domingo, 18 de novembro de 2012


DA TRANSMUTAÇÃO DO RECURSO HIERÁRQUICO NECESSÁRIO, APÓS A ENTRADA EM VIGOR DO CPTA – AVERIGUAÇÃO DA SUA  “NECESSIDADE”, “DESNECESSIDADE”, “UTILIDADE POTENCIAL”, OU “PREJUDICIALIDADE POTENCIAL”.



O recurso hierárquico necessário (1), conceito fundamental da teoria jus-administrativa portuguesa tradicional, foi durante muitos anos o meio administrativo utilizado pelo particular para impugnar um acto administrativo praticado pelo subalterno no seio de uma determinada cadeia hierárquica (2). Este meio de impugnação administrativa era imprescindível para que o particular pudesse recorrer contenciosamente de um acto praticado pela Administração Pública, isto é, para que o particular pudesse interpor uma acção num tribunal administrativo, a Administração teria de praticar um acto administrativo final e o cidadão teria de esgotar os recursos administrativos que tinha ao seu dispor para litigar em Tribunal.
Era o modelo de Direito/Contencioso Administrativo de matriz objectivista francesa (3) que durante quase dois séculos marcou a nossa ordem jurídico-pública (4).
Este conceito, “não fez furor” apenas em terras lusitanas, disseminando-se igualmente em outros Estado europeus. Em Itália existia a figura do recurso hierárquico necessário como figura pré contenciosa. Porém desde que a Constituição italiana de 1948 consagrou um modelo de descentralização administrativa e posteriormente com a declaração de inconstitucionalidade da figura em estudo em 1978, o recurso hierárquico necessário perdeu força, passando a ser meramente facultativo. No direito francês após mais de dois séculos continua a persistir o recurso hierárquico necessário enquanto impugnação administrativa  imprescindível para o acesso aos tribunais administrativos (5).
Centrando-nos na nossa ordem jurídica, podemos dizer que através do recurso hierárquico necessário, a Administração, estava materialmente numa posição de supremacia face ao particular, existindo ainda com tal modelo uma certa promiscuidade entre a função administrativa e a função jurisdicional.
A maioria da doutrina portuguesa, sufragada por autores como MARCELLO CAETANO, ROGÉRIO SOARES, ou FREITAS DO AMARAL, defendia o conceito de forma vincada, sendo apoiado pelo legislador e pela jurisprudência que reflectiam esta linha de pensamento.
Com a segunda revisão da Lei Fundamental Portuguesa em 1989, (6) o modelo de Contencioso consagrado constitucionalmente, sofreu uma grande evolução, consagrando-se o princípio da tutela efectiva dos direitos subjectivos dos particulares previsto no artigo 268.º da CRP, sendo uma das manifestações, o acesso à Justiça Administrativa (7). Ao longo da Constituição portuguesa, outros preceitos passaram a bulir com a figura do recurso hierárquico necessário, como o princípio da desconcentração da Administração Pública previsto no artigo 267/2; e o princípio da separação de poderes e funções do Estado (no caso concreto em análise a separação entre a função administrativa e a função jurisdicional.
Face a esta nova “roupagem” constitucional, VASCO PEREIRA DA SILVA (8) desde 1989, contra “ventos e marés doutrinários e jurisprudenciais”, (9) defende a inconstitucionalidade material do recurso hierárquico necessário devido ao conteúdo da da revisão constitucional de 1989, uma vez o recurso hierárquico, a ser necessário, viola normas constitucionais imperativas e direitos subjectivos dos particulares, nomeadamente o direito de tutela efectiva e plena e o direito de recurso contencioso (10). Por outro, a preclusão do direito de recorrer contenciosamente aos tribunais administrativos por ultrapassagem do prazo para a interposição de recurso hierárquico, violaria igualmente as normas injuntivas acima referidas, o que implicaria ainda um retrocesso aos primórdios da Administração Autoritária e Agressiva do Estado Liberal. de Direito (11).
Com a reforma do Contencioso Administrativo Português de 2002/2004,  e entrada em vigor do Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos, o recurso hierárquico necessário, deixou de ser um pressuposto necessário para o acesso à Justiça  Administrativa, passando apenas  a ser necessário a existência de um acto susceptível de lesar interesses ou direitos dos particulares, em qualquer fase do processo administrativo, caindo assim o dogma tradicionalista do acto final decisório. (12)
