A arbitragem traduz sempre uma tentativa de composição de um
conflito de interesses que, situando-se fora dos tribunais oficiais do Estado,
apela à produção de uma decisão final cujo conteúdo satisfaça o melhor possível
ambas as partes envolvidas.
Seguindo de perto os ensinamentos de JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL, é
possível diferenciar no domínio da arbitragem administrativa dois tipos
distintos de arbitragem:
i) A arbitragem segundo a lei, envolvendo uma decisão do
litígio conforme o direito positivo, em tudo semelhante ao idêntico processo de
resolução do conflito por via de um tribunal administrativo ou judicial, deverá
sempre gerar uma sentença cujos resultados não serão distintos daqueles que um
“tribunal oficial” produziria;
ii) A arbitragem segundo a equidade, habilitando que o
julgamento a efectuar pelos árbitros não se limite a uma aplicação estrita da
lei escrita, envolve a possibilidade de serem ponderadas razões de
conveniência, razoabilidade e justiça do caso concreto, designadamente os
seguintes aspectos:
- Predomínio da
substância sobre a forma;
- Desconsideração de
certas exigências legais de natureza formal;
- Atendimento
autónomo de usos, costumes e regras técnicas;
- Julgamento
orientado para se alcançar uma solução final do caso concreto que seja justa.
Aristóteles reflectiu sobre a relação entre a justiça e a
equidade. Na sua Ética a Nicómaco,
dizia o autor grego que a equidade é apresentada como a “justiça do caso
concreto”. O problema está em saber como é que a equidade pode ser colocada em
campo contra a justiça, sendo a justiça o valor jurídico mais elevado – ou será
que afinal não é? Aristóteles deparou-se com este dilema. Por um lado, a
equidade seria melhor do que o direito legal, mas, por outro lado, não o seria
no sentido de pertencer a um género diverso.
Vejam-se aqui as passagens decisivas: “A razão da dificuldade
está em que a equidade, apesar de ser direito, não é direito legal, mas sim a
sua correcção. Esta pode justificar-se pelo facto de toda a lei ser geral e não
ser possível, em muitos casos, obter uma decisão justa através duma regra
geral. Por vezes, é necessário que se estabeleça uma regra geral, que não
poderá ser sempre justa, pois apenas considera a maioria dos casos, o que não
significa que se ignorem as omissões decorrentes desse procedimento. E tal
procedimento não deixa de ser correcto. Pois as omissões não resultam nem da
lei nem do legislador, mas da natureza do caso (…). Assim, quando a lei se
pronuncia de forma geral e, seguidamente, surge um caso particular a que essa
regra geral não se adequa, é justo suprimir tal omissão, tal como o próprio
legislador teria feito se tivesse o caso diante de si e, tendo tomado
conhecimento dele, o tivesse comtemplado na lei”.
Toda a norma tem de generalizar. Uma “norma”
individualizante, uma “norma” especificamente para este, aquele ou aqueloutro
caso é uma contradição, não é uma norma. É evidente que a generalização pode
ter diferente amplitude, a norma não tem de valer sempre para todas as pessoas,
mas sim para todos os menores, para todos os comerciantes, para todos os
assassinos. E neste ponto se distinguem justiça e equidade. É uma diferença de
pontos de vista. Paradigmaticamente do ponto de vista do legislador, por um
lado, e do ponto de vista do juiz, por outro lado: aquele parte da norma geral
para o caso concreto (dedução), este, do caso concreto para a norma geral
(indução).
O problema central a investigar, neste breve estudo, consiste
em saber até que ponto uma decisão arbitral em matéria administrativa que seja
pautada pela equidade pode “abdicar de parte” da legalidade ou até que ponto a
legalidade jurídico-positiva pode auto-excluir-se a favor da equidade na
resolução arbitral dos litígios emergentes de relações jurídico-administrativas:
até onde poderá a legalidade consentir que os tribunais se “libertem” da lei
positiva? É nestes termos que o problema é colocado por PAULO OTERO.
No que especificamente ao Direito Administrativo diz
respeito, confrontam-se duas grandes concepções sobre o valor jurídico a
reconhecer à equidade:
i) Existem, por um lado, aqueles que, defendendo a
possibilidade de a equidade operar contra
legem, entendem que os tribunais arbitrais podem derrogar o Direito
positivo, decidindo o litígio pelo sentimento de justiça próprio do juiz
perante as circunstâncias do caso concreto, isto ainda que contra a solução
típica da lei;
ii) Existem outros,
pelo contrário, que apenas reconhecem aos tribunais arbitrais a faculdade de
adaptar o Direito ao caso concreto, nunca lhes sendo admissível decidir contra legem.
Em resumo, se não oferece grande controvérsia a
admissibilidade de uma equidade secundum
legem, já uma utilização praeter
legem da equidade suscita certas reservas, sendo alvo de profunda
controvérsia que a equidade habilite decisões arbitrais contra legem.
