quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A psicanálise da urgência no contencioso administrativo subjectivista


Conhecemos a história e os “traumas” (agora superados) do contencioso administrativo. É efectivamente com a subjectivização que, o “renovado” contencioso administrativo, consagra uma tutela jurisdicional efectiva dos particulares, acautelando por isso, que a cada direito, interesse, liberdade ou garantia, haja um meio idóneo à sua defesa em juízo. Estes meios[1] são hoje essencialmente: a acção administrativa comum, a acção administrativa especial e a tutela cautelar.

Para aquilo que por ora interessa, toma-se em consideração a tutela cautelar. Diga-se, antes de tudo o resto, que a tutela cautelar é o meio adequado a uma tutela jurisdicional, que determinado particular obtém do tribunal, visando acautelar o seu direito, liberdade ou garantia, em tempo útil, quando a opção por um meio de tutela normal não seja suficiente e haja a possibilidade de se provocar um qualquer dano irreversível com a actuação da administração. Em certo sentido, pode-se afirmar, que a tutela cautelar é a garantia de uma garantia do particular, garantida constitucionalmente (vide art.268º/4 da Constituição).

Invariavelmente, a par da utilidade que tal meio tem para a defesa do particular, a tutela cautelar constitui também uma incumbência aos tribunais administrativos, que pela constitucionalização do contencioso administrativo, veio a exigir que estes proporcionassem uma tutela jurisdicional efectiva, a todos os sujeitos (não só os particulares, embora paradigmaticamente se os refira), que necessitem de recorrer a estes meios.  Este campo comum de atribuição de tutela pelos particulares e para os particulares resulta da subjectivização operada no seio do contencioso: o processo contencioso acautela as partes (sendo por isso referido a esse propósito, que este é também um processo de partes) e incumbe o juiz de poderes de cognição e de decisão.

Todavia, que não se perca de vista aquilo a que aqui se alude: os processos urgentes autónomos. Estes são enunciados primeiramente no art.36º/1 do CPTA. À luz do artigo, referem-se, o “caracter de urgência” é dado aos processos relativos ao contencioso eleitoral (al.a)); ao contencioso pré-contratual (al.b)); à intimação para a prestação de informações, consulta de documentos ou passagem de certidões (al.c)); à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias (al.d)); e às providências cautelares (al.e)). Decorre também da letra da lei que estes sãos os processos urgentes previstos na lei, “sem prejuízo dos demais casos”. Esta expressão, introduzida pelo legislador, permite que se alcance a ratio não só da norma mas também daquilo que esteve presente no espírito do legislador. A intenção foi inequivocamente a de criar um mecanismo de resolução célere e flexível dos conflitos, criando para isso certos tipos específicos de tutelas cautelares e abrindo ao mesmo tempo, espaço para outras, que apesar de não consagradas especificamente, possam vir a ter lugar. É claro, que também se tomou em linha de conta a demora da resolução dos litígios da justiça administrativa. Por essa razão, e para que se mantivesse um efeito útil de uma decisão, isto é, para que, uma qualquer pretensão jurídico-administrativa não perdesse a sua razão de ser, criou-se no contencioso administrativo urgente, a par dos processos principais, as providências cautelares.

Os processos urgentes principais, são autónomos e caracterizam-se por terem uma tramitação mais simplificada e mais célere, pois a questão que gera o conflito necessita de uma resolução num curto espaço de tempo. Aqui, ao contrário daquilo que sucede nas providências cautelares, decide-se definitivamente o mérito da causa.  

Já relativamente à tutela cautelar, esta é subsidiaria ao processo principal, pois pretende-se que através de medidas conservatórias ou antecipatórias, seja uma qualquer situação, regulada provisoriamente, tendo-se em vista assegurar a utilidade da sentença num espaço de tempo normal.

Não obstante da distinção que o legislador tomou, ambos os processos são urgentes. Aquilo que os deferência é essencialmente seu alcance e “impacto” da questão. Os principais “resolvem” enquanto os cautelares não. Todavia é imperativo respeitar a escolha do legislador e a sistemática do CPTA. Por isso, são Processos Urgentes principais (Título IV do CPTA) as impugnações urgentes (capítulo I deste Título do CPTA) e as intimações urgentes (capítulo II deste Título do CPTA). Nos primeiros englobam-se as impugnações de actos administrativos em matéria eleitoral (art.97º do CPTA) e o contencioso pré-contratual (art.100º e ss. do CPTA). Nos segundos englobam-se também dos tipos: as intimações para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (art.104 e ss) e as intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias (art.109º e ss).

Tomando em linha de conta, a tão afamada subjectivização do contencioso, que não só supra se mencionou, mas se tem vindo a mencionar também nas análises publicadas anteriormente, segue-se neste linha de raciocínio importante considerar as intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias. A mais verifica-se que o subjectivismo alcançado com a constitucionalização do contencioso, o próprio art.20º/5 da Constituição veio a influenciar o contencioso administrativo. Nele se estatui que em vista da “defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva em tempo útil”. Esta tutela judicial é em primeiro caso uma resposta da justiça administrativa, à solicitação de tutela de direitos ou interesses, articulando-se o direito em causa com uma acção mais adequada para fazê-lo valer em juízo.  Além disso, recorde-se que a intimação desencadeia no âmbito dos processos urgentes, uma decisão que atinge o mérito da causa, superando por isso as dificuldades da tutela cautelar[2].

