quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO N. 4/2010 STA[1]


Por razões que se prendem com o enquadramento do problema, começaremos por referir que:
  • Eram Autores nesta causa a Astrazeneca Pharmaceuticals LP e a Astrazeneca – Produtos Farmacêuticos, Lda., em coligação activa, a primeira com sede nos EUA e a segunda com sede em Sintra;
  • Estava em causa um pedido de nulidade e anulação de actos administrativos e o correspondente pedido cautelar de suspensão de eficácia, com fundamento na ilegalidade e consequente lesão dos direitos e interesses legalmente protegidos das Requerentes;
  • O Tribunal de Círculo de Lisboa decidiu que o tribunal territorialmente competente para dirimir este litígio seria o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, por aplicação do artigo 16º CPTA;
  • O Tribunal Central Administrativo Sul veio confirmar a decisão supra mencionada a 25 de Junho de 2009;
  • e, em decorrência de tal facto, vêm os Autores interpôr recurso para uniformização de jurisprudência do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, competência esta decorrente da aplicação do artigo 25º/1/b) do ETAF e do artigo 152º CPTA, já que esta decisão se encontra em contradição com as anteriores proferidas pelo mesmo Tribunal datadas de 25 de Agosto de 2008 (Processo nº 3992/08) e de 18 de Dezembro de 2008 (Processo nº 4534/08), que haviam decidido ser competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por aplicação do artigo 22º CPTA.

A que conclusões chegaram os juízes do STA?
Em primeiro lugar, foi considerado ser este um caso de aplicação do artigo 22º CPTA e não do artigo 16º CPTA, com a consequência de anulação do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul e revogação da sentença do Tribunal Central Administrativo.
Prevê o artigo 20º/6 CPTA que “os pedidos dirigidos à adopção de providências cautelares são julgados pelo tribunal competente para decidir a causa principal”.
Assim, dever-se-á verificar da aplicação da regra geral do artigo 16º CPTA, que nos diz que são competentes territorialmente para decidir da causa principal o tribunal da residência habitual ou da sede do autor ou da maioria dos autores. Qual é o problema? Bom, é que neste caso não poderemos aplicar o referido artigo 16º (que também não resolve casos em que exista apenas um autor e este tenha residência ou sede no estrangeiro, pois está pensado somente para os casos em que a residência ou a sede se situam em Portugal), no entendimento do STA (contrariamente decidiu o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão ora recorrido, por entender ser este um caso de aplicação do artigo 16º CPTA já que, tendo um dos Requerentes sede em Portugal, não existia nenhuma impossibilidade de determinação do tribunal territorialmente competente se se restingisse o âmbito de aplicação do referido artigo para “se dos vários autores alguns tiverem residência ou sede em Portugal e outros no estrangeiro, só há que atender àqueles para aferir do tribunal territorialmente competente”) porque ignorar a sede da outra Requerente constituiria, no entender dos Juízes do STA, uma violação do artigo 22º CPTA, porque deveria ter sido aplicado e não foi, e do artigo 16º CPTA, porque foi aplicado indevidamente.
As regras constantes dos artigos 17º a 21º CPTA não relevam para o caso em discussão restando apenas, já que não é possível determinar a competência territorial com recurso aos artigos 17º a 21º CPTA, recorrer à regra supletiva do artigo 22º CPTA, que atribui competência territorial ao Tribunal de Círculo de Lisboa. Esta foi a decisão constante do Acórdão n. 4/2010 STA, contrariando a decisão anteriormente proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que atribuía competência ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, em virtude da aplicação do artigo 16º CPTA. Assim, a solução que no entendimento do STA se considera preferível seria a de permitir sempre aos Autores que, dentro da pluralidade de comarcas competentes (no caso em apreço Sintra, foro de uma das Autoras e Lisboa, tribunal supletivamente competente por a outra Autora ter sede no estrangeiro), possam chegar a acordo e escolher em qual dos tribunais irão propor a acção, mesmo que estejamos perante um caso de aplicação da regra geral do artigo 16º CPTA, por aplicação analógica do artigo 21/2 CPTA.
Importa referir a curiosa declaração de voto de Jorge Madeira dos Santos que considera acertada a decisão em causa (aplicação do artigo 22º CPTA, por não ser este um caso do artigo 16º CPTA) mas discorda dos fundamentos: não se deveria concluir pela competência do Tribunal de Círculo de Lisboa por escolha das partes, vedada neste caso pelo artigo 16º CPTA mas não por analogia ao artigo 21/2 CPTA, analogia esta que deve estar reservada somente para o preenchimento de lacunas (artigo 10º do Código Civil) já que não estamos perante uma integração analógica, na medida em que existe regulação pelo artigo 22º CPTA.

