sábado, 15 de dezembro de 2012

Visão Sintética da concepção Francesa do Contencioso Administrativo: entre o juiz com espírito de administrador e a separação de funções


Desde sempre a Doutrina discute qual o modelo de Contencioso Administrativo a adoptar com base na finalidade que cumprirá ao mesmo prosseguir, numa ponderação entre a defesa dos direitos subjectivos dos particulares e a defesa da legalidade, o clássico confronto entre a concepção subjectivista e objectivista.



Sucintamente, por um lado, o modelo subjectivista, enraizado na Alemanha, dá primazia á tutela dos direitos dos particulares instituindo um processo de partes, por outro, para a facção objectivista de matriz francesa a garantia da legalidade apresenta-se como o grande paradigma a preservar. Ora, tais concepções, irão conduzir a uma panóplia de consequências nomeadamente a nível da legitimidade activa, muito mais alargada nos modelos objectivistas e mais circunscrita na visão subjectivista, e principalmente, no elenco de meios processuais, manifestamente em menor numero no modelo subjectivista.

A concepção especificamente francesa, que na visão de MICHEL FROMONT acaba por lhe conferir um carácter de “insularidade”, provém da convicção de que um juiz administrativo não deve ser somente especializado em matéria administrativa mas também possuidor de um apurado espírito de administrador.
O Contencioso é visto como parte da tarefa de Administrar, como enfatiza SANDEVOIR (1).  Administrar possui assim duas vertentes, realizando-se portanto, em ultima análise, de duas formas: através da regulamentação e do contencioso.  

Já outrora, e imbuído neste espírito, Napoleão manifestou a sua vontade do "Conseil d´ État" ter um carácter de corpo semi-administrativo e semi-judicial (2). 

O perfil orgânico dos tribunais administrativos franceses é sui generis, estes estão ligados ao poder executivo e não ao poder judicial, com o” Conseil de État”, as “Cours administratives d´Appel” e os “Tribunaux administratives” fora do âmbito judicial. Se é verdade que o Contencioso Francês protege o princípio da proibição dos tribunais judiciais de decidir sobre a legalidade das decisões administrativas, princípio fundamental na visão do Conselho Constitucional, tal não se explica por uma estrutura compositória do poder judicial.
O "Conseil d´État" é o órgão máximo da jurisdição especial com atribuições de ordem contenciosa, administrativa e consultivas.

Não se pense, porém, e como nota CHAPUS (3), que os membros dos tribunais administrativos não exerçam funções de magistrados, pois de facto possuem essa qualidade, afastando-se qualquer errónea percepção de uma pretensa perpetuação da existência de um administrador-juiz, sob a capa de nova aparência.
Esta visão de que “julgar a administração é ainda administrar” manifesta-se no facto dos magistrados administrativos beneficiarem, ao contrário dos magistrados judiciais, do estatuto geral de função pública tal como a generalidade dos funcionários do Estado. O mesmo se revela no recrutamento destes magistrados da área administrativa que ao invés de ser na “École Nationale de Magistrature”, é a partir da “École Nationale de Administration”.

CHAPUS alerta contudo, e de forma pertinente, para o facto da imparcialidade da jurisdição administrativa poder estar sob suspeita dada a proximidade e interdependência entre a administração activa e contencioso administrativo e que tal deve ser alvo de pormenorizada atenção de forma a ser evitado. Conclui que é a própria concepção do Direito Administrativo Francês que se apresenta necessária e estruturalmente como na origem desse risco pelo que a salvaguarda do Principio da Imparcialidade tem de ser alvo de especial salvaguarda.

Nesse sentido, o próprio Conseil d État apresenta uma separação orgânica entre a formação de julgamento (“section du contentiex”) e as cinco secções administrativas. Estas dividem-se numa “section du rapport et des études” que a par da elaboração de um relatório anual sobre a actividade do próprio Conselho dos estudos para-legislativos, se encontra incumbida de uma tarefa de auxilio á execução de sentenças administrativas, consistindo numa espécie de mediação entre o requerente e autoridade requerida, e em quatro secções consultivas – interior, finanças, obras públicas e social- sendo que as últimas reúnem todo o ano uma vez por semana e dão parecer ao governo sobre projectos lei e decretos para alem de aconselhamento sobre questões jurídicas complexas.

Para além do acima exposto, os tribunais administrativos franceses mantém um respeito assinalável sobre o campo de actuação da administração activa. A Administração dispõe do privilégio de decisão executória que significa que esta, através de acto unilateral, pode impor ao particular deveres e sujeições e conferir lhes direitos sem o consentimento do próprio e sem qualquer intervenção previa do juiz. Uma das componentes deste mecanismo é o “previlége du prealable”, que determina, que por simples manifestação unilateral de vontade da Administração e pela imperatividade dos actos que produzem esses efeitos constitutivos, esta pode produzir uma transformação no ordenamento jurídico.
A intervenção do tribunal administrativo é grosso modo meramente revisora da decisão administrativa, típico traço do modelo objectivista. O meio processual central é o recurso por excesso de poder, por meio do qual, o interessado pede a anulação de um acto administrativo com base em ilegalidade. O caracter geral do “previlége du préable” faz com que, mesmo em caso de anulação de contencioso de plena jurisdição, no qual o juiz possui poderes mais extensos nomeadamente a possibilidade de condenar a Administração em prestações pecuniárias e de substituir as suas decisões ás decisões da Administração perante ele contestadas , a forma da iniciativa processual deve ser o recurso, ainda que o litígio nasça mais de uma pretensão do particular do que de uma decisão administrativa. Está patente o princípio “pas de décision, pas de action”, excepto em matéria de obras públicas.

 Por fim, urge, precisamente no sentido de uma concepção de separação de funções no seio do poder do Conseil d´État e de uma certa autolimitação com base na ideia de evitar qualquer possibilidade de conflito com o executivo, referenciar o princípio geral de proibição do juiz de decretar injunções, paradigma obstinadamente defendido pela jurisprudência no passado. Esta solução coloca á partida problemas quanto ao respeito pelo caso julgado e efectividade da tutela jurisdicional.

O facto é que em 1995, com a reforma Código dos Tribunais Administrativos, por intenção do legislador impulsionado pelo Direito Comunitário,  o tribunal passa a poder, em face de pedido oferecido pelo requerente: quer prescrever medidas de execução de sentenças podendo completar a decisão com uma sanção pecuniária compulsória; quer em caso de litigio em que o tribunal decida pela necessidade da Administração proferir nova decisão após nova instrução, prescrever que essa decisão tenha lugar em prazo determinado sob pena de sanção pecuniária compulsória. É portanto, como nota SÉRVULO CORREIA, um reposicionamento entre a justiça administrativa e a administração activa proporcionado uma alteração clara á visão secular do principio de separação de funções. Foi assim ajustado o equilíbrio entre a tarefa de Administrar e julgar a Administração, inclusive á luz do panorama constitucional (4).
 

(1) SANDEVOIR, Pierre, Etudes sur le recours de pleine jurisdiction, 1964
(2) RIDET, F., Opinions de Napoléon, 1833, p. 191
(3) CHAPUS, Melangés, Contenciex Administratif , p. 40 – 48
(4) CORREIA, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, 2005


João Teles 20410

Sem comentários:

Enviar um comentário