Tal passo foi importante para a transformação do nosso Contencioso Administrativo, num Contencioso mais próximo do modelo germânico de matriz subjectivista, ao serviço dos particulares, e com o fim principal de tutela dos seus direitos subjectivos.
A nova “desnecessidade” de utilização do recurso hierárquico necessário para demandar a Administração, não levou porém a que a figura do recurso hierárquico ficasse na “gaveta”. Pelo contrário, a utilização desta forma de impugnação administrativa é incentivada pelo legislador, ao prever na letra do artigo 59º/4 do CPTA, a suspensão do prazo de impugnação Contenciosa (13). Isto é, o particular pode recorrer do acto administrativo do subalterno face ao seu superior hierárquico, o que não invalida que posteriormente possa intentar uma acção num tribunal administrativo. Esta forma de tutela administrativa pode ser mais expedita, menos morosa e mais económica em relação à tutela Contenciosa, pelo que se a decisão for resolvida logo naquela cadeia hierárquica, o particular não terá qualquer interesse processual em colocar a Administração em tribunal.
Contudo, este artigo peca por defeito, pois apenas suspende o prazo de impugnação  previsto no artigo 58º do CPTA, mas não suspende materialmente os resultados do próprio acto lesivo.
Assim sendo, não concordamos totalmente com VASCO PEREIRA DA SILVA, que defende que com a reforma o recurso hierárquico passou a ter natureza útil (14) e não necessária, uma vez, que se a Administração emite um comando vinculativo lesivo para o particular, interessa-lhe é que o acto administrativo veja os seus efeitos suspensos e não que os mesmos se desenrolem como se nada fosse. Em muitos casos, o particular não tem outra forma que não recorrer à justiça administrativa para ver os seus direitos legalmente protegidos cumpridos. Por exemplo, se um órgão da Administração Central, emite um acto administrativo em que decide construir uma ETAR próxima da propriedade de um particular, este poderá não ter qualquer interesse em recorrer administrativamente porque para além do tempo que irá ter que esperar até que o vértice da pirâmide daquela cadeia hierárquica responda à sua pretensão, se se confirmar a decisão do subalterno, este mesmo particular terá que lançar mão de uma acção administrativa de impugnação daquele acto, ou de forma a tutelar provisoriamente o seu direito, intentar uma providência cautelar, o que leva a uma demora ainda maior na solução daquele litígio.
Não nos podemos ainda esquecer, que na generalidade das vezes, o superior hierárquico confirma as decisões do subalterno, o que leva assim que a utilidade do recurso hierárquico seja muitas vezes residual e só releve no caso em que a situação em concreto seja resolvida no âmbito daquela relação jurídico-administrativa, caso contrário, a utilização daquele meio administrativo trará um maior prejuízo para o cidadão.
Desta forma, e face ao regime legal vigente, podemos dizer no máximo, que o recurso hierárquico tem uma natureza “potencialmente útil, mas, atendendo aos múltiplos casos concretos que surgem no tráfego jurídico da Administração Infra Estrutural, o conceito em estudo terá um cariz “potencialmente prejudicial”, pois além de não resolver a violação, ou omissão do direito do particular, este demorará ainda mais tempo a ver as suas pretensões resolvidas definitivamente, pois  utilizou uma impugnação administrativa desnecessária, quando poderia ab initio recorrer directamente aos tribunais administrativos .
Assim sendo, e para que o recurso hierárquico tenha efectivamente utilidade, é necessário modificar o artigo 59.º/4 do CPTA, dando-lhe uma dupla natureza suspensiva, isto é, suspendendo-se o acto administrativo lesivo e suspendendo-se igualmente o prazo para a impugnação contenciosa desse mesmo acto.
É um facto, que o particular, quando usa os meios da Justiça Administrativa, os actos lesivos, praticados pela Administração, não suspendem a sua eficácia, com a interposição da acção. Todavia, defendemos de iure condendo, que a suspensão dos efeitos prejudiciais ao cidadão deveria ocorrer, não procedendo o argumento de que se tal acontecesse existira um bloqueio da Administração Pública, pois se a função jurisdicional do Estado resolvesse os litígios de forma expedita, existiria um equilíbrio entre as posições jurídicas do particular e do Estado, produzindo o acto, efeitos nocivos se os tribunais administrativos assim o decidissem, ou caducaria, se o Juiz tivesse dado razão à pretensão do indivíduo recorrente. 