A reforma do contencioso administrativo de 2002 veio, por seu
lado, admitir, expressamente, que os tribunais arbitrais possam apreciar actos
administrativos relativos à execução de contractos, esclarecendo que os
tribunais arbitrais são susceptíveis de conhecer, nos termos da habilitação
legal, matérias referentes à legalidade ou ilegalidade de contractos e actos
administrativos.
É neste domínio que se coloca a questão central: podem os
tribunais arbitrais socorrer-se da equidade para apreciar a legalidade de
condutas administrativas e afastar, se entenderem justificado por razões de
justiça do caso concreto, as normas de Direito positivo reguladoras da questão,
proferindo uma decisão final contra legem?
Atendendo à lição que se extrai do Código de Processo dos
Tribunais administrativos sobre o papel da equidade na limitação dos efeitos
decorrentes de uma aplicação rígida da normatividade jurídico-positiva,
verifica-se que a equidade pode também em sede de arbitragem administrativa, e
desde que as circunstâncias do caso concreto o justifiquem, limitar ou suavizar
os efeitos de um julgamento envolvendo uma aplicação integral da lei: a
equidade pode aqui determinar uma rectificação ou correcção aplicativa da lei
administrativa.
Os tribunais arbitrais, ao apreciar a legalidade de uma
conduta administrativa, apesar de vinculados à normatividade para aferir se a
conduta é válida ou inválida, nunca lhes sendo legítimo concluir pela validade
quando a conduta é desconforme com a legalidade, encontram-se habilitados,
todavia, se puderem julgar segundo a equidade, a limitar os efeitos de um juízo
de invalidade de um contrato ou do acto administrativo e, neste sentido, a
proferirem uma decisão final cujo conteúdo envolva a produção de efeitos contra legem.
Como bem nota PAULO OTERO, uma tal decisão arbitral fará,
nesse último sentido, uma aplicação da equidade contra legem. Trata-se, no entanto, de uma aplicação contra legem da equidade dotada de “um
mínimo de objectividade jussocial”, pois mostra-se perfeitamente conforme com o
espirito do sistema jurídico: sendo possível extrair do sistema uma prevalência
da equidade sobre o rigor da aplicação dos princípios da constitucionalidade e
da legalidade quanto à invalidade de normas jurídicas que servem de fundamento
da actuação administrativa, então a norma legal que permite ou impõe o
julgamento arbitral segundo a equidade nunca pode deixar de ser interpretada no
sentido de habilitar uma prevalência da justiça do caso concreto, segundo o
procedente juízo dos árbitros, sobre o rigor das normas positivas definidoras
dos efeitos típicos da invalidade em Direito Administrativo.
A susceptibilidade de uma decisão arbitral fundada num juízo
de equidade ser contra legem
torna-se, deste modo, uma quase inevitabilidade da norma legal que, mandando
decidir segundo a equidade, tem de ter algum conteúdo útil e se insere num
sistema jurídico que confere à equidade um papel flexibilizador do rigor do
Direito positivo e, neste sentido, habilitante da derrogação aplicativa das
suas soluções normativas, substituindo-as por decisões mais conformes à justiça
do caso concreto.
A admissibilidade de
decisões arbitrais contra legem não
pode, porém, deixar de ser analisada no contexto da legalidade como padrão de
conformidade da actuação administrativa.
Cumpre esclarecer que a possibilidade de os tribunais
arbitrais julgarem segundo a equidade não lhes confere uma habilitação para
decidir em termos ajurídicos ou arbitrariamente contra lei expressa: a equidade
exige sempre uma ponderação dos resultados decorrentes da aplicação do Direito
positivo ao caso concreto, aferindo se tais resultados expressam uma solução
efectiva ou materialmente justa.
Não há aqui qualquer espaço para uma transformação da
equidade em arbitrariedade, nem se pode dizer que a equidade substitui ou
derroga o padrão de conformidade normativa a que se encontra sujeita a actuação
administrativa.
A equidade surge como cláusula geral que, por expressa
consagração na ordem jurídico-positiva, envolve uma ponderação em concreto da
ideia de justiça na aplicação da legalidade administrativa no momento do
julgamento arbitral de litígios emergentes de certo tipo de relações
jurídico-administrativas.
Uma vez que o uso da equidade encontra sempre o seu
fundamento numa norma legal, isto significa que mesmo os casos de decisão
arbitral contra legem ainda
correspondem a uma vontade expressa do legislador.
É assim impossível dizer, seguindo o pensamento de PAULO
OTERO, que a decisão arbitral contra
legem não encontra um fundamento dentro do sistema jurídico e da própria
legalidade jurídico-positiva: decidir contra
legem em nome da justiça do caso concreto ainda é aplicar a lei que manda
ou permite submeter o julgamento de certo tipo de litígios à equidade.
João Mascarenhas de Carvalho, aluno 18198
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