Parte 1 - Organização Judiciária (Administrativa) de Macau
Macau constitui, a par de Hong Kong, uma Região Administrativa
Especial da República Popular da China, desde 20 de Dezembro de 1999.
Como se sabe, o território de Macau (ou RAEM) foi administrado (ou
co-administrado) por Portugal desde o século XVI até 1999. Não é por isso de
estranhar que a organização judiciária de Macau se tenha inspirado no modelo
Português. Convém referir que a RAEM foi dotada, pela sua Lei Básica, de um
elevado grau de autonomia relativamente à República Popular da China, gozando
de poderes executivo, legislativo e judicial independentes. Assim, as leis
chinesas não se aplicam em Macau, à excepção das indicadas pela Lei Básica. É
de notar que só
os tribunais da RAEM têm jurisdição sobre as causas judiciais que respeitam à
Região. Isto é, em nenhum caso os tribunais da RPC exteriores a Macau têm
jurisdição sobre as causas que a lei interna prevê como da competência dos
tribunais da RAEM.
Em Macau, não se pode falar em contencioso em sentido orgânico, já que
não são apenas os tribunais administrativos os incumbidos de proceder à
resolução de conflitos entre a Administração Pública e os particulares. Ainda
assim, já se reconhece que “julgar a Administração é verdadeiramente julgar”. A
Região Administrativa Especial de Macau faz parte da família das comunidades
políticas envolvidas que adoptaram o modelo judiciário na resolução de
conflitos de Direito Administrativo, ou seja, o exercício da jurisdição
administrativa é da competência de órgãos jurisdicionais integrados no poder
judicial.
Para melhor compreender a organização judiciária da Região importa
analisar alguns artigos da Lei Básica de Macau (como que o Direito Constitucional
da RAEM) e da Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei nº 9/1999, doravante
LBOJ).
O art. 84º §1 da Lei Básica (doravante LBM) prevê que existam em Macau
tribunais de primeira instância, um Tribunal de Segunda Instância e um Tribunal
de Última Instância, podendo nos primeiros constituir-se tribunais de
competência especializada, nos termos do art. 85º §1. No âmbito do contencioso
administrativo importa-nos mais o disposto no art. 86º: Macau “dispõe de um Tribunal Administrativo que tem
jurisdição sobre as acções administrativas e fiscais. Das decisões do Tribunal
Administrativo, cabe recurso para o Tribunal de Segunda Instância”; daqui
resulta que, ao contrário do que existia anteriormente, já há um sistema de
tribunais de três instâncias, com duplo grau de jurisdição, como em Portugal.
A questão que se coloca é saber se o sistema existente é de tribunais
da mesma categoria ou ordem jurisdicional, ou de ordens diferentes (como em
Portugal). A situação de Macau é duvidosa. Na opinião de João Luís Dias Soares,
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, o Tribunal
Administrativo (TA) é um tribunal de ordem diferente dos restantes, uma vez
que:
- · Não há nenhum impedimento a que uma ordem jurisdicional seja composta por um único tribunal;
- · A LBM impõe a existência do TA ao legislador ordinário (o que não acontece nos restantes tribunais de competência especializada do Tribunal Judicial de Base (Tribunal de primeira instância);
- · A LBM estabelece o recurso para o Tribunal de Segunda Instância, o que seria desnecessário se o TA fosse um mero tribunal de primeira instância;
- · E tudo isto assente num preceito autónomo daquele que consagra a hierarquia dos tribunais (art. 84º §1)
Pelas razões apontadas, este Professor entende que a LBM institui um sistema integrado mas não unitário de
tribunais: integrado porque o TA se insere, para efeitos de recurso, na ordem
jurisdicional comum, ficando por isso subordinado aos tribunais superiores
dessa ordem; não unitário porque é afinal um tribunal de ordem jurisdicional
diferente.
Não obstante o que é aparentemente definido na LBM, o legislador
ordinário da LBJO (Lei nº 9/1999) acabou por adoptar uma outra solução: um sistema de tribunais integrados e unitários,
segundo o qual o TA aparece como um tribunal de competência especializada de
uma e única ordem jurisdicional. Ainda assim, verdade seja dita que esta
desconformidade levaria às mesmas soluções que a propugnada na Lei Fundamental.
Isto porque, o importante é que o TA seja considerado, como resulta da LBM,
como O tribunal de competência administrativa e fiscal por excelência. Contudo,
isto não acontece, até porque, na prática, o tribunal colectivo do TA é sempre
presidido por um presidente do tribunal colectivo do Tribunal Judicial de Base.
Assim sendo, temos que os tribunais que, em Macau, dispõem de
competências para a resolução de questões jurídico-administrativas e fiscais
são: o TA (em primeira instância), o Tribunal de Segunda Instância e o Tribunal
de Última Instância (umas vezes em primeira instância outras em instância de
recurso).
Contudo, as incongruências não ficam por aqui. Diversos artigos da
LBJO entram em conflito com o CPAC (Código do Processo Administrativo e
Contencioso da RAEM). A título de exemplo veja-se o art. 23º/6 al. 4) LOBJ em confronto
com o art. 99º/3 CPAC. O primeiro estipula que “Sem prejuízo dos casos em que as leis de processo prescindam da sua
intervenção, compete ao tribunal colectivo julgar: (…)As questões de facto nas
acções da competência do Tribunal Administrativo de valor superior à alçada dos
tribunais de primeira instância”; enquanto o segundo propugna o seguinte: “Excepto nas hipóteses em que a lei de
processo civil prescinda da sua intervenção e nas acções destinadas a obter uma
indemnização cujo valor não exceda a alçada dos tribunais, as questões de facto
nas acções propostas no Tribunal Administrativo são julgadas em tribunal
colectivo”. Ora, nos termos do CPAC as questões de facto propostas no TA
serão julgadas por tribunal colectivo se
o valor da indemnização não exceder a alçada dos tribunais, mas a LBOJ obriga
ao julgamento dessas questões por tribunal colectivo quando o valor exceder a
alçada da primeira instância.
A LBOJ
foi revista em 2004, mas a revisão não “sanou” as contradições do regime, ou
então terá de ser revisto o CPAC. Esperemos pela nova revisão da LBOJ (http://hojemacau.com.mo/?p=43914) para verificar se as várias incompatibilidades serão resolvidas.
Referências:
Lei Básica da RAEM (disponível em: http://bo.io.gov.mo/bo/i/1999/leibasica/index.asp);
Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM (disponível em:
Código do Processo Administrativo e Contencioso da RAEM (disponível em: http://bo.io.gov.mo/bo/i/99/50/codpacpt/codpac051.asp#c3a88);
SOARES, João Luís Dias, O Suporte Institucional do Contencioso Administrativo
da Região Administrativa Especial de Macau, artigo.
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