Tradicionalmente as actos administrativos distinguem-se, quanto aos
efeitos, em actos positivos e em actos negativos. Enquanto que os primeiros
produzem uma alteração na ordem jurídica, os segundos consistem, pelo
contrário, uma recusa de introdução de uma mudança no ordenamento,
concretizando-se numa omissão de um comportamento devido ou no indeferimento de
uma pretensão apresentada(1).
Em sede da LPTA, esta contraposição era da maior importância, uma vez que
a única tutela cautelar que existia no antigo contencioso administrativo era a
suspensão da eficácia de actos administrativos, tutela esta que, de acordo com a
jurisprudência e a doutrina dominante, seria restrita aos actos de conteúdo positivo(2).
Com a Reforma de 2004, a par das providências conservatórias, foram
introduzidas providências antecipatórias, em sistema aberto, não sujeito a numerus clausus. Aparentemente a antiga
distinção teria perdido o interesse, visto que ambas as situações são agora
objecto de tutela cautelar. No entanto, tal afirmação não é totalmente exacta.
De facto, do regime da suspensão da eficácia resultam importantes prerrogativas
que não se observam no regime geral da
tutela cautelar, nomeadamente, a proibição automática de execução do acto
administrativo, consagrada no artigo 128º CPTA. Dir-se-ía, no entanto, que o decretamento
provisório das providências antecipatórias (artigo 131º) cumpriria a mesma
finalidade da proibição de execução do acto, isto é, evitar o periculum in mora do próprio
procedimento cautelar. Todavia, o decretamento provisório não opera de forma
automática, estando sujeito a despacho judicial, que obedece aos apertados requisitos
do nº 3 do artigo 131º e está sujeito a revisão, uma vez ouvidas as partes
(artigo 131 nº 6). Por tudo isto, tem ainda interesse perguntar se pode ser
requerida a suspensão de actos de conteúdo negativo. Para responder a esta
questão cabe aprofundar a distinção tradicional entre actos negativos e
positivos, bem como analisar a resposta que era dada em sede da LPTA.
Para efeitos da admissibilidade da suspensão da eficácia na vigência da
LPTA, distinguiam-se os puros actos negativos dos actos negativos que produzem
efeitos positivos. Nos segundos, o particular teria um interesse na conservação
de uma situação ou bem jurídico de que fosse titular (interesse opositivo), que
a administração pretendesse privar ou restringir por via de um acto ablativo –
o particular visa a manutenção da situação jurídica titulada tal como esta se
mantinha anteriormente à actuação administrativa, isto é, tem uma pretensão
conservatória(3). Nos segundos, o particular
tem um interesse na obtenção de um bem
jurídico (interesse pretensivo), orientado para uma decisão de carácter
ampliativo da sua esfera jurídica através de uma conduta administrativa, de
carácter autorizativo, concessório ou permissivo – o particular tem uma pretensão
ampliativa (4)(5).
A este propósito, surgiu a concepção segundo a qual os actos administrativos
de conteúdo negativo não eram susceptíveis de suspensão de eficácia, pois esta
não era apta a conceder uma vantagem ou benefício de que o particular ainda não
goze. Desta forma, o meio cautelar de suspensão de eficácia não seria útil para
imediatamente oferecer uma protecção aos interesses materiais do requerente. “Aliás, uma eventual anulação do acto
impugnado também não o faria. E não se vislumbra como fundamentar que uma
tutela provisória, destinada a assegurar a utilidade prática da tutela
definitiva, deva afinal ser mais útil do que esta e atribuir ela própria o que
a segunda não pode dar. A relativa ineficácia do contencioso de anulação em
relação à tutela face a actos negativos não pode deixar de ter consequências
quanto à correspondente tutela provisória.”(6)
Nestes casos, a posição jurídica do particular apenas conseguiria ser tutelada
através de uma providência antecipatória que, recorde-se, não existia em sede
da LPTA. (7)
Já a suspensão da eficácia de actos negativos produtores de efeitos
positivos, serviria bem o interesse do particular na inacção administrativa,
para fins de manutenção do status quo:
o particular veria o seu interesse satisfeito, durante a pendência do processo
principal, pela manutenção da situação de vantagem auferida e a consequente inalterabilidade
da sua esfera jurídica(8).
