"Reforma do contencioso administrativo não pode sofrer mais
adiamentos", defende presidente do Supremo Tribunal Administrativo.
PÚBLICO -
O contencioso administrativo está numa fase de viragem. Que expectativa tem
quanto à entrada em vigor do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais?
Manuel Santos Serra – A jurisdição
administrativa e fiscal é de importância fundamental no ordenamento jurídico
português e comunitário. É por aqui que passa, nomeadamente, a defesa da cidadania, a tutela
judicial plena e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos perante administração. A reforma do contencioso administrativo
visa dotar os tribunais administrativos e fiscais dos meios necessários para
que o aprofundamento, na lei, da proteção das posições jurídicas dos cidadãos
se reflita, de facto, na prática do nosso sistema judicial e na vida do cidadão
comum.
PÚBLICO – Esta revisão legislativa vai contribuir para o fim da morosidade
crónica processual dos tribunais administrativos e fiscais?
M.S.S. –
Penso que sim. A clarificação da área de atuação dos tribunais administrativos
e fiscais nas zonas de fronteira com a área tradicionalmente reservada aos
tribunais judiciais constituirá um passo decisivo no tocante à desnecessária
multiplicação de conflitos e à empedernida morosidade processual.
PÚBLICO – As ações intentadas contra o Estado têm duas jurisdições – a administrativa
e a cível. Concorda com esta situação?
M.S.S. – Nos casos em que as
fronteiras entre direito público e privado se esbatem ou em que a administração
faz uso do direito privado, mas, ainda assim, visa a prossecução do interesse
público, constitui uma opção político-legislativa a atribuição ou não aos
tribunais administrativos da competência para dirimir eventuais conflitos. É
preferível, porém, optar por uma só jurisdição – a administrativa, com vista a tornar claro aos cidadãos o
tribunal a que devem recorrer para defesa dos seus direitos.
O
Contencioso Administrativo português foi objeto de uma importante reforma.
Sucessivamente
prometida e adiada ao longo de quase vinte anos, a reforma do Contencioso Administrativo
foi reconhecida como absolutamente indispensável à plena instituição
do Estado de Direito democrático em Portugal. O Contencioso Administrativo
português ainda não tinha sido objeto, desde a instituição da democracia, da
reforma profunda que se impôs.
- Em primeiro lugar, no plano da organização e funcionamento dos tribunais:
Com efeito,
o enorme crescimento da litigiosidade em matéria administrativa exigia que se
procedesse à reorganização do quadro das competências dos respetivos tribunais,
libertando os tribunais superiores das vastas competências de julgamento em
primeira instância e criando uma rede de tribunais administrativos de
primeira instância que permitiria uma adequada cobertura do território
nacional.
Trata-se de,
pela primeira vez, criar e instalar uma rede de tribunais administrativos e
fiscais de primeira instância,
dimensionada para cobrir todo o território nacional, por forma a dar finalmente
a resposta adequada ao crescimento exponencial de litígios. Foram praticamente
eliminadas as competências em primeira instância que eram atribuídas ao
Tribunal Central Administrativo e ao Supremo Tribunal Administrativo, sendo
que todos os processos passaram a ser julgados, em primeira instância,
pelos Tribunais Administrativos de Círculo.
Foi, igualmente,
assumida a opção de extinguir, em 1 de Janeiro de 2004, o Tribunal Central
Administrativo, substituindo-o por dois Tribunais Centrais Administrativos, o
Tribunal Central Administrativo Norte e o Tribunal Central Administrativo Sul. Os
novos Tribunais Centrais Administrativos passaram a ser, a exemplo do que
sucede com os Tribunais da Relação, a instância normal de recurso (de apelação)
das decisões proferidas pelos tribunais de primeira instância (cfr. artº 37º
do ETAF), sem prejuízo da existência de um (excecional) recurso de
revista, per saltum, para o Supremo
Tribunal Administrativo, circunscrito à apreciação de questões de direito
(cfr. artº 151º do CPTA).
- Em segundo lugar, no plano da regulação do regime processual:
O regime processual
do contencioso administrativo permaneceu, no essencial, fiel a um modelo assente, à maneira francesa, no recurso contencioso de anulação de atos administrativos, para além de que era caracterizado
por um excessivo formalismo, que dificultava o acesso à justiça, dando origem a
um elevado nÚmero de decisões em que o tribunal não se chegava a pronunciar
sobre o mérito das causas.
Também neste
plano, a reforma era indispensável à concretização do direito à tutela judicial
efetiva dos cidadãos perante os poderes públicos, que resulta do modelo jurídico-constitucional
vigente. Com efeito, a Constituição consagra o direito à tutela judicial efetiva
perante os poderes públicos, assumindo expressamente, que esse direito se concretiza, não só na impugnação de atos
administrativos e de regulamentos, mas também na possibilidade de obter o reconhecimento
de direitos ou interesses, a determinação da prática de atos administrativos
legalmente devidos e a adoção das providências cautelares adequadas:
cfr. artigo 268º, nºs 4 e 5, da Constituição.
No plano da
regulação do processo, o aspeto mais relevante da reforma tem, pois, que ver
com a concretização do imperativo constitucional de assegurar que os
tribunais administrativos proporcionam uma tutela jurisdicional efetiva a
quem a eles se dirige em busca de proteção. O propósito de cumprir esse imperativo
é assumido no artigo 2º do CPTA.
A jurisdição
administrativa deixa, na verdade, de ser uma jurisdição de poderes limitados,
a cujos juízes não era reconhecida a possibilidade de emitir todo o tipo de
pronúncias, o que implica a superação da tradicional inibição em reconhecer aos
tribunais administrativos amplos poderes de condenação da Administração. Ultrapassa-se, deste
modo, uma tradicional limitação do contencioso administrativo de tipo francês.
Um dos
pontos que mais consensualmente eram considerados críticos do nosso
contencioso administrativo era o da tutela cautelar. Com efeito, a tutela
cautelar no contencioso administrativo português manteve-se fundamentalmente
centrada no clássico instituto da suspensão da eficácia dos atos administrativos. Nesta matéria,
o artigo 112º do CPTA introduz uma cláusula aberta pela qual se reconhece a
todo aquele que possua legitimidade para intentar um processo junto dos
tribunais administativos o poder de requerer a adopção de toda e qualquer
providência cautelar, antecipatória ou conservatória, que se mostre
adequada a assegurar a utilidade da sentença que pretende obter nesse
processo.
O último dos
planos em que se joga de modo decisivo a efetividade da tutela judicial é o
da execução das sentenças. Ora, o contencioso administrativo português não
previa, até aqui, nenhum verdadeiro processo executivo. Com a reforma do
contencioso administrativo, pelo contrário, é pela primeira vez consagrado o
poder de os tribunais administrativos adotarem verdadeiras providências de
execução das suas decisões.
Nas palavras do Professor Mário Aroso de Almeida, a reforma do
regime do processo no contencioso administrativo que entrou em vigor em 1 de
Janeiro de 2004 é muito profunda, podendo mesmo dizer-se que se trata de uma verdadeira revolução mediante a qual
se institui um novo contencioso administrativo,
que se afasta da primitiva matriz francesa para se aproximar do modelo
alemão; trata-se de fazer,
finalmente, corresponder o nosso contencioso administrativo ao modelo mais
consentâneo com os modernos padrões de relacionamento dos cidadãos
com a Administração Pública (e das próprias Administrações Públicas
entre si) que, nas democracias ocidentais, se afirmou após o termo da Segunda
Guerra Mundial.
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