Passando agora à análise de outra questão relacionada com o tema em estudo, podemos dizer que é unânime na doutrina, que o recurso hierárquico necessário, enquanto figura geral deixou de vigorar na ordem jurídica interna portuguesa. Mas, este meio de tutela administrativa, é ainda prevista em legislação dispersa, o que leva a que a doutrina neste ponto divirja (15).
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, interpreta restritivamente o regime do CPTA, (16) dizendo que este diploma não tem a faculdade e o alcance de revogar as normas previstas em legislação avulsa, que consagram o recurso hierárquico necessário. Defende ainda, que se o legislador quisesse que de facto houvesse uma revogação de todos os preceitos que consagram o recurso hierárquico necessário, o teria feito expressamente, o que de facto não aconteceu.
Contra este entendimento insurge-se VASCO PEREIRA DA SILVA, devido aos argumentos acima elencados, defendendo ainda que estas normas previstas em legislação avulsa não estão numa relação de especialidade face ao CPTA, não procedendo este argumento de índole formal. Diz ainda que apesar de o Código de Procedimento Administrativo continuar a prever na subsecção III (artigos 166.º e seguintes do CPA), o recurso hierárquico necessário, o seu regime caducou por falta de objecto. (17)
Cabe tomar posição. O legislador não foi diligente uma vez que não harmonizou a legislação administrativa, de maneira a adequa-la ao novo modelo de Contencioso introduzido com a entrada em vigor do CPTA e do ETAF, o que leva a que haja conflitos legislativos entre  preceitos normativos do mesmo grau hierárquico do bloco de legalidade (por exemplo ente o CPA e o CPTA).
Por outro lado, o argumento de ordem formal, sobre a impossibilidade de lei geral (CPTA), revogar lei especial (legislação avulsa), utilizado por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, não parece proceder, porque aqui não estamos perante um conflito de leis no tempo, (18) sendo tais disposições avulsas anteriores à entrada em vigor do CPTA, sendo que só poderia haver um problema deste género se tais normas avulsas especiais fossem posteriores ao CPTA, o que não é o caso, segundo o autor citado.
É ainda importante salientar, que quando a legislação especial prevê a necessidade de interposição de recurso hierárquico, para se poder recorrer a tribunal, muitas vezes não trata do regime em concreto a aplicar. Que lei deve então aplicar-se? O CPTA não contém qualquer disposição sobre esta matéria, logo não se aplica. Parece-nos então, que a única solução possível para os adeptos que defendem a doutrina da manutenção do recurso hierárquico necessário, é a aplicação do regime plasmado a partir dos artigos 166º do CPA, pois só neste complexo normativo existem normas materiais que regulam o recurso hierárquico necessário.
Assim sendo, e apesar desta doutrina não o referir, o argumento utilizado por  VASCO PEREIRA DA SILVA, de que as normas da subsecção III do CPA caducaram por falta de objecto, cai por terra na medida em que se aplicam aos casos em que existe recurso hierárquico necessário, previsto em legislação avulsa e que não contenha um regime que o regule. 
Feita esta análise, cabe então verificar se o meio de impugnação administrativa aqui em estudo subsiste de forma parcial, ou se pelo contrário deve ser banido por completo da ordem jurídica portuguesa.
Em cima, dissemos que seria possível preservar ainda a velha figura do recurso hierárquico necessário previsto na legislação avulsa, através da construção que levamos a cabo.
Porém, esta tentativa de “salvamento da figura” não passa pelo crivo do bloco de legalidade, uma vez que concordamos com VASCO PEREIRA DA SILVA, e defendemos também que a tutela dos direitos dos particulares deve ser o mais intensa possível de maneira a respeitar o artigo 268º/4 da CRP. Assim sendo, não devem ser colocadas quaisquer tipos de barreiras por parte da Administração aos particulares, devendo o direito de acesso aos tribunais ser verificado em qualquer fase do procedimento administrativo e perante qualquer tipo de acto administrativo pois só assim de uma vez por todas podemos criar um Direito Processual Administrativo subjectivista em que o seu núcleo central é a defesa das posições jurídicas activas do particulares e não a defesa da legalidade e da Administração, findando-se assim com os dogmas ultrapassados do Contencioso objectivo de tipo francês que teimam em persistir.