Pode este entendimento ser válido no actual regime do contencioso
administrativo? Jurisprudência recente tem entendido que o “âmbito de aplicação da suspensão de eficácia de actos administrativos
encontra-se delimitado com total precisão, consistindo esta numa providência
conservatória, que serve para proteger os interesses daqueles particulares que
se opõem a uma inovação de carácter lesivo – introduzida por um acto de
conteúdo positivo – visando paralisar os efeitos executórios desta decisão e
fazer com que tudo permaneça antes de esse acto ter sido praticado, até à
decisão a proferir no processo principal sobre a sua impugnação. Já para acautelar
situações jurídicas de interesse pretensivo, contrapostas a actos de
indeferimento ou ao silêncio da Administração, os tribunais administrativos só
podem, actualmente, decretar providências antecipatórias, como as que são
referidas nas alíneas b) c) e e) do artigo 120.º do CPTA, pois apenas estas têm
o alcance de antecipar, a título provisório, a constituição de uma situação
jurídica nova, diferente da existente à partida, e que é aquela que se pretende
obter, definitivamente, na sentença a proferir no processo principal, mediante
a instauração de uma acção de condenação à prática de acto devido”(9). O juízo em apreço não distingue os actos
negativos puros dos actos negativos de conteúdo positivo: não distingue, nem
tem que distinguir, na nossa modéstia opinião. De facto, o entendimento
referido supra parte do princípio de
que a posição de vantagem auferida por acto administrativo anterior perdura no
tempo até que seja proferida uma decisão final em processo principal, o que não
é verdade. Tomemos por exemplo o acto recusa de renovação de uma licença de
funcionamento de um estabelecimento
nocturno até às 02h00. A recusa de renovação da licença faz com que deixe de
existir um título habilitador que permita o funcionamento do estabelecimento
até àquela hora. Ora a suspensão da eficácia do acto de recusa não vai
reintroduzir a licença de funcionamento ou conferir outra a título provisório –
tal só poderia ser concedido por uma providência de natureza antecipatória. O
acto de recusa da renovação da licença extingue a relação juridica
administrativa tal como ela estava configurada, pelo que não existe a
manutenção de uma posição de vantagem a conservar até à sentença do processo
principal. O contrário só pode ser defendido através do recurso a uma ficção de
que durante o período que medeia o acto de indeferimento e o processo principal
a situação jurídica em causa não se extinguiu.
Por tudo isto, tem-se que não pode ser requerida a suspensão da eficácia
dos actos de conteúdo negativo, quer em sede do novo contencioso administrativo,
quer mesmo em sede da antiga LPTA, pois, como se tentou demonstrar, trata-se de
um problema da estrutura e configuração destes actos e não de uma questão do
próprio regime da tutela cautelar, pelo que as alterações introduzidas pela
Reforma de 2004 em nada vêm alterar este entendimento.
(1) Amaral, Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol.
II, pág. 279 e seg.
(2) Entre outros, Acórdãos STA 18/10/79, 10/09/97,
14/01/1999 e o célebre caso Oliveira Neiva, Acórdão STA 24/01/1947. Na
doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo e Sampaio
Caramelo, Da suspensão da executariedade
dos actos administrativos por decisão dos tribunais administrativos.
(3) Exemplos: recusa do pedido de prorrogação de uma
licença de Alvará, de renovação de uma licença de abertura de um bar até ás 2h,
renovação da matrícula em estabelecimento de ensino.
(4) Exemplos: recusa do pedido de licença para construção
civil, de inscrição numa associação profissional, de admissão num concurso público.
(5) Marques, Paulo António Moura, A suspensão da eficácia… pág. 217 e seg.
(6) Machete, Pedro, A
suspensão jurisdicional … pág. 304 e seg.
(7) A suspensão da recusa da licença para construção civil
não constitui a Administração no dever de autorizar o início da actividade.
Quanto muito impediria que a Administração pudesse voltar a recusar o início da
actividade pelos motivos já apreciados, mas não por qualquer outro motivo. Para
que possa haver protecção provisória da posição do particular é necessário que
o acto negativo lhe retire mais qualquer coisa para além do interesse
pretensivo, isto é, que exista algo a conservar e que corra o risco de se
perder em consequência do acto negativo.
(8) A suspensão da recusa de renovação da licença de
abertura de um bar até as 02h00 permitiria a continuação do funcionamento do
estabelecimento em condições anteriormente permitidas, isto é, possibilitaria a
manutenção da posição de vantagem até que esta viesse mais tarde a ser
entendida como devida em sede de anulação do acto impugnado.
(9) Acórdão STA P. 0732/07 que retrata o pedido de
suspensão da eficácia do acto de aprovação da lista de candidatos aprovados e
excluídos em concurso de ingresso na categoria de adido de embaixada da
carreira diplomática.
Bibliografia:
- Cadernos de Justiça
Administrativa, nº 6, pág. 60 e 61, nº 14, pág. 65 e 66.
- Almeida, Mário Aroso, Manual de
Processo Administrativo, 2010, Almedina
- Amaral, Freitas, Curso de
Direito Administrativo, vol. II, 2003, Almedina.
- Maçãs, Maria Fernanda, Tutela judical efectica e suspensão da
eficácia: balanço e perspectivas, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº
16, pág. 52 a 61.
- Machete, Pedro, A suspensão jurisdicional da eficácia de
actos administrativos, em o Direito, ano 123º, 1991, II, III,
Abril/Setembro.
- Marques, Paulo António Moura, A suspensão da eficácia de actos
administrativos de conteúdo negativo, 2002.
- Monteiro, Cláudio, A suspensão da eficácia dos actos de
conteúdo negativo, AAFDL, 2012.
Acórdãos:
- Acórdão STA P. 42 625 – A
- Acórdão STA P. 2230
- Acórdão STA P. 0732/07
- Acórdão STA P. 0675/07
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