Nesta análise tomar-se-á em foco
o papel do Ministério Público no contencioso administrativo, enquanto sujeito
funcional do “modus operandi” do
tradicional sistema objectivista de tutela da legalidade. Importa, por outra
via, afirmar que a intervenção do Ministério Público sofreu certas alterações
com a reforma de 2004, como adiante de se verá.
Assim sendo, o âmbito da presente
análise passará pela consideração da importância e do papel desempenhado pelo Ministério
Público antes e a pós reforma. Cabe ainda determinar, a nível contencioso,
quais as suas intervenções e quais as suas finalidades. Por último
considerar-se-á a relevância do Ministério Público enquanto elemento, a que
decidi denominar, funcional do contencioso administrativo à luz de uma óptica
objectivista.
No anterior sistema processual
(pré-reforma), o Ministério Público dispunha de um amplo poder de intervenção
que ia desde a defesa da legalidade, mediante recurso contencioso de anulação,
até à representação do Estado em juízo (art. 27º, da LPTA). Este poder de
intervenção concretizava-se em concreto no seguinte: o Ministério Público (MP)
era o titular da acção pública administrativa, naquele que era denominado o
recurso contencioso em defesa da legalidade e neste âmbito intervia como parte
legitima e activa; tinha o poder de intervenção puramente processual, que lhe
permitia arguir nulidades, suscitar a regularização da petição inicial e
requerer diligências instrutórias, bem como poderia invocar questões prévias ou
excepções, não descorando a possibilidade de arguir vícios não invocados pelas
partes; emitia ainda neste poder de intervenção um parecer[1] final
sobre a decisão a preferir; e assumia a representação do Estado em juízo nas
acções que este era parte, designadamente em acções que envolvam a responsabilidade
civil do Estado, por prejuízos decorrentes dos actos de gestão pública,
representação que de igual modo se verificava nas acções sobre contratos
administrativos. Todavia, nos poderes de intervenção, relacionados com a acção
pública administrativa, avançam dados do Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público, que consideram a pouca relevância que o MP teve nestes casos[2].
A partir de 2004, com a reforma,
o modelo de intervenção do MP foi alterado, prevendo-se que, não obstante de
continua a ser o titular da acção pública administrativa e continuar a assumir
a representação do Estado em juízo, a sua intervenção processual no âmbito
contencioso é limitada e tem uma natureza interlocutória. Neste sentido dispõe
o art.85º/5 do CPTA de forme unívoca que os poderes de intervenção do MP, “podem
ser exercidos até 10 dias após a notificação da junção do processo
administrativo aos autos” ou após a “apresentação das contestações”. Além
disto, inserem-se nos poderes do MP a requisição de diligências instrutórias, e
a possibilidade de emitir um parecer sobre o mérito da causa, desde que se
tenha em vista a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses
públicos especialmente relevantes, ou de valores ou bens constitucionalmente
protegidos e mencionados no art. 9º/2 do CPTA[3].
Sumariamente enunciadas, as
actuais intervenções do MP no contexto do contencioso administrativo, levam a
querer que estas diminuíram face à pré-reforma. Todavia tal conclusão é precipitada.
Não obstante de uma posterior analise, afigura-se pertinente adiantar uma
resposta em sentido oposto. Se é certo que a possibilidade de intervir no
processo é agora limitada, não menos verdade é que a representação do Estado
aumentou (e alargou-se aos Institutos Públicos)[4], de tal
forma que refere a própria Direcção do Sindicados dos Magistrados do Ministério
Público, os “recursos humanos de que o Ministério Público dispõe só lhe
permitem uma intervenção processual mínima e tornam mesmo muito residual o exercício
das suas competências” [5] no
contencioso administrativo.
Para aquilo que importa, há que
averiguar, quais os poderes concretos do MP na defesa da legalidade democrática
e na promoção do interesse público, tal como se dispõe no art.51º do ETAF
(vertente objectivista do contencioso).