(1) Ver por todos a construção e desenvolvimento do conceito em MARCELLO CAETANO, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo pp 394 e ss,  (reimpressão da edição brasileira de 1977), onde este administrativista, forte impulsionador do conceito de recurso hierárquico necessário desenvolve o tema, sendo a sua linha de pensamento seguida durante décadas pela restante doutrina administrativista portuguesa, bem como pela jurisprudência dos tribunais administrativos. Veja-se a influência do autor, num dos seus principais discípulos DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo Volume IV – 1984 pp 37 e ss.

(2) Sobre o conceito de cadeia hierárquica e  hierarquia como modelo de organização administrativa com algum pormenor: MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral tomo II (policopiado)  pp 40 e ss.

(3) Sobre o conceito, no país de origem do mesmo vide MAURICE HAURIOU, Précis de Droit Administratif de Droit Public – 1919 pp 442 e ss e pp 1038 e ss.

 (4) VASCO PEREIRA DA SILVA,  in  O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções No Novo Processo Administrativo pp 13 e ss. faz uma análise histórica pormenorizada sobre a evolução do Contencioso Administrativo, começando pelo modelo francês; e ainda MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral tomo I, 1ª edição pp 100 e ss; DIOGO FREITAS DO AMARAL Curso de Direito Administrativo volume I  3ª edição   pp 70 e ss; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa – Lições 10ª edição  pp 25 e ss.

(5)  JEAN RIVERO Droit Administratif  9º edition 1980  pp 209 e ss; 237 e ss.,  onde o autor distingue o recurso por excesso de poder e o recurso de plena jurisdição.

(6) Entre as múltiplas alterações sofridas com a revisão constitucional de 1989, veja-se aquela que em concreto nos interessa em JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional tomo I 7ª edição  página 394.  

(7) VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo Como “Direito Constitucional Concretizado” Ou Ainda Por Concretizar? pp 29 e ss diz que é definitivamente afastada a tradicional concepção “actocêntrica do Direito Administrativo adoptando-se a figura da relação jurídica administrativa como nova figura central.

(8) VASCO PEREIRA DA SILVA, na sua dissertação de doutoramento: Em Busca do Acto Administrativo Perdido 1996  pp 664 e ss, analisa esta temática criticando o regime vigente na altura e os autores e a jurisprudência  que seguiam esta linha de pensamento.

(9) Vide o acórdão nº499/96 do Tribunal Constitucional Português (relatora MARIA FERNANDA PALMA), pronunciando-se os juízes conselheiros pela constitucionalidade do recurso hierárquico necessário, pois consideraram não existir violação do artigo 268º/4 da CRP.

(10) Sobre a constitucionalização da Justiça Administrativa veja-se a referência em  DIOGO FREITAS DO AMARAL E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo 2ª edição pp 25 e ss.

 (11)  Nos primórdios do Direito Administrativo, no Estado Liberal de Direito dos finais do século XVIII e século XIX,  havia apenas uma forma de actuação da Administração  (o acto administrativo autoritário que caracterizava a Administração Agressiva de então em que o súbdito estava sujeito aos comandos vinculativos e desvantajosos para a sua esfera jurídica) e a referência ao fenómeno em  OTTO MAYER, Derecho Administrativo Aléman  Tomo I – Parte General 1982 pp 27 e ss.

(12) SÉRVULO CORREIA, in Direito do Contencioso Administrativo I  pp 709 e ss onde o autor salienta o facto de se ter abandonado o conceito de acto previsto no antigo ETAF de 1984 e na LPTA.

(13) Sobre este artigo, ver o comentário ao CPTA feito por MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo Nos Tribunais Administrativos Anotado  Volume I pp 386 a 394.

(14) VASCO PEREIRA DA SILVA,  De Necessário a Útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo Contencioso Administrativo in Cadernos de Justiça Administrativa pp 21 e ss onde o autor baseado no novo regime introduzido pela reforma de 2002  analisa a transformação do conceito aqui em estudo.

(15) A título meramente exemplificativo veja-se a Lei 34/2007 de 13 de Agosto (Regulamento de Disciplina Militar)

(16) MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição pág. 139.

(17) Uma vez mais VASCO PEREIRA DA SILVA – De Necessário a Útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo Contencioso Administrativo in Cadernos de Justiça Administrativa pp 25 e ss.        

(18) Este argumento de índole formal, só parece ter validade nos casos em que exista legislação posterior à entrada em vigor do CPTA, que preveja o recurso hierárquico necessário, pois na legislação já em vigor à entrada do CPTA, o mesmo nunca pode suceder pois não há um conflito de lei geral/lei especial no tempo. Desta forma, tal argumento poderia fazer sentido por exemplo, com    Lei 34/2007 de 13 de Agosto (Regulamento de Disciplina Militar), visto ser posterior à entrada em vigor do CPTA.

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