurso, transita em julgado.
A questão central da nossa publicação visa obter resposta à seguinte questão: qual é o vício do acto administrativo que foi posto na ordem jurídica com base num regulamento ilegal? Se tivermos em conta o consagrado no nº 3 do art. 76º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) este determina que a norma inválida não afecta os actos administrativos que entretanto se tenham tornado inimpugnáveis. Após decorrido o prazo legal de impugnação já nada há a fazer e o acto, tal como a sentença, torna-se imutável. Em primeiro lugar, devemos elucidar que o nº 3 do 76º do CPTA parece querer admitir que existe alguma similitude com o caso decidido e caso julgado, ou melhor, o legislador ordinário inspirou-se no art. 282º da Constituição da República Portuguesa (CRP). No entanto, estas figuras em nada se identificam, excepto em que ambas referem-se a situações individuais e concretas.
Deste modo, será que o acto deve merecer a mesma protecção que o caso julgado?
É importante realçar de forma breve e resumida as diferenças entre estas duas figuras:
· Em primeiro lugar, são os juízes que têm competência para emitir sentenças e após decorrido o prazo de recurso, forma-se caso julgado. Assim está aqui ,em causa a função jurisdicional nos termos do art. 202º CRP, em que o objectivo primordial é a restauração da paz jurídica. Por sua vez, o acto administrativo provêm do exercício da função administrativa e tem em vista a prossecução do interesse público. Mais, caso o particular não esteja satisfeito com a decisão da Administração Pública, este tem sempre a possibilidade de recorrer aos meios contenciosos. Portanto, cabe aos juízes a última palavra do direito, isto é, os actos administrativos estão sujeitos ao controlo dos tribunais.
· O acto administrativo tem como objecto uma situação que ainda está a decorrer enquanto que a sentença se reporta a uma situação passada.
· A organização e o modo de funcionamento também diferem. A Administração Pública é parcial, interdependente e com uma margem de apreciação mais ampla, pois prossegue e tem em vista o interesse público. Por sua vez, os tribunais são imparciais, independentes (art. 203º da CRP) e com uma margem menor de discricionaridade.
· Por fim, a estabilidade do caso julgado goza de garantia constitucional, nos termos do art. 282º, nº3 da CRP e só pode ser revisto nas situações previstas no art. 771º do Código Processo Civil (CPC). O acto administrativo não goza desta protecção, fazendo-se referência à sua revogação no art. 141º, nº 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
Feita esta distinção cumpre retirar consequências: o caso decidido não deve ter a mesma protecção que o caso julgado e esta aproximação configura-se incorrecta.
Entendemos que o nº 3 do art. 76 está correcto ao reconhecer que os casos julgados não serão afectados pela retroactividade da declaração da ilegalidade da norma. No entanto, não concordamos que o acto administrativo inimpugnável tenha essa força. Até porque se a norma ao abrigo do qual o acto foi emanada for declarada ilegal, qual o fundamento para que o acto possa manter-se em vigor na esfera jurídica do particular, uma vez que este já não tem suporte legal. Estamos aqui perante uma invalidade consequente.
Além disso, se o acto deve obedecer à lei, tal como decorre do disposto do art. 3º do CPA, estamos aqui perante uma clara violação do princípio da legalidade.
Temos que conjugar o regime previsto no CPTA com o CPA. Nos termos do art. 133º do CPA, o seu nº 2, alínea i) afirma que são nulos “os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados (..)”. Assim, os actos sofrem de nulidade? Surge então outra questão: se são nulos, como podem ser inimpugnáveis face ao nº 3 do art. 76º do CPTA? Estamos aqui perante uma contradição entre o regime substantivo e regime processual. Já sabemos que a nulidade é invocável a todo o tempo, de acordo com o art. 134 º do CPA. Como resolver esta situação, se o legislador nada disse sobre os efeitos do acto que é atingido pela ilegalidade da norma.
A melhor solução é respeitar o princípio da proporcionalidade e analisar cada situação em concreto.
O que pensa a Doutrina acerca das consequências da “contaminação” da norma?
Carlos Blanco de Morais entende que e passa-se a citar “os actos administrativos de estrita aplicação de norma declarada nula, com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, são nulos e não meramente anuláveis”, invocando o seguinte argumento: “ a sanabilidade de um vício intrínseco de um acto administrativo nos termos do CPA, não é extensível a vícios alheios de que simultaneamente padeça por lhe serem transmitidos por uma norma inconstitucional de que o mesmo acto depende e, sem a qual, não fará sentido que o mesmo subsista”[2].
Por sua vez, o Prof. Doutor Paulo Otero[3] defende que a leitura do nº 3 do 76º do CPTA abrange qualquer um dos vícios: anulabilidade, nulidade e inexistência. Relativamente ao primeiro vício verifica-se um fenómeno de “legalização gerador de convalidação ou sanação dos efeitos”. No que toca ao acto nulo ou inexistente, estes juridificam-se, ressalvando-se os seus efeitos.
