Uma das direcções em que o direito administrativo da
responsabilidade civil da Administração evoluiu no séc. XX foi no sentido de
uma cada vez maior responsabilização da Administração em ordem à protecção dos
lesados.
Nessa linha, constituem marcos decisivos quer a
autonomização do princípio da responsabilidade da Administração quer o
reconhecimento, primeiro pela jurisprudência em 1966 e depois pelo legislador,
de uma das consequências mais significativas de tal autonomização: a que
respeita à chamada “culpa do serviço” (ou “falta do serviço”).
O princípio tradicional em matéria de responsabilidade por
facto ilícito é o de a mesma ter uma base subjectiva: em regra, só há obrigação
de indemnizar se houver culpa (“princípio da responsabilidade subjectiva” ou “princípio
da culpa”). Mas, a culpa é uma noção eminentemente subjectiva: só agem com
culpa os indivíduos.
Por isso, para se considerar que uma pessoa colectiva agiu
com culpa, é preciso imputar essa culpa a
um ou mais indivíduos que tenham actuado, no exercício das suas funções, ao
serviço dessa pessoa colectiva (como titulares dos seus órgãos ou como seus
funcionários ou agentes).
Ora acontece muitas vezes na prática que não é fácil, ou é
mesmo impossível, apurar de quem foi a culpa de uma actuação de um serviço
público num certo caso concreto.
Emprega-se então a expressão culpa do serviço, ou falta do
serviço, para se significar um facto «anónimo e colectivo de uma administração
em geral mal gerida, de tal modo que é difícil descobrir os seus verdadeiros
autores».
Com efeito, cada vez mais nos nossos dias pode suceder que o
facto ilícito e culposo causador dos danos, sobretudo se revestir a forma de
omissão, não possa ser imputado a um autor determinado, ou a vários, devendo
antes sê-lo ao serviço público globalmente considerado.
Se tivermos em consideração o caso versado no acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Janeiro de 1966 (caso da muralha do Porto):
o Estado foi declarado responsável pelos danos causados pelo desmoronamento de
uma muralha antiga, existente na cidade do Porto, que destruiu casas e causou
mortes, em virtude da omissão das obras públicas de conservação que se
impunham. Supondo que não era possível determinar com precisão os órgãos ou
agentes responsáveis pela omissão- que pode ter-se diluído por múltiplos departamentos,
por diferentes níveis de chefia e por períodos muito dilatados-, seria justo
excluir pura e simplesmente a responsabilidade do Estado? É óbvio que não, pois
os lesados e suas famílias ficariam sem qualquer indemnização, mesmo que tivessem
perdido a única ou principal fonte de sustentação do rendimento familiar. Mas,
por outro lado, seria fictício, além de injusto, imputar formalmente o facto
danoso a este ou àquele funcionário, escolhido mais ou menos ao acaso, como
bode expiatório da organização geral.
O que importa é
reconhecer que a grande dimensão da Administração Pública, a complexidade das
suas funções, a constante variação dos seus servidores, a morosidade dos seus
processos de trabalho, a constante mudança de departamentos e de titulares de
cargos públicos, a rigidez das regras financeiras, e tantos outros factores de
efeito análogo, transformam muitas vezes uma sucessão de pequenas faltas desculpáveis,
ou até de dificuldades e atrasos legítimos, num conjunto unitariamente qualificável, ex post, como facto ilícito culposo.
Nestes casos, a responsabilidade da Administração perante as
vitimas não pode ser posta em dúvida: e todavia não há na sua base um
comportamento individual censurável. Há ilicitude, mas não há culpa individual,
ou individualizável. O Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 10 de Julho de
1969 admitiu expressamente, nos considerandos, a responsabilidade exclusiva da Administração,
sem o direito de regresso contra ninguém, «nos casos de simples mau funcionamento dos serviços». E a jurisprudência
posterior dos tribunais administrativos assumiu e consolidou esta mesma
doutrina- a da responsabilidade objectiva
da Administração por facto ilícito – que o legislador agora (passados mais de
quarenta anos) veio consagrar expressamente.
Assim, nos termos do
artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual
do Estado e Demais
Entidades Públicas,
«3- O Estado e as demais
pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não
tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou
agente determinado ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão,
mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço.
4- Existe funcionamento anormal do serviço
quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente
exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.»
A ilicitude da «falta do serviço», por sua vez, é estabelecida no
artigo 9.º, n.º 2, do mesmo diploma:
«Também existe ilicitude
quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do
funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º»
Mas repare-se: aqui há
ilicitude, mas não há culpa. Há falta do
serviço, ou funcionamento anormal do
serviço. Desapareceu a ideia de «culpa do serviço», que foi substituída pela
ideia de «mau funcionamento». A responsabilidade é, portanto, objectiva.
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