quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Requisito eventual da prévia utilização de impugnação administrativa necessária


I. Evolução da temática das impugnações administrativas

 1.1. Em termos constitucionais, além das impugnações administrativas encontrarem fundamento directo no âmbito da disposição que consagra o direito de petição lato sensu, verifica-se que se podem recortar dois períodos distintos durante a vigência da Constituiçao de 1976 no que respeita às impugnações administrativas:

a) Num primeiro período, correspondente ao texto inicial da CRP e àquele que vigorou até à data da segunda revisão constitucional, conferia-se aos administrados o direito de recurso contencioso contra actos administrativos definitivos e executórios, expressão esta entendida como permitindo a valia da tradicional dicotomia entre recursos graciosos necessários e recursos graciosos facultativos;

b) Um segundo período seria aberto com a revisão constitucional de 1989, passando o art. 268º a omitir qualquer referência à necessidade de o recurso contencioso ser interposto contra actos definitivos e executórios. Ora, o desaparecimento da expressão “definitivos e executórios” foi objecto de duas interpretações radicalmente antagónicas por parte da doutrina:

i) Uma parte da doutrina, por um lado, continuava a reconhecer ao legislador ordinário a liberdade de exigir a definitividade vertical do acto administrativo passível de recurso contencioso, circunstância esta que permite continuar a falar-se em recursos graciosos facultativos e recursos graciosos necessários:

ii) Uma outra parte da doutrina, pelo contrário, entende que a alteração do texto constitucional,  substituindo o requisito da definitividade vertical pela lesividade do acto, veio tornar inconstitucional a figura do recurso gracioso necessário.

1.2. Os últimos anos, olhando para o direito ordinário, permitem registar três períodos distintos quanto às impugnações administrativas:

a) Um primeiro período vai até 1977, mais especificamente até ao decreto-lei 256-A/77 de 17/6, observando-se aqui, além da tradicional dicotomia entre recursos graciosos necessários e recursos graciosos facultativos, que a reclamação tinha sempre carácter facultativo;

b) Com o decreto-lei 256-A/77 de 17/6, porém, e até à Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, aprovada pelo decreto-lei 267/85 de 16/7, abre-se um novo período, caracterizado pela introdução da exigência de reclamação necessária, enquanto verdadeiro pressuposto no recurso contencioso;

c) Uma terceira fase, tendo surgido com a reforma de 1984/85 do contencioso administrativo, podemos dizer que se caracteriza por três principais traços no que diz respeito às impugnações administrativas:

i) Desaparecimento da reclamação necessária e retorno ao modelo anterior assente na dicotomia entre recursos graciosos necessários e recursos graciosos facultativos;

ii) A partir da revisão constitucional de 1989, forte polémica doutrinal em torno da inconstitucionalidade da figura do recurso gracioso necessário, pronunciando-se a jurisprudência (incluindo o Tribunal Constitucional), pela não inconstitucionalidade do art. 25º do LPTA e continuando os tribunais administrativos a exigir a definitividade vertical dos actos recorríveis;

iii) Em 1992 com a entrada em vigor do CPA, passou a existir entre nós, um regime legal genérico para as impugnações administrativas.

1.3. O breve apontamento histórico sobre a evolução das impugnações administrativas nos últimos anos permite extrair uma principal ilação: o legislador ordinário e a jurisprudência foram insensíveis às alterações constitucionais em matéria de requisitos do acto administrativo contenciosamente impugnável – tudo se passou como se a revisão constitucional de 1989 não tivesse retirado a expressão “definitivos e executórios” aos actos passiveis de recurso contencioso.

Será que o novo código do processo dos tribunais administrativos procedeu, finalmente, a uma adequação do direito ordinário à letra da Constituição?

