domingo, 2 de dezembro de 2012

Responsabilidade por funcionamento anormal do serviço




Uma das direcções em que o direito administrativo da responsabilidade civil da Administração evoluiu no séc. XX foi no sentido de uma cada vez maior responsabilização da Administração em ordem à protecção dos lesados.
Nessa linha, constituem marcos decisivos quer a autonomização do princípio da responsabilidade da Administração quer o reconhecimento, primeiro pela jurisprudência em 1966 e depois pelo legislador, de uma das consequências mais significativas de tal autonomização: a que respeita à chamada “culpa do serviço” (ou “falta do serviço”).
O princípio tradicional em matéria de responsabilidade por facto ilícito é o de a mesma ter uma base subjectiva: em regra, só há obrigação de indemnizar se houver culpa (“princípio da responsabilidade subjectiva” ou “princípio da culpa”). Mas, a culpa é uma noção eminentemente subjectiva: só agem com culpa os indivíduos.
Por isso, para se considerar que uma pessoa colectiva agiu com culpa, é preciso imputar essa culpa a um ou mais indivíduos que tenham actuado, no exercício das suas funções, ao serviço dessa pessoa colectiva (como titulares dos seus órgãos ou como seus funcionários ou agentes).
Ora acontece muitas vezes na prática que não é fácil, ou é mesmo impossível, apurar de quem foi a culpa de uma actuação de um serviço público num certo caso concreto.
Emprega-se então a expressão culpa do serviço, ou falta do serviço, para se significar um facto «anónimo e colectivo de uma administração em geral mal gerida, de tal modo que é difícil descobrir os seus verdadeiros autores».
Com efeito, cada vez mais nos nossos dias pode suceder que o facto ilícito e culposo causador dos danos, sobretudo se revestir a forma de omissão, não possa ser imputado a um autor determinado, ou a vários, devendo antes sê-lo ao serviço público globalmente considerado.
Se tivermos em consideração o caso versado no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Janeiro de 1966 (caso da muralha do Porto): o Estado foi declarado responsável pelos danos causados pelo desmoronamento de uma muralha antiga, existente na cidade do Porto, que destruiu casas e causou mortes, em virtude da omissão das obras públicas de conservação que se impunham. Supondo que não era possível determinar com precisão os órgãos ou agentes responsáveis pela omissão- que pode ter-se diluído por múltiplos departamentos, por diferentes níveis de chefia e por períodos muito dilatados-, seria justo excluir pura e simplesmente a responsabilidade do Estado? É óbvio que não, pois os lesados e suas famílias ficariam sem qualquer indemnização, mesmo que tivessem perdido a única ou principal fonte de sustentação do rendimento familiar. Mas, por outro lado, seria fictício, além de injusto, imputar formalmente o facto danoso a este ou àquele funcionário, escolhido mais ou menos ao acaso, como bode expiatório da organização geral.
 O que importa é reconhecer que a grande dimensão da Administração Pública, a complexidade das suas funções, a constante variação dos seus servidores, a morosidade dos seus processos de trabalho, a constante mudança de departamentos e de titulares de cargos públicos, a rigidez das regras financeiras, e tantos outros factores de efeito análogo, transformam muitas vezes uma sucessão de pequenas faltas desculpáveis, ou até de dificuldades e atrasos legítimos, num conjunto unitariamente qualificável, ex post, como facto ilícito culposo.
Nestes casos, a responsabilidade da Administração perante as vitimas não pode ser posta em dúvida: e todavia não há na sua base um comportamento individual censurável. Há ilicitude, mas não há culpa individual, ou individualizável. O Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 10 de Julho de 1969 admitiu expressamente, nos considerandos, a responsabilidade exclusiva da Administração, sem o direito de regresso contra ninguém, «nos casos de simples mau funcionamento dos serviços». E a jurisprudência posterior dos tribunais administrativos assumiu e consolidou esta mesma doutrina- a da responsabilidade objectiva da Administração por facto ilícito – que o legislador agora (passados mais de quarenta anos) veio consagrar expressamente.
Assim, nos termos do artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual
do Estado e Demais Entidades Públicas,

«3- O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço.

  4- Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.»

A ilicitude da «falta do serviço», por sua vez, é estabelecida no artigo 9.º, n.º 2, do mesmo diploma:

«Também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º»

Mas repare-se: aqui há ilicitude, mas não há culpa. Há falta do serviço, ou funcionamento anormal do serviço. Desapareceu a ideia de «culpa do serviço», que foi substituída pela ideia de «mau funcionamento». A responsabilidade é, portanto, objectiva.

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