terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lembrar o que hoje é o Contencioso Administrativo


"Reforma do contencioso administrativo não pode sofrer mais adiamentos", defende presidente do Supremo Tribunal Administrativo.


PÚBLICO - O contencioso administrativo está numa fase de viragem. Que expectativa tem quanto à entrada em vigor do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais?

Manuel Santos Serra – A jurisdição administrativa e fiscal é de importância fundamental no ordenamento jurídico português e comunitário. É por aqui que passa, nomeadamente, a defesa da cidadania, a tutela judicial plena e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos perante administração. A reforma do contencioso administrativo visa dotar os tribunais administrativos e fiscais dos meios necessários para que o aprofundamento, na lei, da proteção das posições jurídicas dos cidadãos se reflita, de facto, na prática do nosso sistema judicial e na vida do cidadão comum.

PÚBLICO – Esta revisão legislativa vai contribuir para o fim da morosidade crónica processual dos tribunais administrativos e fiscais?
 
M.S.S. – Penso que sim. A clarificação da área de atuação dos tribunais administrativos e fiscais nas zonas de fronteira com a área tradicionalmente reservada aos tribunais judiciais constituirá um passo decisivo no tocante à desnecessária multiplicação de conflitos e à empedernida morosidade processual. 

PÚBLICO – As ações intentadas contra o Estado têm duas jurisdições – a administrativa e a cível. Concorda com esta situação? 

M.S.S. – Nos casos em que as fronteiras entre direito público e privado se esbatem ou em que a administração faz uso do direito privado, mas, ainda assim, visa a prossecução do interesse público, constitui uma opção político-legislativa a atribuição ou não aos tribunais administrativos da competência para dirimir eventuais conflitos. É preferível, porém, optar por uma só jurisdição – a administrativa, com vista a tornar claro aos cidadãos o tribunal a que devem recorrer para defesa dos seus direitos. 

 
O Contencioso Administrativo português foi objeto de uma importante reforma.
Sucessivamente prometida e adiada ao longo de quase vinte anos, a re­for­ma do Con­ten­cioso Administrativo foi reconhecida como ab­so­­luta­men­te in­dis­pen­sável à plena ins­ti­tuição do Estado de Direito democrático em Portugal. O Con­ten­cio­so Adminis­tra­tivo português ainda não tinha sido objeto, desde a ins­tituição da de­mo­cracia, da reforma profunda que se impôs.

  • Em primeiro lugar, no plano da organização e funcionamento dos tribunais:
Com efeito, o enorme crescimento da litigiosidade em matéria administrativa exigia que se procedesse à reorganização do quadro das competências dos respetivos tribunais, libertando os tribunais superiores das vastas competências de jul­ga­mento em pri­meira ins­tân­cia e criando uma rede de tri­bu­nais administrativos de primeira ins­tân­cia que permitiria uma adequada cobertura do território nacional.
 
Trata-se de, pela primeira vez, criar e instalar uma rede de tribunais administrativos e fiscais de primeira instância, dimensionada para cobrir todo o território nacional, por forma a dar finalmente a resposta adequada ao crescimento ex­ponencial de litígios. Foram praticamente eliminadas as competências em primeira instância que eram atribuídas ao Tribunal Central Ad­mi­nis­tra­tivo e ao Supremo Tribunal Administrativo, sendo que to­dos os processos passaram a ser julgados, em pri­meira ins­tân­cia, pelos Tribunais Administrativos de Círculo.
 
Foi, igualmente, assumida a opção de extinguir, em 1 de Janeiro de 2004, o Tribunal Cen­tral Administrativo, substituindo-o por dois Tribunais Centrais Administrativos, o Tribunal Central Administrativo Norte e o Tribunal Central Administrativo Sul. Os novos Tribunais Centrais Administrativos passaram a ser, a exem­plo do que sucede com os Tribunais da Relação, a ins­tância normal de recurso (de ape­la­ção) das de­ci­sões proferidas pelos tribunais de primeira instância (cfr. artº 37º do ETAF), sem prejuízo da existência de um (ex­ce­cio­nal) re­cur­so de revista, per sal­tum, para o Su­pre­mo Tri­bunal Ad­mi­nis­tra­tivo, circunscrito à apreciação de questões de direito (cfr. artº 151º do CPTA).
 
