A questão da admissibilidade ou não do
incidente de intervenção de terceiros a título principal tem-se mostrado
controvertida no contencioso administrativo, especialmente no âmbito das acções
de responsabilidade civil extracontratual do Estado e de recurso de anulação de
actos administrativos.
Com efeito, em sede da LPTA, entendia-se tradicionalmente,
que o instituto da assistência configuraria o único tipo de intervenção de
terceiros permitido no contencioso administrativo, afirmação esta que se
baseava, essencialmente, no argumento de que o art. 49º do Regulamento do
Supremo Tribunal Administrativo regularia a figura da assistência em termos
tais que excluiria outra forma de intervenção, nomeadamente a
intervenção principal. Deste modo, não haveria qualquer lacuna legal, não sendo
aplicável supletivamente o Código do Processo Civil.(1) Contra este entendimento pronunciou-se Freitas do Amaral,
que entendeu que “o legislador
não regulou a assistência para significar, com isso, que queria rejeitar a
intervenção principal, mas pura e simplesmente porque queria dar àquela um
âmbito mais restrito do que ela tinha em processo civil.” (2)
Em sede de recurso de anulação (correspondente
ao actual regime de impugnação de actos administrativos), a negação do
instituto da intervenção principal assentava, essencialmente em dois
argumentos. De acordo com o primeiro, a intervenção principal subverteria o
sistema de prazos do recurso de anulação: quem não recorre a tempo, perde o
direito de impugnar o acto, não podendo mais tarde requerer a intervenção
principal. De outro modo, estar-se-ía a contrariar o objectivo da certeza e
segurança jurídica pretendidos pela imposição desses mesmos prazos, pois
prolongar-se-ía a incerteza acerca da ilegalidade do acto administrativo. Ora,
este argumento não procede, pois assim como em processo civil a perda da propositura
da acção não impede que mais tarde se requeira a intervenção principal,
permitida pela lei a todo o tempo (art.322 nº1 CPC), também no contencioso
administrativo a perda do prazo de recurso apenas extingue o direito a recorrer
e não impede a intervenção principal posterior. Por outro lado, os prazos para
a propositura de acções desempenham a mesma função de garantia da segurança
jurídica e, nem por isso, o CPC deixou de reconhecer amplamente o incidente de
intervenção principal. Para além disso, a intervenção principal não coloca, só
por si, em causa a certeza do direito: a
partir do momento em que alguém recorre do acto administrativo já é posta em
causa a vulnerabilidade do mesmo, vulnerabilidade esta que em nada é alterada
pela intervenção de um terceiro a título principal. O segundo argumento
generalizadamente indicado centra-se na ideia de que a intervenção principal
quando realizada após o momento em que se poderia arguir os vícios do acto, não
serviria para suscitar novas questões, pelo que, mesmo
à luz do CPC, o incidente deveria ser rejeitado, uma vez que já não permitiria
qualquer defesa especial. Quanto a esta questão, há a dizer que, de facto, é
discutível se os intervenientes podem ou não invocar novos fundamentos de invalidade
quando já decorreu o prazo em que eles poderiam impugnar o acto em instrumento
autónomo. No entanto, tal está somente relacionado com os actos que estes
poderiam praticar e não com a própria admissibilidade da intervenção. Como
afirma Miguel Teixeira de Sousa, “a
comparação entre os nº 1 e 3 do art. 323 CPC mostra que a intervenção é
compatível com diferentes poderes do interveniente na acção pendente”(3): caso a intervenção
tenha lugar antes de proferido o despacho saneador o interveniente pode apresentar
petição (intervenção activa) ou contestação (intervenção passiva) própria (art.
323 nº1 CPC); se a intervenção tiver lugar depois deste momento, o
interveniente apenas pode fazer seus os articulados do autor e do réu.
Portanto, o facto de os intervenientes já não puderem arguir novos fundamentos
de invalidade do acto não pode constituir argumento para a recusa da sua
intervenção, pois não é condição necessária para a sua admissibilidade que
estes ainda possam suscitar novos vícios ou novas questões, como demonstra o
art. 323 nº1 e 3 CPC.