II. O actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos

2.1. A simples leitura do CPTA permite retirar duas principais inovações em matéria de impugnação administrativa:

i) Deixa de se fazer referência à definitividade ou executoriedade do acto administrativo contenciosamente impugnável, falando-se agora em eficácia externa e, sublinhando-se em especial, aqueles actos cujo conteúdo seja passível de lesar posições jurídicas subjectivas;

ii) Por outro lado, consagra-se o entendimento de que a utilização de meios de impugnação administrativa suspendo o prazo da impugnação contenciosa do acto administrativo, estipulando-se que esse prazo só começa a correr com a notificação, publicação ou conhecimento da decisão proferida sobre a impugnação administrativa ou com o decurso do respectivo prazo legal da decisão.

2.2. As inovações desta última versão do CPTA resumem-se a duas ideias:

i) Em primeiro lugar, deixando de se referir a exigência de definitividade vertical para os actos administrativos contenciosamente impugnáveis, o código veio desmantelar o recurso gracioso necessário, determinando, em consequência, a revogação das disposições do CPA que se referem ao recurso hierárquico necessário. No que se refere à legislação avulsa que consagra recursos hierárquicos necessários, a entrada em vigor da nova legislação contenciosa só determina a respectiva revogação se, enquanto lei geral, expressamente o mencionar face aos diplomas que se tenham como lei especial. No entanto, a especialidade das leis avulsas que consagram recurso hierárquico necessário não afasta a inconstitucionalidade de tais normas, e neste sentido, sujeitará esses regimes especiais à solução consagrada na nova lei geral do contencioso administrativo.

ii) Em segundo lugar, determinando que a impugnação administrativa facultativa suspende o prazo de impugnação contenciosa, o CPTA acaba por transformar a impugnação administrativa facultativa em impugnação administrativa recomendável: se o particular usar a via graciosa, a suspensão legal do prazo da impugnação contenciosa dos actos administrativos conferirá sempre ao recorrente um tempo suplementar de preparação da petição inicial. Por esta via indirecta, apesar de se incentivar a utilização dos mecanismos de impugnação administrativa, a verdade é que o CPTA acaba por colocar nas mãos do recorrente a possibilidade de alargar o prazo de impugnação do acto administrativo.

2.3. O requisito eventual da prévia utilização de impugnação administrativa necessária

O CPTA não exige, em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. Das soluções consagradas nos artigos 51º e 59º/4 e 5 do CPTA decorre, por isso, a regra de que a previa utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa. E, portanto, de que não é necessário, para haver interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos, que o autor demostre ter tentado infrutiferamente obterá remoção do acto que considere ilegal por via extrajudicial.

O CPTA não tem, porém, o alcance de afastar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias. Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve, pois, entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade de prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considere justificada. Deve, assim, entender-se que, sempre que esteja previsto em lei especial que a prévia utilização de uma impugnação administrativa é necessária para se proceder à impugnação jurisdicional de certo tipo de acto administrativo, aquela impugnação tem de ser utilizada sob pena de preclusão de acesso aos tribunais. A lei institui, pois, nesta caso, um requisito adicional, que vem acrescer aos demais, do qual depende a impugnação jurisdicional desse tipo específico de acto administrativo. Parece dever entender-se que a impugnação administrativa é necessária quando a lei diz, de modo inequívoco, que do acto em causa cabe tal impugnação.

Nos casos em que não foi formalmente revogada a legislação que previa recursos hierárquicos necessários, mas em que o serviço em causa foi destacado da hierarquia na qual estava inserido e dotado de personalidade jurídica própria, deve, no entanto, entender-se que aquela legislação foi tacitamente revogada, pelo que deixou de existir a impugnação administrativa necessária nela prevista. Mas se o interessado, induzido em erro, tiver utilizado a impugnação necessária na compreensível convicção de que ela era de utilização necessária, o direito à tutela efectiva, que inspira o regime do art. 7º, não pode deixar de exigir que a impugnação contenciosa seja admitida fora de prazo, através da aplicação ao caso do art. 58º/4. A indução em erro pode resultar directamente da ambiguidade resultante do quadro normativo aplicável, assim como pode ser agravada por indicação errada contida na notificação do acto.

