terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Onde pára a responsabilidade civil extracontratual das empresas públicas?


Conflito entre Tribunais comuns e Tribunais administrativos



I. Advertência inicial

O presente trabalho inicia-se com a interpretação do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2010, referente ao conflito de jurisdição existente face à matéria de responsabilidade civil extracontratual de uma empresa pública sob a forma de S.A. e cujo teor conclusivo se refere supra, sem prejuízo de uma remissão para o texto integral do mesmo através:
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/563465d7e34ff12380257746005460d7?OpenDocument&Highlight=0,processo,08%2F10

II. Enquadramento jurídico

A presente questão prende-se com o facto de saber se as empresas públicas, em sede de responsabilidade civil extracontratual, estão sempre sujeitas à jurisdição administrativa ou se pelo contrário, atendendo à sua forma de actuação o resultado seria de concluir a sua sujeição aos Tribunais Comuns.

Para resolver esta questão conflitual importa ter em conta o regime de competência dos Tribunais administrativos e fiscais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em especial o art.4 que diz respeito ao âmbito de jurisdição.

Aprecie-se a alínea g), h) e i) do nº1 do art.4º que dizem respeito à questão da Responsabilidade Civil Extracontratual de entidades públicas e cuja acção aplicável é a acção comum já por nós estudada em sede de meios processuais do contencioso administrativo. Admitindo a problemática da demanda de uma entidade pública que pode exercer amplos poderes no âmbito do direito privado e que actua frequentemente através da gestão privada, a doutrina tem entendido que a letra da lei deve sofrer uma interpretação restritiva e onde se lê “ pessoas coletivas de direito público” deve considerar-se pessoas coletivas que exerçam a sua atividade através de gestão pública.

Apesar desta corrente deve considerar-se que existe na ratio legis deste preceito um alargamento da jurisdição administrativa, abrangendo-se as entidades públicas empresarias na esteira do pensamento de Maria João Estorninho, evitando-se em última análise uma “fuga para o Direito Privado” para motivos de exclusão de aplicação do Direito Administrativo e do Contencioso Administrativo.

O critério a considerar não é o de exercício da Pessoa Colectiva Pública mas sim o da personalidade, conforme demonstra Sérvulo Correia. O Direito Administrativo e o processo Administrativo estão pensados enquanto regimes autónomos que melhor tutelam as entidades públicas, não é uma questão de especialidade mas uma questão de racionalização do procedimento dos Tribunais Administrativos e de autonomia de matérias. Para questões de cariz diferente existe a necessidade de diferenciar as entidades, as entidades públicas enquanto pressucussoras do interesse público devem ser tratadas de forma desigual face a um particular, os Tribunais Administrativos são os mais especializados para a compreensão do litígio, pode mesmo concluir-se que têm uma relação de maior proximidade com o litígio se em causa estiver uma relação jurídico-administrativa.

Onde se lê no art.4º nº1 aliena g) entidades de direito público, deve atender-se às empresas públicas (municipais ou nacionais), partindo de uma interpretação literal e atendendo ao espírito do Direito Administrativo e não a um critério ultrapassado de divisão entre actos de gestão pública e de gestão privada, conforme refere o senhor professor Vasco Pereira da Silva.

Analisando as perspectivas doutrinárias e tomando uma posição, refira-se que o ordenamento não pode ignorar o cariz público da empresa pública, mesmo que possua um cariz especial face à normal noção de entidade pública. Os Tribunais Administrativos devem intervir onde existem poderes públicos de autoridade, veja-se a consagração da aliena i) do mesmo artigo que prevê um alargamento de competência para questões em que o demandado é uma entidade privada. Com esta referência, podemos perceber que o critério a tomar em consideração é o exercício de poderes públicos, a entidade ainda que de cariz privado é submetida aos Tribunais Administrativos se lhe for aplicável o regime da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. Tem que existir uma norma de “habilitação” para enquadrar estas entidades no escopo deste artigo, não é uma cláusula geral em que se submetem aos Tribunais Administrativos qualquer empresa privada, mas sim empresas privadas em situação “especial”, empresas essas que agem com poderes de autoridade. Para o professor Vasco Pereira da Silva o que existe é um critério que assenta na relação administrativa e uma consequente ampliação da jurisdição e da importância dos Tribunais Administrativos.

