domingo, 16 de dezembro de 2012

A suspensão da eficácia dos actos de conteúdo negativo: o velho problema, novas questões


Tradicionalmente as actos administrativos distinguem-se, quanto aos efeitos, em actos positivos e em actos negativos. Enquanto que os primeiros produzem uma alteração na ordem jurídica, os segundos consistem, pelo contrário, uma recusa de introdução de uma mudança no ordenamento, concretizando-se numa omissão de um comportamento devido ou no indeferimento de uma pretensão apresentada(1).
Em sede da LPTA, esta contraposição era da maior importância, uma vez que a única tutela cautelar que existia no antigo contencioso administrativo era a suspensão da eficácia de actos administrativos, tutela esta que, de acordo com a jurisprudência e a doutrina dominante, seria restrita aos actos de conteúdo positivo(2).
Com a Reforma de 2004, a par das providências conservatórias, foram introduzidas providências antecipatórias, em sistema aberto, não sujeito a numerus clausus. Aparentemente a antiga distinção teria perdido o interesse, visto que ambas as situações são agora objecto de tutela cautelar. No entanto, tal afirmação não é totalmente exacta. De facto, do regime da suspensão da eficácia resultam importantes prerrogativas que não se observam no regime geral  da tutela cautelar, nomeadamente, a proibição automática de execução do acto administrativo, consagrada no artigo 128º CPTA. Dir-se-ía, no entanto, que o decretamento provisório das providências antecipatórias (artigo 131º) cumpriria a mesma finalidade da proibição de execução do acto, isto é, evitar o periculum in mora do próprio procedimento cautelar. Todavia, o decretamento provisório não opera de forma automática, estando sujeito a despacho judicial, que obedece aos apertados requisitos do nº 3 do artigo 131º e está sujeito a revisão, uma vez ouvidas as partes (artigo 131 nº 6). Por tudo isto, tem ainda interesse perguntar se pode ser requerida a suspensão de actos de conteúdo negativo. Para responder a esta questão cabe aprofundar a distinção tradicional entre actos negativos e positivos, bem como analisar a resposta que era dada em sede da LPTA.
Para efeitos da admissibilidade da suspensão da eficácia na vigência da LPTA, distinguiam-se os puros actos negativos dos actos negativos que produzem efeitos positivos. Nos segundos, o particular teria um interesse na conservação de uma situação ou bem jurídico de que fosse titular (interesse opositivo), que a administração pretendesse privar ou restringir por via de um acto ablativo – o particular visa a manutenção da situação jurídica titulada tal como esta se mantinha anteriormente à actuação administrativa, isto é, tem uma pretensão conservatória(3). Nos segundos, o particular tem um interesse na obtenção de um  bem jurídico (interesse pretensivo), orientado para uma decisão de carácter ampliativo da sua esfera jurídica através de uma conduta administrativa, de carácter autorizativo, concessório ou permissivo – o particular tem uma pretensão ampliativa (4)(5).
A este propósito, surgiu a concepção segundo a qual os actos administrativos de conteúdo negativo não eram susceptíveis de suspensão de eficácia, pois esta não era apta a conceder uma vantagem ou benefício de que o particular ainda não goze. Desta forma, o meio cautelar de suspensão de eficácia não seria útil para imediatamente oferecer uma protecção aos interesses materiais do requerente. “Aliás, uma eventual anulação do acto impugnado também não o faria. E não se vislumbra como fundamentar que uma tutela provisória, destinada a assegurar a utilidade prática da tutela definitiva, deva afinal ser mais útil do que esta e atribuir ela própria o que a segunda não pode dar. A relativa ineficácia do contencioso de anulação em relação à tutela face a actos negativos não pode deixar de ter consequências quanto à correspondente tutela provisória.”(6) Nestes casos, a posição jurídica do particular apenas conseguiria ser tutelada através de uma providência antecipatória que, recorde-se, não existia em sede da LPTA. (7)
Já a suspensão da eficácia de actos negativos produtores de efeitos positivos, serviria bem o interesse do particular na inacção administrativa, para fins de manutenção do status quo: o particular veria o seu interesse satisfeito, durante a pendência do processo principal, pela manutenção da situação de vantagem auferida e a consequente inalterabilidade da sua esfera jurídica(8).
Pode este entendimento ser válido no actual regime do contencioso administrativo? Jurisprudência recente tem entendido que o “âmbito de aplicação da suspensão de eficácia de actos administrativos encontra-se delimitado com total precisão, consistindo esta numa providência conservatória, que serve para proteger os interesses daqueles particulares que se opõem a uma inovação de carácter lesivo – introduzida por um acto de conteúdo positivo – visando paralisar os efeitos executórios desta decisão e fazer com que tudo permaneça antes de esse acto ter sido praticado, até à decisão a proferir no processo principal sobre a sua impugnação. Já para acautelar situações jurídicas de interesse pretensivo, contrapostas a actos de indeferimento ou ao silêncio da Administração, os tribunais administrativos só podem, actualmente, decretar providências antecipatórias, como as que são referidas nas alíneas b) c) e e) do artigo 120.º do CPTA, pois apenas estas têm o alcance de antecipar, a título provisório, a constituição de uma situação jurídica nova, diferente da existente à partida, e que é aquela que se pretende obter, definitivamente, na sentença a proferir no processo principal, mediante a instauração de uma acção de condenação à prática de acto devido”(9). O juízo em apreço não distingue os actos negativos puros dos actos negativos de conteúdo positivo: não distingue, nem tem que distinguir, na nossa modéstia opinião. De facto, o entendimento referido supra parte do princípio de que a posição de vantagem auferida por acto administrativo anterior perdura no tempo até que seja proferida uma decisão final em processo principal, o que não é verdade. Tomemos por exemplo o acto recusa de renovação de uma licença de funcionamento de  um estabelecimento nocturno até às 02h00. A recusa de renovação da licença faz com que deixe de existir um título habilitador que permita o funcionamento do estabelecimento até àquela hora. Ora a suspensão da eficácia do acto de recusa não vai reintroduzir a licença de funcionamento ou conferir outra a título provisório – tal só poderia ser concedido por uma providência de natureza antecipatória. O acto de recusa da renovação da licença extingue a relação juridica administrativa tal como ela estava configurada, pelo que não existe a manutenção de uma posição de vantagem a conservar até à sentença do processo principal. O contrário só pode ser defendido através do recurso a uma ficção de que durante o período que medeia o acto de indeferimento e o processo principal a situação jurídica em causa não se extinguiu.
Por tudo isto, tem-se que não pode ser requerida a suspensão da eficácia dos actos de conteúdo negativo, quer em sede do novo contencioso administrativo, quer mesmo em sede da antiga LPTA, pois, como se tentou demonstrar, trata-se de um problema da estrutura e configuração destes actos e não de uma questão do próprio regime da tutela cautelar, pelo que as alterações introduzidas pela Reforma de 2004 em nada vêm alterar este entendimento.