2.4. Necessidade de autonomização deste requisito

O eventual requisito da prévia utilização de uma impugnação administrativa necessária é tradicionalmente apresentado como mais um dos componentes nos quais se pode desdobrar o pressuposto processual da impugnabilidade (contenciosa) do acto administrativo. Tal como mostra o Professor Mário Aroso de Almeida, justifica-se a autonomização deste requisito.

Com efeito, a questão de saber se a impugnação jurisdicional de certo tipo de acto administrativo está dependente da prévia utilização de uma impugnação administrativa nada tem a ver com a substância do acto. Pelo contrário, é só em relação a actos administrativos impugnáveis, que preencham todos os requisitos para poderem ser objecto de impugnação, que se coloca a questão de saber se há que utilizar previamente uma impugnação administrativa contra esse acto para se poder proceder à respectiva impugnação contenciosa.

Nos casos em que ela é legalmente prevista, a prévia utilização de impugnação administrativa necessária é, pois, instituída como um pressuposto processual atípico ou adicional em relação ao da impugnabilidade do acto – um pressuposto processual autónomo, de cujo preenchimento a lei, em certos casos, entende fazer depender a possibilidade de um acto administrativo que, do ponto de vista substantivo, é, em si mesmo, impugnável, de ser objecto de impugnação imediata perante os tribunais administrativos.

Trata-se, pois, de uma questão de natureza adjectiva, e não substantiva, que não tem que ver com a substância do acto e, portanto, com a natureza (intrínseca) dos efeitos que o acto se destina a introduzir na ordem jurídica, mas com a circunstância do acto e, portanto, com a questão (extrínseca e conjuntural) de saber se, em determinado momento, ele (já) está em condições de poder ser impugnado perante os tribunais, porque já foi observado o ritual da sua prévia impugnação administrativa.

Finalmente, é no plano da existência de interesse processual que fundamente a necessidade de recorrer à via judicial que, a ver do Professor Mário Aroso de Almeida, se coloca a questão de saber se o autor procedeu à prévia impugnação administrativa do acto que pretende impugnar contenciosamente.

Com efeito, a regra de que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa, que decorre do CPTA, assenta no princípio de que não é necessário, para haver interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos, que o autor demonstre ter tentado infrutiferamente obter a remoção do acto que considera ilegal por via extrajudicial. Tal como acontece no processo civil, “são variadas as razoes capazes de justificar o recurso directo à via judiciária e não parece razoável exigir do autor a explicação determinante da sua opção” (Professor Antunes Varela).

Já pelo contrário, nos casos em que legislação especial institui impugnações administrativas necessárias, a lei entende fazer depender o reconhecimento do interesse processual ao autor – ou seja, o reconhecimento da sua necessidade de tutela judiciária – da utilização das vias legalmente estabelecidas para tentar obter a resolução do litígio por via extrajudicial. Por conseguinte, quando, nesses casos, o interessado opte por impugnar o acto perante os tribunais sem ter feito prévio uso da impugnação administrativa necessária que ao caso a lei fazia expressamente corresponder, a sua pretensão deve ser rejeitada porque a lei não lhe reconhece o interesse processual que, no caso, se deveria sustentar na demonstração de ter tentado injustificadamente obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida.

O problema é exclusivamente de interesse em aceder à justiça, como bem demonstra a circunstância de a imposição de impugnações administrativas necessárias poder ser motivada tal como sucede, em termos gerais, com a exigência do requisito do interesse processual, pelo duplo propósito “evitar que as pessoas [entidades jurídicas] sejam levadas e forçadas a ir a juízo precipitadamente, numa situação em que a parte contrária [no caso, o impugnante] o não justifica” e de “não sobrecarregar com acções desnecessárias a actividade dos tribunais, cujo tempo é escasso para acudir a todos os casos em que é realmente indispensável a intervenção jurisdicional” (Professor Antunes Varela). 
João Mascarenhas de Carvalho. Aluno 18198

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