Com que questão interessante somos defrontados neste Acórdão?
Em primeiro lugar, o que sucede é que, contrariamente ao contencioso comum, constante dos artigos 65º e 65º-A do CPC, em sede de Contencioso Administrativo não se encontra regulada a matéria da competência internacional dos tribunais administrativos.
Como resolveremos então o problema de aferir desta mesma competência internacional quando este problema, embora pouco frequentemente[2], se nos coloca?
Neste caso, e recorrendo aos ensinamentos de Direito Internacional Privado, somos forçados a concluir estarmos em presença de um litígio plurilocalizado no qual se verifica que existem elementos de conexão com mais de um ordenamento jurídico, existindo potencialmente dois tribunais territorialmente competentes para dirimir este litígio.
Deveremos, dado não existirem regras de competência internacionais dos tribunais administrativos tratar estas questões como se de internas se tratasse? Parece que o STA assim o entendeu, ao afirmar que “para aferir da competência internacional dos tribunais administrativos é necessário resolver, primeiro, a questão de saber se eles são competentes, em razão da matéria, pois que, terão de ser os tribunais comuns a julgarem a competência internacional dos tribunais portugueses”. Ora, como bem salienta a Professora Paula Costa e Silva, estamos perante um caso de inversão metodológica, já que foi aferida a competência material para se aferir da internacional e não o inverso.
Poder-se-á concluir que, por aplicação do artigo 1º CPTA, dever-se-ão aplicar as regras referentes à competência territorial interna à determinação da competência internacional? Tal seria idêntico a perguntar se a noção de competência internacional e de jurisdição devem ser interpretadas de forma equivalente. A resposta ter-se-á que afigurar negativa. A jurisdição define os limites de actuação lícita do Estado a partir de dados exógenos, enquanto que a competência internacional dos Estados é definida a partir de dados endógenos, a partir do direito interno dos Estados.

Ou, como afirma Paulo Otero, será este um caso de hiper-radicalização do princípio da aplicação territorialista da lei administrativa, sendo sempre competentes os tribunais portugueses e aplicável o direito material português? Também não se revela solução capaz. Ou, ainda, caso existam, poderemos recorrer a normas de conflitos administrativas?

Ou, em consonância com a jurisprudência dos Acórdãos de 14.05.2002 e de 30.10.2007 do TCA Sul deveremos considerar que podemos recorrer às regras dos artigos 65º e 65º-A do CPC para aferir da competência internacional dos tribunais administrativos? No meu entender não poderemos, devendo antes preferir a solução de aplicar os artigos 16º a 22º CPTA, tendo no entanto que nos resignar à conclusão de que, sempre que não se consiga concretizar a competência internacional através da competência territorial interna pela regra geral do artigo 16º CPTA, teremos que recorrer à regra supletiva do artigo 22º CPTA, que deve ser considerada, na minha opinião, como uma regra de salvaguarda e não atribuidora de uma competência exorbitante, salvo se o direito aplicável ao mérito da causa for sempre o direito material administrativo português.[3]


Bibliografia:

  • OTERO, Normas administrativas de conflitos – as situações jurídico-administrativas transnacionais, Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, volume II, pgs. 781-790, Almedina, 2005
  • SILVA, Paula Costa e, Jurisdição e competência internacional dos Tribunais Administrativos: a propósito do Acórdão N. 4/2010 STA, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, volume IV – Direito Administrativo e Justiça Administrativa, pgs. 697-712, Coimbra Editora, 2012
  • jurisprudência mencionada ao longo do escrito



[1] http://dre.pt/pdf1s/2010/05/10200/0181001812.pdf
[2] Como mencionam Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha na 2º edição do Comentário ao CPTA
[3] aderimos, assim, parcialmente, à posição doutrinária defendida por Paula Costa e Silva

Filipa Graça
Nº 18128

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