(1)     Amaral, Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. II, pág. 279 e seg.
(2)     Entre outros, Acórdãos STA 18/10/79, 10/09/97, 14/01/1999 e o célebre caso Oliveira Neiva, Acórdão STA 24/01/1947. Na doutrina, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo e Sampaio Caramelo, Da suspensão da executariedade dos actos administrativos por decisão dos tribunais administrativos.
(3)     Exemplos: recusa do pedido de prorrogação de uma licença de Alvará, de renovação de uma licença de abertura de um bar até ás 2h, renovação da matrícula em estabelecimento de ensino.
(4)     Exemplos: recusa do pedido de licença para construção civil, de inscrição numa associação profissional,  de admissão num concurso público.
(5)     Marques, Paulo António Moura, A suspensão da eficácia… pág. 217 e seg.
(6)     Machete, Pedro, A suspensão jurisdicional … pág. 304 e seg.
(7)     A suspensão da recusa da licença para construção civil não constitui a Administração no dever de autorizar o início da actividade. Quanto muito impediria que a Administração pudesse voltar a recusar o início da actividade pelos motivos já apreciados, mas não por qualquer outro motivo. Para que possa haver protecção provisória da posição do particular é necessário que o acto negativo lhe retire mais qualquer coisa para além do interesse pretensivo, isto é, que exista algo a conservar e que corra o risco de se perder em consequência do acto negativo.
(8)     A suspensão da recusa de renovação da licença de abertura de um bar até as 02h00 permitiria a continuação do funcionamento do estabelecimento em condições anteriormente permitidas, isto é, possibilitaria a manutenção da posição de vantagem até que esta viesse mais tarde a ser entendida como devida em sede de anulação do acto impugnado.
(9)     Acórdão STA P. 0732/07 que retrata o pedido de suspensão da eficácia do acto de aprovação da lista de candidatos aprovados e excluídos em concurso de ingresso na categoria de adido de embaixada da carreira diplomática.


Bibliografia:
- Cadernos de Justiça Administrativa, nº 6, pág. 60 e 61, nº 14, pág. 65 e 66.
- Almeida, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina
- Amaral, Freitas, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2003, Almedina.
- Maçãs, Maria Fernanda, Tutela judical efectica e suspensão da eficácia: balanço e perspectivas, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 16, pág. 52 a 61.
- Machete, Pedro, A suspensão jurisdicional da eficácia de actos administrativos, em o Direito, ano 123º, 1991, II, III, Abril/Setembro.
- Marques, Paulo António Moura, A suspensão da eficácia de actos administrativos de conteúdo negativo, 2002.
- Monteiro, Cláudio, A suspensão da eficácia dos actos de conteúdo negativo, AAFDL, 2012.


Acórdãos:
- Acórdão STA P. 42 625 – A
- Acórdão STA P. 2230
- Acórdão STA P. 0732/07
- Acórdão STA P. 0675/07

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