sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A Intervenção de terceiros no contencioso administrativo: a impugnação de actos administrativos e a responsabilidade extracontratual do Estado


A questão da admissibilidade ou não do incidente de intervenção de terceiros a título principal tem-se mostrado controvertida no contencioso administrativo, especialmente no âmbito das acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado e de recurso de anulação de actos administrativos.
Com efeito, em sede da LPTA, entendia-se tradicionalmente, que o instituto da assistência configuraria o único tipo de intervenção de terceiros permitido no contencioso administrativo, afirmação esta que se baseava, essencialmente, no argumento de que o art. 49º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo regularia a figura da assistência em termos tais que excluiria outra forma de intervenção, nomeadamente a intervenção principal. Deste modo, não haveria qualquer lacuna legal, não sendo aplicável supletivamente o Código do Processo Civil.(1) Contra este entendimento pronunciou-se Freitas do Amaral, que entendeu que “o legislador não regulou a assistência para significar, com isso, que queria rejeitar a intervenção principal, mas pura e simplesmente porque queria dar àquela um âmbito mais restrito do que ela tinha em processo civil.” (2)
Em sede de recurso de anulação (correspondente ao actual regime de impugnação de actos administrativos), a negação do instituto da intervenção principal assentava, essencialmente em dois argumentos. De acordo com o primeiro, a intervenção principal subverteria o sistema de prazos do recurso de anulação: quem não recorre a tempo, perde o direito de impugnar o acto, não podendo mais tarde requerer a intervenção principal. De outro modo, estar-se-ía a contrariar o objectivo da certeza e segurança jurídica pretendidos pela imposição desses mesmos prazos, pois prolongar-se-ía a incerteza acerca da ilegalidade do acto administrativo. Ora, este argumento não procede, pois assim como em processo civil a perda da propositura da acção não impede que mais tarde se requeira a intervenção principal, permitida pela lei a todo o tempo (art.322 nº1 CPC), também no contencioso administrativo a perda do prazo de recurso apenas extingue o direito a recorrer e não impede a intervenção principal posterior. Por outro lado, os prazos para a propositura de acções desempenham a mesma função de garantia da segurança jurídica e, nem por isso, o CPC deixou de reconhecer amplamente o incidente de intervenção principal. Para além disso, a intervenção principal não coloca, só por si, em causa a certeza do direito:  a partir do momento em que alguém recorre do acto administrativo já é posta em causa a vulnerabilidade do mesmo, vulnerabilidade esta que em nada é alterada pela intervenção de um terceiro a título principal. O segundo argumento generalizadamente indicado centra-se na ideia de que a intervenção principal quando realizada após o momento em que se poderia arguir os vícios do acto, não serviria para suscitar novas questões, pelo que, mesmo à luz do CPC, o incidente deveria ser rejeitado, uma vez que já não permitiria qualquer defesa especial. Quanto a esta questão, há a dizer que, de facto, é discutível se os intervenientes podem ou não invocar novos fundamentos de invalidade quando já decorreu o prazo em que eles poderiam impugnar o acto em instrumento autónomo. No entanto, tal está somente relacionado com os actos que estes poderiam praticar e não com a própria admissibilidade da intervenção. Como afirma Miguel Teixeira de Sousa, “a comparação entre os nº 1 e 3 do art. 323 CPC mostra que a intervenção é compatível com diferentes poderes do interveniente na acção pendente”(3): caso a intervenção tenha lugar antes de proferido o despacho saneador o interveniente pode apresentar petição (intervenção activa) ou contestação (intervenção passiva) própria (art. 323 nº1 CPC); se a intervenção tiver lugar depois deste momento, o interveniente apenas pode fazer seus os articulados do autor e do réu. Portanto, o facto de os intervenientes já não puderem arguir novos fundamentos de invalidade do acto não pode constituir argumento para a recusa da sua intervenção, pois não é condição necessária para a sua admissibilidade que estes ainda possam suscitar novos vícios ou novas questões, como demonstra o art. 323 nº1 e 3 CPC.
           No âmbito da responsabilidade extracontratual do Estado a discussão centrava-se na admissibilidade da intervenção de um sujeito de direito privado, designadamente, de um empreiteiro, quando a ele sejam imputados, solidária ou conjuntamente, danos provocados na execução de um contrato de empreitada de obras públicas. De acordo com uma orientação tradicional, defendida no Acórdão do STA de 15/05/2003, no domínio da LPTA e do ETAF de 1984, deveria ser negada a intervenção de sujeitos privados, uma vez que “a admissibilidade dessa intervenção violaria as regras sobre competência em razão da matéria dos tribunais administrativos, que só podem conhecer da responsabilidade por actos de gestão pública imputados ao Estado e demais entes públicos” (4): recusava-se, então, o incidente em questão com base no argumento de que os tribunais administrativos não seriam competentes para a apreciação da responsabilidade de sujeitos privados pelos actos por si praticados, ainda que integrados no âmbito de um contrato de empreitada de obras públicas. O que dizer disto tudo? A legalidade da dedução do incidente não deve ter por referência uma regra de competência material. Deve ser antes analisado se o sujeito privado é titular da relação objecto do processo, que legitime a intervenção em juízo. Como sustenta Carlos Cadilha, “(…) não parece exigível, (…), que a legalidade da utilização do incidente de intervenção de terceiros fique dependente, (…), da existência de uma prévia regra de competência material, visto o que se torna necessário demonstrar, para o efeito de determinar se é admissível a participação de um sujeito privado ao lado do autor ou do réu, é se ele possui uma relação com o objecto do processo que justifique a sua presença em juízo. E o que releva, para esse efeito, é apenas a alegação e prova de que o terceiro interveniente é parte legítima na acção por possuir um interesse idêntico ao do autor ou ao da parte contrária (cfr. arts. 325.º, n.º 3 do CPC), sendo que essa simples constatação é suficiente para garantir a extensão da competência do tribunal administrativo à apreciação da quota parte de interesse ou de responsabilidade do chamado, visto que tem por base o reconhecimento de que este se encontra envolvido (por contitularidade ou comunhão de direitos ou obrigações) na relação jurídica administrativa que constitui o objecto do litígio.(…)” No caso de responsabilidade civil que possa ser imputada a actuações concorrentes de um ente público e de um empreiteiro particular, agindo este no âmbito de execução de um contrato de empreitada de obras públicas, não poderá deixar de configurar-se a existência de uma obrigação conjunta. Cada um dos sujeitos passivos são condevedores, relativamente ao direito invocado pelo lesado, na quota parte da sua responsabilidade.  E embora exista uma pluralidade de vínculos há uma unidade originária da prestação global e um paralelismo de posições jurídicas dos diversos sujeitos que permite integrar a situação no âmbito do listisconsórcio voluntário (art.27 nº 1, 2º parte CPC) e que, consequentemente, autoriza a intervenção de terceiros nos termos do art. 325 nº 1 CPC”. (5)
            Por último, cabe verificar se esta realidade foi alterada pela reforma de 2004 do CPTA. O CPTA parece ter pretendido clarificar estas questões ao incluir a norma do art. 10 nº 8, que determina a aplicação de lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, o que esclarece, definitivamente, a admissibilidade do incidente de intervenção a título principal, a par da intervenção acessória. Esta última, deixou de ser regulada especialmente pelo CPTA, pelo que cabe a aplicação das normas gerais do CPC. Por outro lado, foi consagrada a regra do art. 10 nº 7, que permitiu a demanda de sujeitos privados a título principal em situações que não são reconduzíveis à intervenção como contra-interessados ou em virtude da sua qualidade de concessionários ou funcionários ou agentes administrativos, como era tradicionalmente aceite.

