No que à acção especial de
impugnação de acto administrativo diz respeito há um requisito que suscita
particular interesse: o conteúdo positivo do acto. Nesta como noutras matérias,
há uma fracção na doutrina, tornando por isso profícua a contraposição destas
posições necessariamente divergentes.
Poder-se-á dizer, como aliás
parece decorrer da letra da lei, que um dos pressupostos o conceito de acto
impugnável terá de ser um acto de conteúdo positivo. Só estes poderiam ser
anulados ou declarados nulos, dado que só um acto que tenha um conteúdo
positivo, somente este é que possui matéria
para ser impugnável. Por sua vez, os actos de conteúdo negativo seriam atacados
ex vi condenação á prática do acto
devido. Para tanto veja-se os art. 67.º/1 al. b) c), o art. 51.º/4 e também, e
sobretudo, o art. 51.º/4. Neste último, como refere AROSO de ALMEIDA, é dito
que perante um acto de conteúdo negativo (maxime,
acto de indeferimento) em que o autor deduza (apenas) pedido de anulação, nesse
caso será convidado a substituir essa petição. Dito isto, o próprio AROSO de
ALMEIDA, vem a admitir a titulo meramente excepcional, na sequência da doutrina
alemã, a impugnação de actos de indeferimento exigindo-se que o autor
justifique um interesse autónomo na anulação. Enfim, teria o autor que
preencher dois requisitos: 1) Demonstrar que a anulação do acto de
indeferimento corresponde à utilidade que tem carecida de tutela judicial 2)
Demonstrar que essa utilidade não é salvaguardada pela mera condenação à
pratica do acto devido.
Afigura-se útil referir aqui a
posição da regência, não só por ser isso mesmo (a posição da regência) mas
também por ser a posição que merece concordência. Refere VASCO PEREIRA da SILVA
que a solução do art. 51.º/4 é particularmente feliz isto porque o que está
latente é que a lei considera que, nas situações em que Administração se
encontra adstrita a actuar de modo favorável face ao particular, o objecto
jurisdicional não é o acto ou a sua ausência, mas antes o próprio direito de
que é titular o particular a certa conduta por parte da administração. O Autor
salienta ainda que este “convite” corresponde a uma solução acertada no sentido
em que é adequado para a tutela dos interesses em jogo (in concreto, do particular) e mostra-se respeitadora do principio
do pedido.
Há ainda um ponto interessante e
de índole prática: Poderá existir alguma situação em que o particular, que
julga ter direito a certa conduta por parte da Administração, retire alguma vantagem
em obter a anulação do acto administrativo favorável em detrimento do pedido de
condenação no comportamento devido?
AROSO de ALMEIDA responde
afirmativamente dizendo que poderá o particular não pretender o acto
ilegalmente recusado mas apenas o reconhecimento judicial de que o acto de indeferimento
foi ilegal e a sua consequente remoção. Este interesse processual pode não ser
exactamente satisfeito com a condenação á prática do acto devido. Dá de seguida
um exemplo que parece, pelo menos numa primeira análise, bastante esclarecedor.
Perante um acto de recuso de licença de construção, que o particular não queira
realizar imediatamente, embora queira no futuro poder vir a usá-lo, se assim
pretender.
Ao invés, VASCO PEREIRA da SILVA
afirma que tem alguma dificuldade em reconhecer a existência de uma situação em
que o particular que alega ter direito a certa conduta por parte da
administração, possa ter qualquer vantagem na anulação do acto desfavorável em
vez de avançar logo para a condenação do acto. Vem aliás a aproveitar-se do
exemplo que AROSO de ALMEIDA dá dizendo que, in casu, a sentença de condenação satisfaz de um modo pleno o
interesse do particular em questão.
Já VIEIRA de ANDRADE tem uma
posição algo distinta daquela que é perfilhada pelos últimos dois autores. De
facto, no entender do Autor, o art. 51.º/4 deve ser interpretado á luz dos
princípios da autoresponsabilidade das partes e da tutela judicial efectiva, no
sentido de permitir a impugnabilidade autónoma de decisões de indeferimento, desde
logo nos casos em que o particular demonstre um interesse relevante em agir.
Ora, esta tomada de posição é susceptivel de várias críticas:
Em primeiro lugar, haveria que
demonstrar o modo como os princípios invocados permitem uma abertura do
preceito. O Autor não o faz. Fica por isso por explicar por que razão estes
princípios vem permitir que se passe por cima da lei permitindo a
impugnabilidade autónoma de decisões de indeferimento.
Em segundo lugar, tal vem
claramente contrariar a letra da lei. Socorrendo-nos dos ensinamentos de ALEXY,
o argumento semântico neste caso parece apontar para a conclusão oposta àquela
que VIEIRA de ANDRADE preconiza. A letra do preceito aponta claramente para a
impossibilidade de se recorrer a um pedido de estrita anulação. Aliás, o
convite por parte do tribunal insere-se numa lógica de aproveitamento
processual e que revela a inaptidão do pedido de estrita anulação face a um
acto de indeferimento.
Isto dito, resta dizer que
tendemos para a posição da regência, por nos parecer ser aquela mais conforme
com a letra e com a própria ratio da
norma. Ademais, o convite que consta do art. 51.º/4 dá-nos a entender a essa
inaptidão de que já se falou, sendo por isso um convite suspeito.
Escrito por David Reis
Entre outros:
Alexy, Robert, A Theory of Legal Argumentation: The Theory of Rational Discourse as a
Theory of Legal Justification, OUP, 1989. [pp. 234 ss]
Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo,
Almedina, 2010.
Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, Almedina, 10ª
ed., 2009.
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, Almedina, 2ªed., 2009.
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