quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O limitado âmbito de aplicação do artigo 73.º/2 do CPTA


Nos artigos 72.º e ss do CPTA, prevê-se o regime para a impugnação (direta) de normas, e na mesma secção a declaração de ilegalidade por omissão (76.º ss). É quanto à impugnação de regulamentos, que no artigo 73º se estipula determinados pressupostos de aplicação deste regime, e é quanto ao número 2 desse artigo que me vou ocupar neste comentário.

Em primeiro lugar cumpre lembrar que estamos no âmbito de uma acção administrativa especial, enquanto meio processual do atual Contencioso Administrativo, nomeadamente corresponde a um meio não urgente e principal.

Em segundo lugar impõe-se recordar, que tem de estar em causa uma das situações previstas no 72.º/1.

Em terceiro lugar, no âmbito deste meio processual, é possível configurar quatro tipos de casos, a saber: a impugnação de normas com força obrigatória geral (73.º/1); sem força obrigatória geral (73.º/2), sendo que é este tipo, que vai ser neste comentário analisado; e dois casos a pedido do Ministério Público (73.º/4 e /5).

O 73.º/2 estatui a desaplicação da norma em causa, através do pedido de declaração da sua ilegalidade, com efeitos somente para o caso concreto. Para tal exige-se o preenchimento de determinados requisitos, sendo que um me parece ser algo apertado. Veja-se que, a disposição legal tem por referência quem alegue ser lesado pelos efeitos da norma ou as pessoas/entidades em defesa dos valores mencionados no art.9.º/2, impondo ademais, que os efeitos da norma se produzam imediatamente e não dependam de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação. É no tocante, à dita produção de efeitos imediatos que surgem as maiores dúvidas, isto porque não é líquida a forma de projecção que aqui se exige.

Se em determinados casos, como aqueles, em que está em causa a necessidade de atos autorizadores, como os atos camarários de licença, se configura mais fácil a solução, na medida em que sem grandes dúvidas se percebe que não cabe na letra da lei, por se tratar de um ato intermediário de que vai depender a produção de efeitos da norma. Noutros a solução configura-se bastante duvidosa.
A somar, a esta dificuldade estão casos de injustiça relativa, por exemplo, as situações em que o particular com receio de incorrer numa situação de desobediência legal ou incumprimento, primeiro cumpre e só depois pretende impugnar o regulamento; ou situações em que embora seja necessário um acto autorizador, o particular antes mesmo de requerer a autorização decide impugnar o regulamento, por lhe ir ser aplicável aquando do pedido de autorização.
Nestes dois últimos casos, parece-me extremamente injusto, se pensarmos em termos relativos com os dois primeiros, a solução de aplicação do 73.º/2, não porque considere que não são merecedores da tutela conferida pelo artigo, mas antes porque leva a que no fundo se imponha aos particulares a adoção de tais comportamentos, sob pena de caírem na fronteira dos dois primeiros casos.
É por isso, com base na potencialidade elucidativa destes dois últimos exemplos, que se impõe repensar a aplicação rígida deste preceito.

Em suma, por vezes é muito difícil concretizar este critério de produção de efeitos imediatos na esfera jurídica do particular, emergindo, no meu ponto de vista, situações de ofensa ao direito fundamental de impugnação de regulamentos (268.º/5 CRP) e violação do princípio da legalidade do Estado de Direito. Não obstante, como refere expressamente a primeira parte do 73.º/2, não ser prejudicada a aplicação do 73.º/1 pelos lesados.

Outra crítica passível de ser apontada a este artigo é a eventual confusão entre a desaplicação da norma e a declaração da ilegalidade, atendendo à letra do preceito legal, na parte final.

Ainda assim, como alternativa aos obstáculos supra elencados, pode pedir-se paralelamente a fiscalização incidental de normas, que leva à desaplicação da norma no caso concreto. Não obstante, tal fiscalização não ter sido objecto de nenhuma previsão legal no CPTA.

Todavia, é de reconhecer que o caminho adotado pelo legislador, aquando da Reforma do Contencioso, veio no sentido de uniformizar o regime jurídico, na medida em que procurou e pôs fim à dicotomia e pluralidade de meios processuais, que antes vigoravam nesta matéria. E a este respeito o professor Vasco Pereira da Silva, aponta satisfeitamente mais um caso de superação da “esquizofrenia”, concretamente no seio processual do contencioso de normas jurídicas.

Não obstante, na minha opinião, em certos aspectos, é conferido ao particular um tratamento menos favorável do que era conferido no anterior Contencioso Administrativo. Para tal, basta ter-se presente que antes não havia condicionalismos materiais à pretensão de afastar uma norma administrativa da ordem jurídica portuguesa, e atualmente por força de haverem os supra referidos, por vezes não é concedida, pela via do 73º/2 tutela aos particulares ou a ser, admite-se que possa haver uma sentença que declara a ilegalidade de uma norma geral e/ou abstrata apenas para o caso concreto, resultante de um processo destinado a apreciar a legalidade de um regulamento, a título principal, em que se verificou a existência de uma invalidade.

Em suma, parece-me que além do critério de aplicação previsto no 73.º/2 ser de difícil concretização, em certos casos; é curto e rígido, preterindo a defesa dos interesses dos particulares e sacrificando direitos que lhes são constitucionalmente reconhecidos, salvo a eventual aplicação das duas outras soluções apresentadas (73.º/1 ou apreciação incidental); e incompatível com a lei fundamental e os seus valores princípios basilares, por admitir em certos casos a manutenção da ilegalidade, isto é, por uma sentença declarar a ilegalidade de uma norma jurídica, mas simultaneamente deixá-la subsistir na ordem jurídica. A ser assim, e sem que tudo isto resulte da ponderação de outros valores ou bens a salvaguardar, leva-me a concluir que implicitamente há lugar a uma limitação/restrição da aplicação desta disposição legal, que tem como consequência o estabelecimento de um limitado campo de aplicação deste preceito, desvirtuando a potencialidade e objectivos traçados para este regime, aquando da reforma.

Nas palavras do professor Vieira de Andrade: “ (…) resta esperar pela reforma da reforma.”.


Joana Beirão - 19656

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