O interesse público é o fundamento e o limite nesta consagração, sendo que o juiz administrativo é o que melhor julga e pondera interesses privados e públicos, o juiz do tribunal comum deve ter em conta não o interesse publico em primeira linha, mas o interesse directo e imediato das partes. O juiz administrativo pondera os interesses directos das partes em litígio mas actua de acordo com o Principio da prossecução do interesse publico.

Se o legislador tivesse a intenção de salvaguardar a posição das empresas públicas ou exclui-las do âmbito da jurisdição administrativa em sede de responsabilidade extracontratual, tê-lo ia feito expressamente. Contudo, apenas referindo Pessoas Colectiva de Direito Público a conclusão é nas palavras de Mário Aroso de Almeida “ Onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir”.

Com a ampliação da cláusula de competência dos Tribunais Administrativos para todas as entidades públicas demandadas em sede de responsabilidade civil extracontratual, os Tribunais Administrativos aumentam a sua relevância e existe uma maior aproximação do regime substantivo de Direito Administrativo à realidade processual, se as entidades públicas estão sujeitas a um Direito autónomo, ainda que exerçam actos sob a égide de direito privado têm intrínseca a qualidade de ente público que deve ser ancorado no critério de determinação do Tribunal competente para a resolução de litígios.

III. Análise crítica

No presente acórdão apresenta-se como parte activa um particular, A; e no lado passivo uma entidade pública B; (Hospital sob a forma de S.A.) e um médico do mesmo. A autora instaurou uma acção contra o referido Hospital num tribunal administrativo, tendo o mesmo absolvido o réu da instância por não se considerar competente para o conhecimento do mérito da causa relativa aos ditos autos, numa segunda acção em sede de tribunais comuns o resultado obtido pelo particular foi o mesmo, o tribunal absolveu o réu da instância por não se considerar competente. Na primeira acção, em sede de tribunais administrativos “os réus defenderam-se por excepção (dilatória) alegando que a primeira ré apesar de se tratar de uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, rege-se pelas normas de direito privado, pelo que esse tribunal não tinha competência (em razão da matéria) para julgar a presente demanda, o que determinava a absolvição da instância dos réus;”. Perante o estudo jurídico-doutrinal efectuado, com o devido respeito, conclui-se que esta decisão não é a melhor tendo em conta as justificações apontadas supra, como se sabe o critério usado pelo legislador no ETAF é o de cariz público da entidade, não um critério segundo modos de actuação. Assim, o litígio deveria ter sido julgado pelo referido tribunal administrativo, tendo este considerar-se competente para o efeito.

Note-se, mesmo sendo o hospital uma S.A., o acto lesivo ocorreu antes do processo de transformação do mesmo e ainda se reforce a posição seguinte: sendo um hospital público que presta um serviço público, apenas a sua gestão pode ser vista como empresarial, o escopo da sua actuação fundamenta-se numa relação jurídico-administrativa (prestação de um serviço público).

A decisão do STA é a seguinte: “Com os fundamentos expostos se acorda em resolver o presente conflito de jurisdição, atribuindo a competência para o conhecimento da questão ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga”.

A conclusão do STA vai ao encontro do que aqui é defendido, embora os motivos justificadores sejam diferentes, contudo este acórdão não aborda a temática global da legitimidade passiva das entidades públicas em sede de contencioso da responsabilidade civil, refira-se e conclua-se pela orientação que aplica às mesmas as normas do art.4 nº1 do ETAF alínea g) quando formem uma relação jurídico-administrativa.

 
Ana Filipa Urbano aluna nº19469

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