Uma das
grandes originalidades do novo modelo cautelar baseia-se na adopção no nº1 do
artigo 120.º do CPTA de uma concepção gradualista do critério do fumus boni iuris, conferindo-lhe uma
importância decisiva e exclusiva em situações de manifesta procedência do
processo principal (alínea a)) e estabelecendo uma diversa formulação consoante
esteja em causa a adopção de uma providência conservatória ou antecipatória
(alínea b) e c), respectivamente). No caso do artigo 120.º nº 1 alínea a), a evidência
da procedência do processo principal justifica que o juízo de ponderação de
interesses seja afastado, pois, então, não haverá, em regra, razão para deixar
de conceder essa providência (1)(2)(3). Esta
exposição pretende, justamente, clarificar o âmbito de aplicação deste último
preceito e dar resposta a algumas das questões que a doutrina e a jurisprudência
têm colocado nesta sede.
Antes demais, questiona-se
o que seja a “evidente procedência do processo principal”. A jurisprudência tem
entendido que a procedência do processo principal tem que ser “manifesta,
evidente, ostensiva, clara, notória, flagrante, incontroversa, patente,
imediata, incontestável, sem necessidade de elaborada indagação, quer de facto,
quer de direito”(4). A este propósito, cabe
ainda perguntar se a previsão desta norma comporta quer a nulidade, quer a
anulabilidade, bem como os vícios materiais e formais. Seguindo de perto a
doutrina de Vieira de Andrade, os tribunais administrativos têm defendido o
critério da essenciabilidade do vício, o que significa que “em princípio, só quanto aos vícios graves, aqueles que se concretizam na lesão
insuportável dos valores protegidos pelo direito administrativo e que, por isso, implicam
a nulidade do acto, é possível ajuizar sobre a evidência da procedência da
pretensão principal. Já quanto à violação de preceitos de forma em sentido
amplo, que inclui a forma propriamente dita e o procedimento, que seja cominada
com a anulabilidade nem sempre a preterição da forma conduz à anulação (…) o
acto não será anulado se o juiz comprovar que no caso concreto foram alcançados
os fins específicos que o preceito violado visava alcançar (…) uma vez que não
existem dúvidas que um administrador normal e razoável o irá repetir com o
mesmo conteúdo”(5). A evidência da
procedência do processo principal deve facilmente poder ser constatada, de
imediato, através de prova documental junta aos autos, sem necessidade de mais prova (6).
O preceito em
questão não é apenas aplicável em sede de impugnação de actos, mas a qualquer
tipo de providência cautelar: as situações elencadas na alínea a) têm carácter
meramente exemplificativo, como, de resto, sugere o emprego da expressão
“designadamente”.
A
jurisprudência tem reunido esforços no sentido de esvaziar o conteúdo útil da
alínea a) do nº 1 do artigo 120.º. Em
primeiro lugar, apoiados nos artigos 45.º nº 1 e 163.º nº 1, os tribunais
administrativos têm entendido que deve ser recusada a adopção das providências
cautelares quando se anteveja a possibilidade de existir um “excepcional ou
grave prejuízo para o interesse público”, pois não se compreenderia que fosse
possível obter a execução provisória de algo que não poderia ser obtido a
título definitivo (7). A recusa do decretamento
da providência com o fundamento indicado aproxima-se da ideia de ponderação de
interesses, juízo este que é afastado linearmente pela lei processual no nº 2
do artigo 120º. Por outro lado, o “excepcional prejuízo para o interesse
público” apenas é invocável em sede de processo executivo (artigo 163.º), pelo
que não se compreende como pode ser causa de indeferimento da decretação da
providência, antes de instaurada a correspondente acção executiva. Mesmo que
ponderado no âmbito da acção declarativa, este apenas gera uma modificação objectiva
da instância (artigo 45.º nº 1): quando se verifique o “excepcional prejuízo
para o interesse público” o pedido originariamente formulado é convolado num
pedido de indemnização, não implicando a improcedência da acção administrativa
principal (8). Finalmente, a jurisprudência
sindica a possibilidade de invocação de outras circunstâncias que obstem ao
conhecimento do objecto do pedido, esvaziando a centralidade do fumus boni
iuris enquanto único critério que fundamenta a decretação da providência
cautelar. No entanto, através de uma comparação da alínea a) com a alínea b) do
artigo 120.º, verifica-se que a segunda refere expressamente as
“circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito”, ao contrário da
primeira, que nada diz. Posto isto, parece ser de concluir que o legislador
quis deliberadamente facilitar a decretação de providências ao abrido da alínea
a), pelo que não se justifica a criação de obstáculos que não constam
expressamente do enunciado legal.
Neste sede, uma das questões mais
controvertidas é, sem dúvida, a da ponderação do periculum in mora para efeitos da aplicação da alíena a) do nº1 do
artigo 120.º. Da letra da lei parece resultar que o único critério de decisão a
ter em conta é o do fumus boni iuris.