A intimação, que serve o propósito primordial do legislador constitucional de protecção de direitos, liberdades e garantias, levanta ainda uma importante questão: serão unicamente os direitos pessoais que estão na ratio da intimação, ou poderá ser dado maior alcance, estendendo-se por isso a outros direitos que não somente os pessoais?[3]

Parece impor-se uma resposta negativa. No seguimento de Viera de Andrade, Mário Aroso de Almeida e Vasco Pereira da Silva, parece que não há razão aparente para que se limite o alcance aos direitos pessoais. O Mestre Tiago Antunes, refere nas suas aulas práticas, que “neste sentido o legislador ordinário foi mais abrangente que o constitucional”. É este o balanço do confronto do art.20º/5 da Constituição com o art.109º do CPTA. Efectivamente parece não haver qualquer base que sustente uma interpretação restritiva. O entendimento do art.17º da Constituição reforça ainda mais este sentido, ao afirmar que “o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II (art.24º a 57º da Constituição) e aos direitos fundamentais de natureza análoga”. Conforme refere Ana Sofia Firmindo[4] “não tendo o CPTA restringido esse âmbito de aplicação, não cabe obviamente ao intérprete fazê-lo”. Assim justifica-se que estejam abrangidos pelo sentido da norma, todos os direitos de natureza análoga aos direitos fundamentais.
A análise presente, da intimação, leva a que se mencione também o seu caracter subsidiário. No disposto do art.109º/1 do CPTA é expressa a referência a esta subsidiariedade – “ a intimação (…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito (…) imponha à Administração a adopção de uma conduta (…) por não ser possível (…) o decretamento provisório de uma providência cautelar” nos termos do art.131º do CPTA. Da subsidiariedade da intimação é possível concluir que, apesar de ser um processo urgente principal, não é de todo o processo urgente normal ou primeiro. O detalhe desta análise, não pode fazer esquecer que contra a actuação (ou omissão) da Administração se reage através das acções administrativas comuns ou especiais. A intimação é subsidiária e além disso, deve ser manifesta a urgência de uma decisão para dela se poder lançar mão. A providência cautelar prevalece nesta lógica sobre a intimação[5]. Também é preciso lembrar que para se socorrer da intimação, terá de se provar a sua indispensabilidade “para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade e garantia. Entretanto é fulcral não esquecer que ainda assim a providência é instrumental e provisória, não atingindo por isso uma decisão de mérito.  

Deste confronto faz sentido estabelecer uma certa articulação. É o próprio Mestre Tiago Antunes que refere, que há uma articulação, “não pela urgência mas sim pela definitividade ou não”. Veja-se que a intimação é um processo urgente e principal, que segue uma tramitação sumária, apta a uma decisão de mérito definitiva. Enquanto o decretamento provisório da providência cautelar é uma decisão urgente mas provisória, pelo que não é por si, o meio apto a uma decisão mérito definitiva. Pelo contrário, o decretamento provisório de uma providência é apto para proteger um direito, liberdade ou garantia, mas “espera” que a acçao onde segue, decidida definitivamente o caso, não descorando que em algumas situações, antecipa até essa decisão, na medida em que com ela for congruente[6].

Coloca-se uma ultima questão: no caso de o juiz é chamado a proferir uma intimação e verifique que não se encontram preenchidos os critérios de que depende a sua aplicação, e entender que é suficiente recorrer ao decretamento provisório de uma providência cautelar, nos termos do art.131º do CPTA, como deve proceder? Parece que uma resposta possível será a que permite ao juiz proceder à convolação oficiosa do processo, num processo cautelar segundo o disposto do art.131ºCPTA. Esta solução alicerça-se na tutela judicial efectiva e na efectividade dos direitos, liberdades e garantias.

Desta forma é possível retomar a questão inicialmente exposta. A intervenção do juiz neste caso é fruto da constitucionalização do contencioso administrativo, que veio permitir ao juiz um alargamento dos seus poderes de cognição e de decisão. A subjectivização do contencioso administrativo, materializa-se assim, perante o âmbito em análise, numa dupla funcionalidade: defesa de direitos, liberdades e garantias dos particulares, para os particulares, pelo juiz.

Diogo Duarte
nº18107

[1] Refira-se que sendo subsidiariamente aplicável o código de processo civil (art.1º CPTA), parece ser de admitir que os meios probatórios são também eles aplicáveis, alargando assim, a possibilidade de defesa de tais direitos, liberdades, garantias e interesses. É também possível, por esta remissão, concretizar que, mais uma vez, a evolução histórica do contencioso administrativo, sobretudo com a constitucionalização (“milagre” do contencioso), se demonstra o ponto de ruptura com o antigo contencioso objectivista.
[2] A que já se sabe, faltar o caracter da definitividade.
[3] Veja-se que é o próprio artigo 20º/5 da Constituição que refere a “defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais”.
[4] Vide Ana Sofia Firmindo, “novas e velhas andanças…”, Lisboa.
[5] Alguma doutrina tem entendido que este “nexo” de subsidiariedade da intimação em relação ao decretamento provisório de uma providência cautelar, estende-se às providências cautelares específicas de protecção de direitos, liberdades e garantias. Parece que este entendimento é razoável se se entender, como sendo paradigmático, o art.131º do CPTA. De facto o interprete não tem de ficar preso somente à letra da lei. A ratio da norma parece admitir esta extensão.  
[6] Caso contrário cabe ao juiz altera-la ou levanta-la. 

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