O Regente da Cadeira de Contencioso Administrativo e Tributário entende que a figura do caso decidido foi extinta com a reforma de 2002/2004 e que, com base no art. 51º, nº1 do CPTA, a impugnabilidade dos actos administrativos foi alargada devido à sua eficácia externa e do seu carácter lesivo dos direitos. Assim, o particular pode a todo o tempo impugnar um acto em tribunal. Porém não o pode fazer em sede de acção administrativa especial, restando ao particular seguir o processo através de uma acção administrativa comum nos termos do art. 37º, nº 2 do CPTA. O Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva afirma no seu manual[4] que é incorrecto comparar os actos inimpugnáveis ao caso julgado, pois quando os primeiros são nulos por força de regulamentos inválidos (133º do CPA) estes também colocam em causa disposições constitucionais, nomeadamente o princípio da legalidade, do Estado de Direito e da igualdade (art. 266, nº 2 CRP). No entanto, o Professor aplaude a graduação de efeitos quando diga respeito a matéria sancionatória e seja de conteúdo menos favorável ao particular (art. 76, nº 3 in fine CPTA).
Mário Aroso de Almeida[5] entende que falta um elemento essencial nos termos do art. 133º do CPA quando “em consequência do acto que veio a ser anulado, ou seja, cuja prática foi de alguma forma determinada pela prévia emissão do acto anulado, em termos que permitam qualificá-los como actos de execução ou actuação do acto anulado”, ou seja, o que justifica para este autor a validade do acto é a conexão jurídica entre o mesmo e o regulamento.
Por sua vez, um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul[6], de 4 de Outubro de 2005, decide o seguinte: “a inconstitucionalidade de regulamento municipal ao abrigo do qual foi liquidada a taxa exequenda gera vício de anulabilidade, pois que não se trata de actos relativos a direitos, liberdades e garantias, caso em que estaria em causa vício de nulidade”. A sentença declara que o regime da nulidade aplica-se apenas aos casos que dizem respeito aos direitos, liberdades e garantias dos particulares.
De qualquer das maneiras, o Tribunal tem o dever de verificar se a acto administrativo encontra cobertura noutra norma (válida), a fim de puder salvar o acto. Não obstante de averiguar se a norma é anterior ou posterior à norma declarada inválida. Para melhor compreensão vamos admitir o seguinte esquema: se a norma for anterior à norma inválida, o acto tem fundamento legal; se a norma for posterior à norma inválida mas anterior ao acto, a solução mantêm-se; porém caso a norma for posterior ao acto deve confirmar-se se a intenção por parte da Administração foi de assegurar que a norma ressalva as situações passadas, desde que esta cumpra os requisitos de validade.
Já sabemos que o regime regra encontra-se previsto no art. 135º do CPA por isso afigura-se possível que o art. 76º, nº 3 CPTA se refira a actos anuláveis. Contudo temos de ressalvar as situações previstas no art. 133º do CPA. Ou melhor, caso o vício do acto diga respeito a uma nulidade prevista nas várias alíneas deste artigo o acto padece de nulidade. Entendemos que a melhor solução passa por atenuar os efeitos da nulidade e ressalvar os casos em que estão presentes contra-interessados. Por isso, temos que ter em conta um equilíbrio entre certeza e segurança jurídica e legalidade, que não pode ser feito em abstracto. Logo, quais os efeitos que devem ser salvaguardados? Pensamos que o mais correcto é ponderar o que se encontra previsto no art. 76, nº 2 do CPTA e 134 do CPA, ou seja, deve-se ter em linha de conta que, apesar de nulo, podem retirar-se consequências de facto (nº 3 do 134 º CPA) e o juiz pode determinar quais os efeitos que se produzem quando razões de segurança, interesse público ou equidade assim o justifiquem.
Deste modo, o legislador visou zelar pela preservação das situações já constituídas e criar um equilíbrio entre a legalidade e a segurança, salvaguardando as vantagens obtidas pelo particular, sendo esta a solução mais justa.
Por último, o particular tem sempre possibilidade de recorrer ao regime consagrado no art. 37º do CPTA em sede de responsabilidade civil contra a Administração Pública.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de e Diogo Freitas do Amaral – Grandes linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição, Almedina, 2004;
ALMEIDA, Mário Aroso de Almeida - Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2012;
ALVES, Pedro Delgado – O novo regime de impugnação de normas, Relatório de Mestrado, 2004;
ANDRADE, José Viera de - A Justiça Administrativa, 9ª. edição, Almedina, 2007;
MORAIS, Carlos Blanco de– A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso Administrativo Português, em Temas e Problemas de Processo Administrativo (coordenação do Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva), 2ª edição;
SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009;
PINTO, Mário Jorge Lemos - Impugnação de Normas e ilegalidade por omissão: no contencioso administrativo português, Coimbra Editora, 2008.
[1] Em Carlos Blanco de Morais – A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso Administrativo Português.
[2] Carlos Blanco Morais em Justiça Constitucional II, apud Mário Jorge Lemos Pinto - Impugnação de Normas e ilegalidade por omissão: no contencioso administrativo português, pp. 358.
[3] Paulo Otero em Legalidade e Administração Pública, apud Pedro Delgado Alves – O novo regime de impugnação de normas, pp. 74.
[4] Em O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 428-429.
[5] Mário Aroso de Almeida em Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, apud Pedro Delgado Alves– O novo regime de impugnação de normas, pp. 72.
[6] Em Mário Jorge Lemos Pinto - Impugnação de Normas e ilegalidade..., pp. 358.
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