No entanto, este entendimento não pode deixar de causar estranheza, uma vez que
a finalidade última da tutela cautelar é a garantia da utilidade da sentença a
proferir no processo declarativo (artigo 112.º nº 1). Posto isto, seria de
entender que o periculum in mora não
poderia deixar de ser exigido, sob pena de não se estar verdadeiramente perante
a adopção de uma providência cautelar (9). A
inserção sistemática desta figura na tutela cautelar corroboraria este
pensamento (10). Já de acordo com uma posição
mitigada, o único factor relevante para a decisão de adopção da providência
cautelar em caso de procedência da pretensão principal é o fumus boni iuris, mas “mesmo nessas situações, o perigo
releva, na medida em que a providência só pode ser pedida e concedida quando
haja um interesse em agir que se manifeste no fundamento do pedido, embora
baste aí provar que assim se assegura alguma utilidade à sentença” (11). Para efeitos da alínea a) do nº1 do artigo
120.º pode-se entender uma de duas coisas: “ou se procede a uma interpretação
do preceito em conformidade com a função da tutela cautelar e se admite que,
mesmo na hipótese aí prevista, o periculum in mora é requisito de atribuição da
providência porque só existe interesse em agir em sede cautelar quando haja o
fundado receio de que se perca (no todo ou, pelo menos, em parte) a utilidade
da sentença a proferir no processo principal; ou se tem de admitir que o
preceito em causa consagra uma solução que, na verdade, é um aliud em relação à
tutela cautelar, na medida em que não visa acautelar a utilidade da sentença a
proferir no processo principal, mas antes conferir uma tutela sumária (e
precária) a quem se afigure evidente que tem razão no processo principal.” (12) Ora, tendo em consideração a confronto da
alínea a) com as alíenas b) e c) do nº 1 do artigo 120.º parece que o
legislador teve a clara intenção de fazer depender o decretameto da providência
em caso de evidência procedência do processo principal unicamente da
verificação do fumus boni iuris. No
entanto, tal força-nos a considerar que, neste caso, não estamos perante uma forma de tutela
cautelar, mas antes uma modalidade de tutela sumária.
1)
Em regra, uma vez que há quem admita que em
determinados casos excepcionais a concessão da providência seja sujeita ao
juízo de proporcionalidade, nomeadamente quando se vá a juízo num prazo
desrazoavelmente long após o início da produção de efeitos do actos. Neste
sentido, Gomes, Carla Amado, O regresso de Ulisses … pág. 8 e
Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça … pág. 307.
2)
Acs. do STA de
27/07/2011, P. 520/11, de 04/11/2010, P. 755/10; do TCA Sul de 31/05/2012 P.
8774/12, de 03/05/2012 P. 8660/12; do TCA Norte de 27/04/2012 P. 781/11.6BEAVRA,
de 08/04/2011 P. 1653/10.7BEPRT e restante jurisprudência citada por Ribeiro,
Teresa de Melo, A justiça cautelar …
pág. 72, nota de rodapé 18.
3)
O critério do fumus malus, isto é, da manifesta
improcedência da pretensão principal, justificará o indeferimento da
providência, a contrario da alíena a) ou, por maioria de razão, pelo não
preenchimento das alíneas b) ou c). Neste sentido, Neto, Dora Lucas, Meios cautelares … pág. 63; Andrade, José Carlos Vieira de, A
Justiça … pág. 308; Amorim, Tiago, As
providências cautelares … pág. 42.
4)
Acórdão TCA Norte
de 19/05/2005 P. 00004/05.7BECBR, na
linha do pensamento de Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça … pág.
309. Esta posição é também sufragada por Neto, Dora Lucas, Meios cautelares … pág. 64. Em sentido contrário, Almeida, Mário
Aroso, Manual … pág. 484.
5)
Acórdão TCA Norte
de 19/05/2005 P. 00004/05.7BECBR
6)
Acs. TCA Sul de
23/04/09 P. 04319/08 e de 07/05/09 P. 04813/09.
7)
Acórdão STA de
06/03/07 P.1143/06.
8)
Roque, Miguel
Prata, Cinco anos da … pág. 76;
Almeida, Mário Aroso, Manual … pág. 485.
9)
Neste sentido,
Amorim, Tiago, As providências cautelares
… pág. 41, que entende que o alínea a)
não constitui um regime de antecipação acelarada da tutela principal, mas sim
um regime ainda estritamente cautelar, pelo que exige a verificação do
requisito do periculum in mora.
10)
Assim, Dora
Lucas, Meios cautelares … pág. 64.
11)
Andrade, José
Carlos Vieira de, A Justiça … pág. 306.
12)
Almeida, Mário
Aroso, Manual … pág. 482 e seg.
Bibliografia:
- Almeida, Mário Aroso, Manual de
Processo Administrativo, 2010, Almedina
- Andrade, José Carlos Vieira de,
A Justiça Administrativa, 2011, Almedina.
- Amorim, Tiago, As providências cautelares do CPTA: um
primeiro balanço, in CJA nº 47, Setembro/Outubro de 2004, pág. 41 e seg.
- Cunha, Ana Gouveia e Freitas
Martins, A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo: em especial, nos
procedimentos de formação dos contratos, 2002.
- Fonseca, Isabel Celeste M., Dos
Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo (Função e Estrutura),
2004, Lex.
- Gomes, Carla Amado, O regresso de Ulisses: um olhar sobre a
Reforma da Justiça Cautelar Administrativa, in CJA nº 39, pág. 4 e seg.
- Gouveia, Paulo Pereira, Meios cautelares hoje e amanhã, in CJA
nº 94, Julho/Agosto de 2012, pág. 81 e seg.
- Neto, Dora Lucas, Meios cautelares, in CJA, nº 76, Julho/Agosto 2009, pág. 61 e seg.
- Ribeiro, Teresa de Melo, A justiça cautelar que temos e a que
queremos, in CJA nº 94, Julho/Agosto de 2012, pág. 61 e seg.
- Roque, Miguel Prata, Cinco anos da tutela cautelar – Do
enamoramento iniciático à monotomia conjugal, in CJA nº 76 Julho/Agosto
2009, pág. 73 e seg.
Acórdãos:
- Acórdão STA de 06/03/07 P.1143/06
- Acs. TCA Norte de 19/05/2005 P. 00004/05.7BECBR e de 09/01/2006 00391/04.4BEBRG
- Acórdão TCA Sul de 13/03/2008 P. 03506/08
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