    • Em segundo lugar, no plano da regulação do regime processual:
O regime pro­­ces­­sual do con­­ten­cio­so administrativo permaneceu, no essencial, fiel a um modelo assente, à ma­nei­ra fran­cesa, no recurso contencioso de anulação de a­tos ad­mi­nis­tra­ti­vos, para além de que era caracterizado por um excessivo formalismo, que dificultava o acesso à justiça, dando origem a um elevado nÚmero de decisões em que o tribunal não se chegava a pronunciar sobre o mérito das causas.
 
Também neste plano, a reforma era in­dis­pensável à concretização do di­rei­to à tutela ju­dicial efetiva dos cidadãos perante os poderes públicos, que resulta do mo­de­lo jurí­di­co-consti­tu­cional vigente. Com efeito, a Cons­ti­tui­ção consagra o direito à tutela judicial efetiva perante os poderes públicos, assumindo expressamente, que esse di­rei­to se concretiza, não só na im­pugnação de a­tos administrativos e de regulamentos, mas tam­bém na possibilidade de obter o re­­co­nhe­cimento de di­reitos ou in­te­res­ses, a de­ter­mi­nação da prática de atos ad­­minis­tra­ti­vos le­gal­men­te de­­vi­dos e a ado­ção das providências cau­telares adequadas: cfr. artigo 268º, nºs 4 e 5, da Constituição.
 
No plano da regulação do processo, o aspeto mais relevante da reforma tem, pois, que ver com a concretização do im­pe­ra­tivo cons­ti­tu­cional de assegurar que os tribunais ad­mi­nis­trativos proporcionam uma tu­tela jurisdicional efetiva a quem a eles se dirige em busca de proteção. O propósito de cumprir esse imperativo é assumido no artigo 2º do CPTA.
 
A juris­di­­ção ad­ministrativa deixa, na verdade, de ser uma juris­di­ção de po­de­res limi­ta­dos, a cujos juízes não era reconhecida a possibilidade de emitir todo o tipo de pronúncias, o que implica a superação da tradicional inibição em reconhecer aos tribu­nais ad­mi­nis­tra­tivos amplos poderes de condenação da Administração. Ultrapassa-se, deste modo, uma tradicional limitação do contencioso administrativo de tipo francês.
 
Um dos pontos que mais consen­sualmente eram considerados críticos do nosso contencioso administrativo era o da tutela cautelar. Com efeito, a tutela cautelar no con­ten­cio­so ad­mi­nis­tra­tivo português manteve-se fun­da­men­tal­men­te cen­trada no clássico ins­ti­tuto da suspensão da eficácia dos atos ad­ministrativos. Nesta matéria, o artigo 112º do CPTA introduz uma cláusula aberta pela qual se reconhece a todo aquele que possua legitimidade para in­tentar um processo junto dos tribunais ad­mi­nis­tativos o po­der de requerer a adopção de toda e qual­quer providência cautelar, ante­ci­pa­tó­ria ou con­ser­­va­­tória, que se mostre ade­qua­da a as­se­gurar a utilidade da sentença que pre­tende obter nesse processo.
 
O último dos planos em que se joga de modo decisivo a efeti­vi­da­de da tutela judicial é o da execução das sentenças. Ora, o contencioso administrativo português não previa, até aqui, nenhum verdadeiro processo executivo. Com a reforma do contencioso administrativo, pelo contrário, é pela primeira vez consagrado o poder de os tribu­nais administrativos adotarem ver­da­dei­­ras providências de exe­cu­ção das suas de­ci­sões.
 
Nas palavras do Professor Mário Aroso de Almeida, a reforma do regime do processo no contencioso administrativo que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2004 é muito profunda, podendo mesmo dizer-se que se trata de uma ver­da­deira revolução mediante a qual se ins­ti­tui um novo contencioso ad­mi­nis­tra­­tivo, que se afasta da primitiva matriz francesa para se apro­xi­mar do modelo alemão; trata-se de fazer, finalmente, corres­pon­­der o nosso contencioso administrativo ao modelo mais con­sen­tâ­neo com os modernos padrões de re­la­­cio­na­men­to dos ci­da­dãos com a Ad­mi­nistração Pú­bli­ca (e das pró­­prias Ad­ministrações Públicas entre si) que, nas democracias ocidentais, se afirmou após o termo da Se­gun­da Guerra Mun­dial.

Sem comentários:

Enviar um comentário