quinta-feira, 22 de novembro de 2012

ARBITRAGEM ADMINISTRATIVA E EQUIDADE


A arbitragem traduz sempre uma tentativa de composição de um conflito de interesses que, situando-se fora dos tribunais oficiais do Estado, apela à produção de uma decisão final cujo conteúdo satisfaça o melhor possível ambas as partes envolvidas.

Seguindo de perto os ensinamentos de JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL, é possível diferenciar no domínio da arbitragem administrativa dois tipos distintos de arbitragem:

i) A arbitragem segundo a lei, envolvendo uma decisão do litígio conforme o direito positivo, em tudo semelhante ao idêntico processo de resolução do conflito por via de um tribunal administrativo ou judicial, deverá sempre gerar uma sentença cujos resultados não serão distintos daqueles que um “tribunal oficial” produziria;
ii) A arbitragem segundo a equidade, habilitando que o julgamento a efectuar pelos árbitros não se limite a uma aplicação estrita da lei escrita, envolve a possibilidade de serem ponderadas razões de conveniência, razoabilidade e justiça do caso concreto, designadamente os seguintes aspectos:
- Predomínio da substância sobre a forma;
- Desconsideração de certas exigências legais de natureza formal;
- Atendimento autónomo de usos, costumes e regras técnicas;
- Julgamento orientado para se alcançar uma solução final do caso concreto que seja justa.

Aristóteles reflectiu sobre a relação entre a justiça e a equidade. Na sua Ética a Nicómaco, dizia o autor grego que a equidade é apresentada como a “justiça do caso concreto”. O problema está em saber como é que a equidade pode ser colocada em campo contra a justiça, sendo a justiça o valor jurídico mais elevado – ou será que afinal não é? Aristóteles deparou-se com este dilema. Por um lado, a equidade seria melhor do que o direito legal, mas, por outro lado, não o seria no sentido de pertencer a um género diverso.

Vejam-se aqui as passagens decisivas: “A razão da dificuldade está em que a equidade, apesar de ser direito, não é direito legal, mas sim a sua correcção. Esta pode justificar-se pelo facto de toda a lei ser geral e não ser possível, em muitos casos, obter uma decisão justa através duma regra geral. Por vezes, é necessário que se estabeleça uma regra geral, que não poderá ser sempre justa, pois apenas considera a maioria dos casos, o que não significa que se ignorem as omissões decorrentes desse procedimento. E tal procedimento não deixa de ser correcto. Pois as omissões não resultam nem da lei nem do legislador, mas da natureza do caso (…). Assim, quando a lei se pronuncia de forma geral e, seguidamente, surge um caso particular a que essa regra geral não se adequa, é justo suprimir tal omissão, tal como o próprio legislador teria feito se tivesse o caso diante de si e, tendo tomado conhecimento dele, o tivesse comtemplado na lei”.
Toda a norma tem de generalizar. Uma “norma” individualizante, uma “norma” especificamente para este, aquele ou aqueloutro caso é uma contradição, não é uma norma. É evidente que a generalização pode ter diferente amplitude, a norma não tem de valer sempre para todas as pessoas, mas sim para todos os menores, para todos os comerciantes, para todos os assassinos. E neste ponto se distinguem justiça e equidade. É uma diferença de pontos de vista. Paradigmaticamente do ponto de vista do legislador, por um lado, e do ponto de vista do juiz, por outro lado: aquele parte da norma geral para o caso concreto (dedução), este, do caso concreto para a norma geral (indução).

O problema central a investigar, neste breve estudo, consiste em saber até que ponto uma decisão arbitral em matéria administrativa que seja pautada pela equidade pode “abdicar de parte” da legalidade ou até que ponto a legalidade jurídico-positiva pode auto-excluir-se a favor da equidade na resolução arbitral dos litígios emergentes de relações jurídico-administrativas: até onde poderá a legalidade consentir que os tribunais se “libertem” da lei positiva? É nestes termos que o problema é colocado por PAULO OTERO.

No que especificamente ao Direito Administrativo diz respeito, confrontam-se duas grandes concepções sobre o valor jurídico a reconhecer à equidade:
i) Existem, por um lado, aqueles que, defendendo a possibilidade de a equidade operar contra legem, entendem que os tribunais arbitrais podem derrogar o Direito positivo, decidindo o litígio pelo sentimento de justiça próprio do juiz perante as circunstâncias do caso concreto, isto ainda que contra a solução típica da lei;
ii)  Existem outros, pelo contrário, que apenas reconhecem aos tribunais arbitrais a faculdade de adaptar o Direito ao caso concreto, nunca lhes sendo admissível decidir contra legem.

Em resumo, se não oferece grande controvérsia a admissibilidade de uma equidade secundum legem, já uma utilização praeter legem da equidade suscita certas reservas, sendo alvo de profunda controvérsia que a equidade habilite decisões arbitrais contra legem.