É ponto de partida, nesta análise
objectivista, aquilo que no art.9º/2 do CPTA se dispõe. O Ministério Público,
pode ser parte de um processo, autor diga-se, sejam em processos principais ou
cautelares, destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente
protegidos, indicando-se assim a saúde pública, ambiente, urbanismo,
ordenamento do território, qualidade de vida e património do Estado. Já, supra,
se mencionou esta intervenção do MP. Cabe agora descortinar qual o alcance
desta norma e como configura-la. Começo por aqui. O elenco apresentado pelo
legislador, parece-me, ser taxativo. Embora na letra da lei se diga que a
actuação do MP se destina “à defesa de valores e bens constitucionalmente
protegidos, como a saúde pública,
etc.” – parece que este “como” surge no sentido demonstrativo (estabelecendo
por isso o elenco de matérias) e não do sentido exemplificativo. Repare-se em
segundo lugar, que as próprias matérias estabelecidas pelo legislador são, de
alguma forma, matérias, que surgem intimamente ligadas à “legalidade
democrática” e à “realização do interesse público”. Ora, sendo tais matérias do
foro concreto da legalidade, este é um dos “resquícios” do “alter ego” objectivista
do contencioso administrativo[6].
Afecto à legalidade, ainda que de
modo indirecto, está o dever de representação enunciado no art.11º/2-1ªparte do
CPTA (que concretiza o disposto do art.51º do ETAF)[7]. Mais
uma vez o sentido objectivista do contencioso, está aqui presente. Cabe ao MP
representar o Estado, sob certos pressupostos, os quais já sabemos ser, a
defesa da legalidade e interesses públicos. Embora parece redundante e, em
parte dispensável mencionar, a actuação do MP mais uma vez está centrada na
legalidade e só colateralmente (pelo menos neste papel de representação) na
defesa dos direitos dos particulares. Acentua-se mais uma vez um vestígio deixado
pelo objectivismo do contencioso.
Ainda no âmbito das relações
administrativas, cabe ao MP uma série de poderes enunciados lado a lado, nos
artigos 219º/1 da Constituição, art.55º/1-b do CPTA e art. 3º/1 do Estatuto do
Ministério Público, a defesa da legalidade, nos termos da sua competência, a
saber: a já conhecida e dissecada representação do Estado; legitimidade activa
para a impugnação de um acto administrativo; para a defesa de interesses
colectivos e difusos; para a promoção da execução das decisões dos tribunais
para que tenha legitimidade; para a fiscalização da constitucionalidade de
actos normativos; e recorrer de decisão originada de conluio das partes no
sentido de fraudar a lei ou quando tal decisão tenha sido proferida com
violação de lei expressa. Da conjugação destes artigos é possível verificar,
que mais patente não poderia estar o objectivismo do contencioso. A legalidade,
é neste aspecto, o fio condutor de toda a actuação e intervenção do Ministério
Público. Embora não seja configurado como um objectivismo tão rígido como o
histórico, pois pela constitucionalização e europeização, “milagres” do contencioso,
esta vertente, convive com a vertente subjectiva, subtilizando assim aquela
outra, o que nem por isso significa que ela deixe de existir. Afirme-se, que
nem seria coerente uma desigualdade de forças, pois a legalidade também é
garante dos direitos dos particulares, uma vez que no estado actual, o Direito,
com referência máxima na Constituição, tutela as liberdades, garantias e
direitos dos particulares. Continua no entanto a ter sentido estabelecer a
divisão, pois, como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, no seu manual “O
contencioso administrativo no divã da Psicanalise”, a evolução do contencioso
administrativo não é uma fotografia estática, mas sim, um filme continuado,
encadeado e lógico. O contencioso administrativo, não se compadece portanto com
deduções redundantes. É preciso conhecer esta evolução e perceber que “sinais
de trauma” ficaram no contencioso e quais as “superações”. O art.85º do CPTA é o exemplo que melhor
realça esta “mistura” entre realidades. No seu n.º2, prevê-se que o MP possa “solicitar
a realização de diligências instrutórias, bem como pronunciar-se sobre o mérito
da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses
públicos especialmente relevantes ou de alguns dos valores ou bens referidos no
n.º2 do artigo 9º”. A referência aos direitos fundamentais dos cidadãos e aos
interesses públicos, são as duas caras da mesma moeda e expressam o sentido
misto a que aludo, sem no então descorar do peso significativo da vertente
objectivista desempenhada pelo MP no contencioso.