(1) Acórdão STA 09/10/1997 P 18 487
(2) Amaral, Diogo Freitas, “Intervenção Principal (…)”, pág. 278
(3) Sousa, Miguel Teixeira, “A adminissibilidade da intervenção principal (...)”, pág. 36
(4) No acórdão enunciado, foi proposta uma acção de responsabilidade civil por dois particulares contra a Região Autónoma da Madeira, o Governo Regional e a ANAM, SA, concessionária da exploração do Aeroporto da Madeira, pelos prejuízos provocados na sua habitação pela execução das obras de construção civil para ampliação do referido aeroporto levadas a cabo sob as ordens das rés. As rés requereram a intervenção provocada da “NOVAPISTA – ACE”, agrupamento este que havia celebrado com a ANAM, SA dois contratos de empreitada para a construção das obras de ampliação do aeroporto; para uma leitura integral do acórdão: CJA, nº 53 , pág. 22 e s.
(5) Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Intervenção de terceiros (…)”, in CJA nº53, pág.35 e seg.


Bibliografia:

- Almeida Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina.
- Amaral, Diogo Freitas, “Intervenção Principal no recurso de anulação”, in Estudos em Memória ao Professor Doutor Castro Mendes, 1994, pág. 269 e seg.
- Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Intervenção de terceiros na acção de responsabilidade civil da Administração”, in CJA nº53, pág.22 e seg.
- Sousa, Miguel Teixeira, “A adminissibilidade da intervenção principal espontânea no recurso contencioso”, in CJA nº13, pág.29 e seg.
- Oliveira, Mário Esteves; Oliveira, Rodrigo Esteves, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, 2004, Almedina.
- - Cadernos de Justiça Administrativa, nº 13, 53, 60, 66.

Acórdãos:

- Acórdão STA 09/10/1997 P 18 487
- Acórdão STA 15/03/2003 P.543/03
- Acórdão TCA Norte 22/06/2006 00214/04.4BEPNF-1
- Acórdão TCA Norte 03/10/2006 00081/05.0BEPNF-A
- Acórdão 25/10/2007 P.348/06



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