quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Breve Estudo do Interesse como Condição de Legitimidade


1. O problema da legitimidade das partes para impugnar actos administrativos é um dos mais delicados do contencioso administrativo, suscitando a cada passo dificuldades que nem sempre a jurisprudência e a doutrina têm podido vencer com felicidade, isto é, à luz de princípios lógicos susceptíveis de aplicação coerente.
Tem, antes de mais, legitimidade para impugnar actos administrativos quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 55.º, n.º 1, alínea a)). A anulação ou a declaração de nulidade de actos administrativos pode ser, portanto, pedida a um tribunal administrativo por quem nisso tenha interesse, no sentido em que reivindica para si próprio uma vantagem jurídica ou económica que há-de resultar dessa anulação ou declaração de nulidade.
Uma série de questões dignas de exame se levantam aqui. Iremos tratar dos atributos do interesse requeridos para a legitimidade.

2. Muito antes de no Direito positivo português se exigir, como condição de legitimidade, a posse de um interesse directo e pessoal no provimento da acção administrativa especial para impugnação de actos administrativos, já a jurisprudência do antigo Supremo Tribunal Administrativo, primeiro, e do Supremo Conselho de Administração Pública, a seguir, definiam nesses termos o interesse formal que o recorrente devia demonstrar, conformando-se desse modo com a doutrina francesa.
Interesse formal, isto é, interesse processual, interesse digno de obter a atenção dos órgãos jurisdicionais, porque justamente essa concepção da legitimidade surge como um progresso relativamente à orientação, mais estreita, em que o Supremo exigia que se apresentasse como titular de um direito subjectivo cuja violação alegasse.
O autor francês neste particular consultado e seguido pela jurisprudência portuguesa foi, sem dúvida, HAURIOU.
Defendia, o Professor de Toulouse, ao tratar do recurso por excesso de poder perante o Conselho de Estado Francês, que era necessário que o reclamante tivesse na anulação do acto um interesse. Este interesse, que o acto prejudica e que não é necessariamente extraído de um direito, é na maior parte dos casos um simples interesse administrativo, o interesse, por exemplo, em obter uma concessão do domínio publico ou em não se ver privado dela. Daí resulta a máxima de que o recurso por excesso de poder é proporcionado pelo simples interesse ferido sem que exija um direito violado. Para HAURIOU este interesse não tinha que ser necessariamente pecuniário, nem necessariamente importante, podia ser um simples interesse moral ou um fraco interesse pecuniário.
Mas este interesse deve apresentar qualidades essenciais, deve ser directo e pessoal ao reclamante.
Directo e imediato, quer dizer que o interesse não deve ser eventual, mas actual, e que a anulação do acto deve acarretar uma satisfação imediata ao reclamante, mas não uma satisfação longínqua; assim, o reclamante que não seja senão herdeiro presuntivo de um proprietário, não teria qualidade para interpor recurso contra um acto que imponha encargos à propriedade.
Pessoal ao reclamante, significa que o recurso não é uma actios popularis aberta a qualquer um: o interesse que justifica o recurso deve derivar duma situação jurídica particular em que se ache que o reclamante relativamente ao acto atacado e que este tenha podido lesar.

3. Na exposição de HAURIOU é relativamente claro o que diz acerca do interesse em si mesmo e do seu caracter directo. O mesmo não se pode dizer quanto à pessoalidade dele.
            Está bem que se diga que o interesse tem de se verificar concretamente na pessoa do recorrente, sem que se confunda com o interesse geral da legalidade ou duma colectividade ou de um grupo. Mas HAURIOU exige mais: exige que derive duma situação jurídica, o que imediatamente acarreta o exame de um outro atributo com o qual este passa a confundir-se, o do carácter legítimo do interesse.
            Segundo HAURIOU o interesse é legítimo se resulta duma situação jurídica definida em que o interessado se encontre face à Administração. Bem entendido, o interesse é legítimo se resulta de direitos adquiridos do administrado oponíveis à Administração; mas o interesse é ainda legítimo quando resultante de decisões anteriores da própria Administração que coloquem o administrado em certa categoria sujeita a encargos precisos e limitados ou de decisões anteriores à Administração de que o administrado tenha tirado ou possa esperar vantagens legítimas.
             Ao tratar deste último atributo, o autor francês fá-lo assentar numa situação jurídica definida, face à Administração, excluindo as situações de facto criadas independentemente de anteriores resoluções administrativas ou à sombra de actos de mera tolerância. Para HAURIOU, a mera situação de facto que não fosse devida a decisões administrativas anteriores, nem ao exercício de um direito individual ou que resultasse de mera tolerância da Administração não conferiria, por si só, interesse legítimo para contestar os actos da Administração.
            O falecido Prof. Fezas Vital recusou-se, desde sempre, a aceitar esta noção de interesse legítimo, entendendo que bastava ao tribunal português verificar “se o interesse invocado pelo recorrente é directo e pessoal e se resulta duma situação permitida pelo direito objectivo”. Continuava o autor dizendo que, “… teórica e racionalmente nada nos impede e, pelo contrário, tudo nos leva a afirmar que o legislador deve garantir contenciosamente a livre realização dos interesses resultantes de situações legitimamente criadas contra os ataques e ofensas ilegais da administração, quer essas situações sejam jurídicas, quer não”.
            Novas dificuldades surgem agora, com esta fórmula do Prof. Fezas Vital: o que são situações, jurídicas ou não, legitimamente criadas? Aquelas que a lei não proíbe? Como bem refere o Prof. Marcelo Caetano, em Direito Público a licitude não basta: é necessária a legalidade.