A reforma do contencioso administrativo de 2002 veio, por seu lado, admitir, expressamente, que os tribunais arbitrais possam apreciar actos administrativos relativos à execução de contractos, esclarecendo que os tribunais arbitrais são susceptíveis de conhecer, nos termos da habilitação legal, matérias referentes à legalidade ou ilegalidade de contractos e actos administrativos.

É neste domínio que se coloca a questão central: podem os tribunais arbitrais socorrer-se da equidade para apreciar a legalidade de condutas administrativas e afastar, se entenderem justificado por razões de justiça do caso concreto, as normas de Direito positivo reguladoras da questão, proferindo uma decisão final contra legem?

Atendendo à lição que se extrai do Código de Processo dos Tribunais administrativos sobre o papel da equidade na limitação dos efeitos decorrentes de uma aplicação rígida da normatividade jurídico-positiva, verifica-se que a equidade pode também em sede de arbitragem administrativa, e desde que as circunstâncias do caso concreto o justifiquem, limitar ou suavizar os efeitos de um julgamento envolvendo uma aplicação integral da lei: a equidade pode aqui determinar uma rectificação ou correcção aplicativa da lei administrativa.

Os tribunais arbitrais, ao apreciar a legalidade de uma conduta administrativa, apesar de vinculados à normatividade para aferir se a conduta é válida ou inválida, nunca lhes sendo legítimo concluir pela validade quando a conduta é desconforme com a legalidade, encontram-se habilitados, todavia, se puderem julgar segundo a equidade, a limitar os efeitos de um juízo de invalidade de um contrato ou do acto administrativo e, neste sentido, a proferirem uma decisão final cujo conteúdo envolva a produção de efeitos contra legem.

Como bem nota PAULO OTERO, uma tal decisão arbitral fará, nesse último sentido, uma aplicação da equidade contra legem. Trata-se, no entanto, de uma aplicação contra legem da equidade dotada de “um mínimo de objectividade jussocial”, pois mostra-se perfeitamente conforme com o espirito do sistema jurídico: sendo possível extrair do sistema uma prevalência da equidade sobre o rigor da aplicação dos princípios da constitucionalidade e da legalidade quanto à invalidade de normas jurídicas que servem de fundamento da actuação administrativa, então a norma legal que permite ou impõe o julgamento arbitral segundo a equidade nunca pode deixar de ser interpretada no sentido de habilitar uma prevalência da justiça do caso concreto, segundo o procedente juízo dos árbitros, sobre o rigor das normas positivas definidoras dos efeitos típicos da invalidade em Direito Administrativo.

A susceptibilidade de uma decisão arbitral fundada num juízo de equidade ser contra legem torna-se, deste modo, uma quase inevitabilidade da norma legal que, mandando decidir segundo a equidade, tem de ter algum conteúdo útil e se insere num sistema jurídico que confere à equidade um papel flexibilizador do rigor do Direito positivo e, neste sentido, habilitante da derrogação aplicativa das suas soluções normativas, substituindo-as por decisões mais conformes à justiça do caso concreto.

 A admissibilidade de decisões arbitrais contra legem não pode, porém, deixar de ser analisada no contexto da legalidade como padrão de conformidade da actuação administrativa.

Cumpre esclarecer que a possibilidade de os tribunais arbitrais julgarem segundo a equidade não lhes confere uma habilitação para decidir em termos ajurídicos ou arbitrariamente contra lei expressa: a equidade exige sempre uma ponderação dos resultados decorrentes da aplicação do Direito positivo ao caso concreto, aferindo se tais resultados expressam uma solução efectiva ou materialmente justa.

Não há aqui qualquer espaço para uma transformação da equidade em arbitrariedade, nem se pode dizer que a equidade substitui ou derroga o padrão de conformidade normativa a que se encontra sujeita a actuação administrativa.

A equidade surge como cláusula geral que, por expressa consagração na ordem jurídico-positiva, envolve uma ponderação em concreto da ideia de justiça na aplicação da legalidade administrativa no momento do julgamento arbitral de litígios emergentes de certo tipo de relações jurídico-administrativas.

Uma vez que o uso da equidade encontra sempre o seu fundamento numa norma legal, isto significa que mesmo os casos de decisão arbitral contra legem ainda correspondem a uma vontade expressa do legislador.

É assim impossível dizer, seguindo o pensamento de PAULO OTERO, que a decisão arbitral contra legem não encontra um fundamento dentro do sistema jurídico e da própria legalidade jurídico-positiva: decidir contra legem em nome da justiça do caso concreto ainda é aplicar a lei que manda ou permite submeter o julgamento de certo tipo de litígios à equidade. 

João Mascarenhas de Carvalho, aluno 18198

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