No âmbito da responsabilidade
extracontratual do Estado a discussão centrava-se na admissibilidade da
intervenção de um sujeito de direito privado, designadamente, de um
empreiteiro, quando a ele sejam imputados, solidária ou conjuntamente, danos
provocados na execução de um contrato de empreitada de obras públicas. De
acordo com uma orientação tradicional, defendida no Acórdão do STA de
15/05/2003, no domínio da LPTA e do ETAF de 1984, deveria ser negada a
intervenção de sujeitos privados, uma vez que “a admissibilidade dessa
intervenção violaria as regras sobre competência em razão da matéria dos
tribunais administrativos, que só podem conhecer da responsabilidade por actos
de gestão pública imputados ao Estado e demais entes públicos” (4): recusava-se, então, o incidente em questão com base no
argumento de que os tribunais administrativos não seriam competentes para a
apreciação da responsabilidade de sujeitos privados pelos actos por si
praticados, ainda que integrados no âmbito de um contrato de empreitada de
obras públicas. O que dizer disto tudo? A
legalidade da dedução do incidente não deve ter por referência uma regra de
competência material. Deve ser antes analisado se o sujeito privado é titular
da relação objecto do processo, que legitime a intervenção em juízo. Como
sustenta Carlos Cadilha, “(…) não parece exigível, (…), que a
legalidade da utilização do incidente de intervenção de terceiros fique
dependente, (…), da existência de uma prévia regra de competência material,
visto o que se torna necessário demonstrar, para o efeito de determinar se é
admissível a participação de um sujeito privado ao lado do autor ou do réu, é
se ele possui uma relação com o objecto do processo que justifique a sua
presença em juízo. E o que releva, para esse efeito, é apenas a alegação e
prova de que o terceiro interveniente é parte legítima na acção por possuir um
interesse idêntico ao do autor ou ao da parte contrária (cfr. arts. 325.º, n.º
3 do CPC), sendo que essa simples constatação é suficiente para garantir a
extensão da competência do tribunal administrativo à apreciação da quota parte
de interesse ou de responsabilidade do chamado, visto que tem por base o
reconhecimento de que este se encontra envolvido (por contitularidade ou
comunhão de direitos ou obrigações) na relação jurídica administrativa que
constitui o objecto do litígio.(…)” No
caso de responsabilidade civil que possa ser imputada a actuações concorrentes
de um ente público e de um empreiteiro particular, agindo este no âmbito de
execução de um contrato de empreitada de obras públicas, não poderá deixar de
configurar-se a existência de uma obrigação conjunta. Cada um dos sujeitos
passivos são condevedores, relativamente ao direito invocado pelo lesado, na
quota parte da sua responsabilidade. E
embora exista uma pluralidade de vínculos há uma unidade originária da
prestação global e um paralelismo de posições jurídicas dos diversos sujeitos
que permite integrar a situação no âmbito do listisconsórcio voluntário (art.27
nº 1, 2º parte CPC) e que, consequentemente, autoriza a intervenção de
terceiros nos termos do art. 325 nº 1 CPC”. (5)
Por último, cabe verificar se esta realidade
foi alterada pela reforma de 2004 do CPTA. O CPTA parece ter pretendido
clarificar estas questões ao incluir a norma do art. 10 nº 8, que determina a
aplicação de lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, o que
esclarece, definitivamente, a admissibilidade do incidente de intervenção a
título principal, a par da intervenção acessória. Esta última, deixou de ser
regulada especialmente pelo CPTA, pelo que cabe a aplicação das normas gerais
do CPC. Por outro lado, foi consagrada a regra do art. 10 nº 7, que permitiu a
demanda de sujeitos privados a título principal em situações que não são
reconduzíveis à intervenção como contra-interessados ou em virtude da sua
qualidade de concessionários ou funcionários ou agentes administrativos, como
era tradicionalmente aceite.
(1)
Acórdão STA 09/10/1997 P 18 487
(2) Amaral, Diogo Freitas,
“Intervenção Principal (…)”, pág. 278
(3) Sousa, Miguel Teixeira,
“A adminissibilidade da intervenção principal (...)”, pág. 36
(4) No acórdão enunciado, foi
proposta uma acção de responsabilidade civil por dois particulares contra a
Região Autónoma da Madeira, o Governo Regional e a ANAM, SA, concessionária da
exploração do Aeroporto da Madeira, pelos prejuízos provocados na sua habitação
pela execução das obras de construção civil para ampliação do referido
aeroporto levadas a cabo sob as ordens das rés. As rés requereram a intervenção
provocada da “NOVAPISTA – ACE”, agrupamento este que havia celebrado com a
ANAM, SA dois contratos de empreitada para a construção das obras de ampliação
do aeroporto; para uma leitura integral do acórdão: CJA, nº 53 , pág. 22 e s.
(5) Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Intervenção de terceiros (…)”,
in CJA nº53, pág.35 e seg.
Bibliografia:
- Almeida Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo,
2010, Almedina.
- Amaral, Diogo Freitas, “Intervenção Principal no
recurso de anulação”, in Estudos em Memória ao Professor Doutor Castro Mendes,
1994, pág. 269 e seg.
- Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Intervenção de
terceiros na acção de responsabilidade civil da Administração”, in CJA nº53,
pág.22 e seg.
- Sousa, Miguel Teixeira, “A adminissibilidade da
intervenção principal espontânea no recurso contencioso”, in CJA nº13, pág.29 e
seg.
- Oliveira, Mário Esteves; Oliveira, Rodrigo Esteves,
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, 2004, Almedina.
- - Cadernos de Justiça Administrativa, nº 13, 53, 60, 66.
Acórdãos:
- Acórdão STA
09/10/1997 P 18 487
- Acórdão STA 15/03/2003 P.543/03
- Acórdão
TCA Norte 22/06/2006 00214/04.4BEPNF-1
- Acórdão TCA
Norte 03/10/2006 00081/05.0BEPNF-A
- Acórdão 25/10/2007
P.348/06
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