4. Todos os autores franceses contemporâneos sublinham o carácter maleável, a flexibilidade da sua jurisprudência em matéria de legitimidade, juntamente com a preocupação de abrir o mais possível o acesso aos meios contenciosos, de tal como que, embora sem chegar à “acção popular”, todos quantos possam alegar interesse na anulação sejam recebidos a pugnar pela legalidade. 
            LAUBADÈRE, um dos mais fiéis expositores do Direito Administrativo francês, resume assim essa posição: “A solução adoptada pela jurisprudência francesa é a do interesse ofendido. O recorrente deve justificar certo interesse na anulação do acto “. Este autor continua afirmando que “duma maneira geral, pode-se dizer que o Conselho de Estado se mostrou progressivamente mais liberal na determinação do interesse considerado suficiente; todavia, em certos domínios particulares e para evitar que se caminhasse para a acção popular, voltou a uma noção mais estreita do interesse exigido. Tais tendências devem assinalar-se no que respeita à natureza do interesse exigido do recorrente, ao seu grau de intensidade, enfim, às suas relações com o interesse que a lei violada tinha precisamente por fim proteger”.
            LAUBADÈRE passa depois a precisar a orientação seguida a respeito de cada um destes pontos:
Natureza do interesse invocado. Admite ao lado do interesse material e individual, o interesse moral e o interesse colectivo.
Grau de interesse invocado. Para ser pessoal, o interesse alegado pelo recorrente deve comportar um grau de individualização muito próprio e específico.
Relações entre o interesse invocado e o interesse protegido pela lei. Não basta que o recorrente prove ter interesse na anulação do acto. É preciso ainda que esse interesse coincida com aquele que a lei pretendeu proteger, por outras palavras, que a regra violada tenha sido editada no interesse dos administrados (ou das pessoas públicas recorrentes) mas não no interesse exclusivo da Administração e dos seus serviços públicos. A questão é, portanto, de saber no interesse de quem foi formulada a regra legal.”

5. Conhecidos assim o caminho percorrido e a posição actual da jurisprudência francesa que em certa parte influenciou a nossa doutrina e, através desta, a legislação nacional em matéria de legitimidade, vamos a ver onde nos encontramos nós.
            Havemos de partir sempre dos textos legais que, com ficou dito, recolheram nos seus preceitos as lições da doutrina.
            A nossa lei considera fundamentalmente idóneos para impugnar um acto administrativo os que alegarem ser “titulares de um interesse directo e pessoal”.

6. Temos, pois, que, tal como em França, a condição básica de legitimidade que a lei exige para a intervenção no processo administrativo é o interesse.
            Sistema que, aliás, não é aberrante no Direito Processual Civil português, pois o artigo 26.º do Código de Processo Civil coloca em termos análogos o conceito de legitimidade.
            “O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legitima quanto tem interesse directo em contradizer.
            O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência do pedido; o interesse em contradizer pelo prejuízo causado por essa mesma procedência”.
O art. 26.º, para o Prof. Marcelo Caetano, dá uma noção de interesse, que se for ajustável ao Direito Administrativo, não se vê razão para se substituir por outra. O Prof. Marcelo Caetano sempre defendeu a aproximação da técnica do Direito Administrativo, tanto quanto possível, da dos outros ramos de Direito português na medida em que essa técnica respeite a realidades idênticas ou a institutos afins. Há peculiaridades da Administração e do Direito Público irredutíveis a noções comuns, mas a par delas existem muitos pontos em que a comunidade de princípios e de nomenclatura é perfeitamente possível. “Nestes últimos casos, por que motivo se há-de fechar o Direito Administrativo a essa comunidade, transformando-o numa província completamente independente dos outros domínios da Enciclopédia Jurídica e tornando-o inacessível a quem não haja professado na sua realidade exotérica” – pergunta o Professor.
Acusaram o Prof. Marcelo Caetano, por via desta atitude, de ter civilizado o Direito Administrativo, querendo os críticos dizer com isto que aproximou, em Portugal, a técnica administrativista da técnica civilista.
Vinha isto a propósito de ser ou não lícito utilizar o artigo 26.º do Código de Processo Civil para a definição do interesse em recorrer. Se a utilidade se traduz numa vantagem ou satisfação obtida mediante a anulação do acto recorrido, porque não?
É isso justamente que importa no interesse. Tem interesse na anulação de um acto administrativo quem espera do desaparecimento do imperativo contido num acto uma vantagem pecuniária, uma vantagem de posição profissional ou de carreira, uma vantagem económica ou uma satisfação moral ligada ao seu bom nome e reputação, ao prestígio duma função exercida ou outra análoga. O interesse pode, pois, ser material ou moral.

João Mascarenhas de Carvalho, 18198

Sem comentários:

Enviar um comentário