terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Contencioso Administrativo Macaense (1)

Parte 1 - Organização Judiciária (Administrativa) de Macau



Macau constitui, a par de Hong Kong, uma Região Administrativa Especial da República Popular da China, desde 20 de Dezembro de 1999.
Como se sabe, o território de Macau (ou RAEM) foi administrado (ou co-administrado) por Portugal desde o século XVI até 1999. Não é por isso de estranhar que a organização judiciária de Macau se tenha inspirado no modelo Português. Convém referir que a RAEM foi dotada, pela sua Lei Básica, de um elevado grau de autonomia relativamente à República Popular da China, gozando de poderes executivo, legislativo e judicial independentes. Assim, as leis chinesas não se aplicam em Macau, à excepção das indicadas pela Lei Básica. É de notar que só os tribunais da RAEM têm jurisdição sobre as causas judiciais que respeitam à Região. Isto é, em nenhum caso os tribunais da RPC exteriores a Macau têm jurisdição sobre as causas que a lei interna prevê como da competência dos tribunais da RAEM.

Em Macau, não se pode falar em contencioso em sentido orgânico, já que não são apenas os tribunais administrativos os incumbidos de proceder à resolução de conflitos entre a Administração Pública e os particulares. Ainda assim, já se reconhece que “julgar a Administração é verdadeiramente julgar”. A Região Administrativa Especial de Macau faz parte da família das comunidades políticas envolvidas que adoptaram o modelo judiciário na resolução de conflitos de Direito Administrativo, ou seja, o exercício da jurisdição administrativa é da competência de órgãos jurisdicionais integrados no poder judicial.

Para melhor compreender a organização judiciária da Região importa analisar alguns artigos da Lei Básica de Macau (como que o Direito Constitucional da RAEM) e da Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei nº 9/1999, doravante LBOJ).
O art. 84º §1 da Lei Básica (doravante LBM) prevê que existam em Macau tribunais de primeira instância, um Tribunal de Segunda Instância e um Tribunal de Última Instância, podendo nos primeiros constituir-se tribunais de competência especializada, nos termos do art. 85º §1. No âmbito do contencioso administrativo importa-nos mais o disposto no art. 86º: Macau “dispõe de um Tribunal Administrativo que tem jurisdição sobre as acções administrativas e fiscais. Das decisões do Tribunal Administrativo, cabe recurso para o Tribunal de Segunda Instância”; daqui resulta que, ao contrário do que existia anteriormente, já há um sistema de tribunais de três instâncias, com duplo grau de jurisdição, como em Portugal.
A questão que se coloca é saber se o sistema existente é de tribunais da mesma categoria ou ordem jurisdicional, ou de ordens diferentes (como em Portugal). A situação de Macau é duvidosa. Na opinião de João Luís Dias Soares, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, o Tribunal Administrativo (TA) é um tribunal de ordem diferente dos restantes, uma vez que:

  • ·         Não há nenhum impedimento a que uma ordem jurisdicional seja composta por um único tribunal;
  • ·         A LBM impõe a existência do TA ao legislador ordinário (o que não acontece nos restantes tribunais de competência especializada do Tribunal Judicial de Base (Tribunal de primeira instância);
  • ·         A LBM estabelece o recurso para o Tribunal de Segunda Instância, o que seria desnecessário se o TA fosse um mero tribunal de primeira instância;
  • ·         E tudo isto assente num preceito autónomo daquele que consagra a hierarquia dos tribunais (art. 84º §1)


Pelas razões apontadas, este Professor entende que a LBM institui um sistema integrado mas não unitário de tribunais: integrado porque o TA se insere, para efeitos de recurso, na ordem jurisdicional comum, ficando por isso subordinado aos tribunais superiores dessa ordem; não unitário porque é afinal um tribunal de ordem jurisdicional diferente.
Não obstante o que é aparentemente definido na LBM, o legislador ordinário da LBJO (Lei nº 9/1999) acabou por adoptar uma outra solução: um sistema de tribunais integrados e unitários, segundo o qual o TA aparece como um tribunal de competência especializada de uma e única ordem jurisdicional. Ainda assim, verdade seja dita que esta desconformidade levaria às mesmas soluções que a propugnada na Lei Fundamental. Isto porque, o importante é que o TA seja considerado, como resulta da LBM, como O tribunal de competência administrativa e fiscal por excelência. Contudo, isto não acontece, até porque, na prática, o tribunal colectivo do TA é sempre presidido por um presidente do tribunal colectivo do Tribunal Judicial de Base.
Assim sendo, temos que os tribunais que, em Macau, dispõem de competências para a resolução de questões jurídico-administrativas e fiscais são: o TA (em primeira instância), o Tribunal de Segunda Instância e o Tribunal de Última Instância (umas vezes em primeira instância outras em instância de recurso).

Contudo, as incongruências não ficam por aqui. Diversos artigos da LBJO entram em conflito com o CPAC (Código do Processo Administrativo e Contencioso da RAEM). A título de exemplo veja-se o art. 23º/6 al. 4) LOBJ em confronto com o art. 99º/3 CPAC. O primeiro estipula que “Sem prejuízo dos casos em que as leis de processo prescindam da sua intervenção, compete ao tribunal colectivo julgar: (…)As questões de facto nas acções da competência do Tribunal Administrativo de valor superior à alçada dos tribunais de primeira instância”; enquanto o segundo propugna o seguinte: “Excepto nas hipóteses em que a lei de processo civil prescinda da sua intervenção e nas acções destinadas a obter uma indemnização cujo valor não exceda a alçada dos tribunais, as questões de facto nas acções propostas no Tribunal Administrativo são julgadas em tribunal colectivo”. Ora, nos termos do CPAC as questões de facto propostas no TA serão julgadas  por tribunal colectivo se o valor da indemnização não exceder a alçada dos tribunais, mas a LBOJ obriga ao julgamento dessas questões por tribunal colectivo quando o valor exceder a alçada da primeira instância.  

A LBOJ foi revista em 2004, mas a revisão não “sanou” as contradições do regime, ou então terá de ser revisto o CPAC. Esperemos pela nova revisão da LBOJ  (http://hojemacau.com.mo/?p=43914) para verificar se as várias incompatibilidades serão resolvidas.



Referências:
Lei Básica da RAEM (disponível em: http://bo.io.gov.mo/bo/i/1999/leibasica/index.asp);
Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM (disponível em:
digo do Processo Administrativo e Contencioso da RAEM (disponível em: http://bo.io.gov.mo/bo/i/99/50/codpacpt/codpac051.asp#c3a88);
SOARES, João Luís Dias, O Suporte Institucional do Contencioso Administrativo da Região Administrativa Especial de Macau, artigo.

 

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