Pode-se assim concluir, pelo que
aqui foi exposto, que o MP é actualmente o “sujeito funcional” usado a titulo
principal pela vertente objectivista do contencioso. A sua actuação em prole da
legalidade e interesse público, ainda que mitigada (melhor se diz,
concretizada) pela vertente subjectiva, são a verdadeira marca do “trauma”
(agora “superado”) do contencioso administrativo. Não pode, ainda assim, de
deixar de proceder a ideia (supra, designada redundante) de que mesmo operando
na vertente objectivista, o MP actua de modo indirecto para as garantias e
direitos dos particulares, uma vez que a lei é também garante destas posições
jurídicas.
Diogo Duarte
n.º18107
[1] Este parecer
emitido pelo MP era de natureza obrigatória.
[2] Só para
se ter uma ideia, em 2003, justamente no ano anterior à entrada em vigor da
reforma da justiça administrativa, o MP junto do TAC de Lisboa propôs 7
recursos de anulação (sendo que a competência territorial desse tribunal ia
desde o Cartaxo a Vila Real de Santo António, vide Mapa VII anexo ao DL374/84,
de 29 de Novembro), o que mostra bem a natureza residual desta intervenção. In Direcção
do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público – “Breve apreciação critica
do actual modelo de intervenção”, pág. 2, Lisboa, 24 de Maio de 2007.
[3] Bens
esses que são, como de resto se prevê no artigo, a saudade pública, o ambienta,
o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida e o património cultural.
[4] Estes
poderes de representação do Estado em juízo foram alargados, pela lei 3/2004,
de 15 de Janeiro, republicada pela DL 105/2007, de 3 de Abril, que veio a
permitir, que embora em termos genéricos e sem qualquer tipo de limitação, os
Institutos Públicos, possam solicitar ao Ministério Público a sua representação
em juízo. Estas são até novas funções, que quebraram com o tradicional sistema,
que advinha do Estado Novo.
Há assim que reajustar a
interpretação que se faz ao art.51º do ETAF, de forma a entender-se que o MP
representa o Estado, mas não com exclusividade. Doutra forma, entende-se também
que os Institutos Públicos, sendo Administração Pública Autónoma, fazem parte
do Estado e a letra permanece com o sentido e alcance dados por essa interpretação.
Parece-me ser preferível a primeira interpretação pois de outra forma seriamos
obrigados a integrar na representação do MP todos as entidades fora da
Administração Pública directa.
Para mais, o próprio
conceito de representação é impreciso. Refere-se no site da Procuradoria Geral
da República (http://www.pgr.pt/grupo_pgr/MP_competencia.html)
que “O conceito de representação aqui utilizado é juridicamente impreciso, pois
compreende situações em que se está perante verdadeiros poderes de
representação (tendentes a exprimir a vontade da pessoa ou do ente em nome de
quem se age) e situações em que apenas se confia ao Ministério Público o
patrocínio judiciário.”
[5] Direcção
do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público – “Breve apreciação critica
do actual modelo de intervenção”, pág. 23, Lisboa, 24 de Maio de 2007. No mesmo
sentido, Maria Isabel F. Costa, Procuradora da República, manifesta
preocupações com a capacidade de intervenção interna do Ministério Público,
afirmando que “a complexidade das sociedades actuais não se compadece com o individualismo,
o amadorismo ou o voluntarismo – é este o desafio que está colocado ao
Ministério Público se quiser continuar a ser uma magistratura de iniciativa e
acção com uma modelação constitucional “polifuncional””. Vide O Ministério
Público no contencioso Administrativo – memória e “razão de ser” – pag. 47,
Lisboa 24 de Maio de 2007. Cfr. Ainda Oficina do CES n.272 de Março de 2007,
pág. 28 e 29, onde se dispõe: “os departamentos de contencioso do Estado,
também criados pela lei n.º60/98, com a competência em matéria cível e/ou
administrativa, cujo objectivo se prendia com a prevenção dos possíveis riscos
de conflitos e deveres ou de interesses e de conferir agilidade à representação
do Estado pelo Ministério Público, na defesa dos seus interesses privados, quer
nas relações com a Administração, quer no que se refere à sua intervenção junto
dos tribunais, nunca foram efectivamente instalados, continuando a ser letra
morta da lei”.
[6] Também o
próprio conteúdo do art.85º/2-parte final do CPTA parece auxiliar esta
interpretação, ao dividir os direitos fundamentais dos cidadãos e os “interesses
públicos especialmente relevantes ou de alguns dos valores ou bens referidos no
n.º2 do artigo 9º”.
[7] Ver
neste sentido a nota-de-rodapé n.º4.
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