domingo, 4 de novembro de 2012

AS RELAÇÕES JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS MULTIPOLARES – CONTRIBUTO PARA A SUBJECTIVIZAÇÃO  TOTAL DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO


O acto administrativo (1), enquanto conceito quadro fundamental da teoria jus administrativista,  constitui ainda a forma de actuação administrativa  mais frequente na actualidade, apesar de muitos autores considerarem que tal conceito está em, crise (2).
O acto administrativo foi a primeira forma de actuação da Administração Pública, constituindo o mesmo num comando de actuação imperativo e vinculativo para os cidadãos destinatários desse mesmo acto. Este modelo de acto constitui o paradigma da Administração agressiva do Estado Liberal e que se prolongou até ao surgimento das Constituições do Estado social e posterior incremento de uma administração prestacional que facultava bens e serviços aos cidadãos. (3)
As relações administrativas estabeleciam-se assim entre duas partes pré definidas (Estado/ Cidadão), num binómio bilateral de relacionamento jus-administrativista.
Com o desenvolvimento e incremento das funções do Estado e subsequente alargamento das áreas onde intervém a Administração, os actos emitidos por esta passaram a ter um reflexo não só na esfera jurídica do seu receptor, mas também na esfera jurídica de terceiros, estranhos aquela relação jurídica concreta.
É neste contexto que surge a temática dos actos, ou mais correctamente relações administrativas multilaterais (4), poligonais ou triangulares onde para além do destinatário de determinada medida administrativa, um terceiro é afectado na sua vida em termos práticos por esta.
É importante estudar este fenómeno, uma vez que, este ocorre constantemente na actual administração infra estrutural, o mesmo ter ganho uma grande incidência no Direito Administrativo especial (5) e também pelo facto da  reforma do Contencioso Administrativo português de 2004, ter aproximado o nosso regime próximo do Direito germânico (6), sendo que foi neste ordenamento jurídico que as relações jurídicas multilaterais surgiram e ganharam maior fulgor dogmático-prático.
Preliminarmente, podemos dizer que as relações jurídicas multipolares se caracterizam pela existência de dois interesses privados conflituantes derivados de um acto jurídico público emitido pela administração e que coloca os destinatários em sentido amplo daquele acto numa situação antagónica.
Este conceito administrativo nasceu de forma incipiente, ainda no Estado Liberal de Direito, nos finais do século XIX, devido a problemas do foro prático que se colocavam entre os particulares e a Administração e que careciam de ser resolvidos, nomeadamente a impugnação de actos administrativos de terceiros que interferissem na esfera jurídica de outro particular, causando-lhe algum dano, passando a jurisprudência alemã a permitir que tais impugnações ocorressem (7).
Porém, só com a entrada em vigor da Lei Fundamental alemã, o conceito ganhou maior operatividade, devido à tutela directa e efectiva dos direitos subjectivos dos particulares aí prevista, uma vez que o cidadão e a garantia dos seus direitos eram o centro gravitacional daquele complexo normativo.
Mas, o surgimento do Código de Procedimento Administrativo Germânico (VwVfG) de 1976, demonstra claramente o sentido subjectivista seguido e a consagração do modelo de procedimento multipolar ao permitir a intervenção de terceiros no procedimento administrativo, se interesses e direitos de terceiros pudessem estar em ligação com aquele concreto procedimento (veja-se o parágrafo 13 desse diploma).
Refira-se que todo este modelo jurídico não surgiu por acaso. É importante salientar que o mesmo tem raízes históricas profundas, uma vez que toda a construção administrativista de além reno, foi construída numa base subjectivista de tutela dos direitos e interesses dos particulares.
O mesmo já não acontece em ordenamentos jurídicos como o francês (8) e até 2004 com o português (9), uma vez que o modelo seguido nestes países é de índole objectivista, revelando em primeiro lugar a defesa da legalidade.   
Definido preliminarmente o conceito, e feita uma breve abordagem histórica do mesmo, cabe agora trata-lo em termos dogmáticos de forma a que possamos aplica-lo a todas as situações que caiam no seu âmbito de aplicação.
Como já referimos anteriormente, as relações jurídicas multipolares, verificam-se sempre que é emitido um acto administrativo atributivo de vantagens ou perdas para um particular, que reflexamente atinge um terceiro, exterior aquela relação jurídica concreta.
Cabe então aferir quando é que efectivamente tal situação acontece. A doutrina tem ensaiado várias construções de aplicação deste conceito.
Para alguns, para que se pudesse aplicar o conceito, seria necessário que existisse uma lesão num bem jurídico de terceiro, devido à prática de um acto imediato, final, imperativo e jurídico por parte da Administração.  
Outros, traziam à colação a ideia de que existe um espaço de fruição dos direitos individuais, que não deve ser atingido pela actuação de terceiros.
Existem ainda autores que dizem que existe normas de condutas administrativa que devem ser respeitadas pelas partes, dando o exemplo da relação que existe entre o proprietário de um bem imóvel e o seu vizinho que deve ser analisada em moldes de Direito Público e não tanto em moldes de Direito Privado.
Todas estas teorias parecem ser insuficientes, uma vez que, parecem continuar a pairar sobre o dogma da relação bipolar Administração particular, sendo o terceiro reflexamente tutelado e não propriamente titular daquela relação jurídica ampla.
Parece-nos que tal doutrina defende uma teoria de actos administrativos com eficácia externa, continuando contudo o acto administrativo emitido a assentar numa ideia de relatividade estrutural, copiando de certo modo a construção privatista das obrigações com eficácia externa em relação a terceiros.(10)
Este tipo de construção, não parece proceder, pois no contemporâneo Estado Democrático de Direito, não nos podemos esquecer que é tarefa primordial do Direito Administrativo, concretizar o Direito Constitucional, retirando-o das amarras da teoria jurídica para um plano materialmente prático, pois aos particulares não interessa uma Lei Fundamental pejada de normas programáticas, se o legislador ordinário e a própria Administração não dão concretização prática às mesmas.
Assim sendo, cabe criar uma teoria geral e abstracta e não individual e concreta, que tutele os direitos fundamentais subjectivos dos particulares em situação conflitual (11).
Tal caminho, é alcançado recorrendo, às relações jurídicas multilaterais, que têm que encontrar efectivamente o seu fundamento na lei, devendo legislar-se com carácter geral e abstracto isto é (aplicando as norma daí retiradas a uma pluralidade indeterminada de pessoas e situações de facto. É este o caminho que deve ser seguido, pois só através do mesmo, será possível tutelar todos aqueles que tenham interesses conflituantes, chamando-os àquela relação jurídico-administrativa de modo a que nenhum particular no exercício dos seus direitos subjectivos agrida a esfera jurídica pessoal ou patrimonial de outros particulares.
Esta solução permite acabar com outro trauma da infância difícil do Direito Administrativo, afastando-se definitivamente a ideia de acto administrativo bilateral, ao chamar-se àquela relação jurídica multipolar todos aqueles abrangidos na sua previsão normativa, passando os “pseudo terceiros”  a ter sempre uma tutela efectiva, e não meramente eventual
A Administração passa assim a poder conformar os interesses privados conflituantes podendo ter maior, ou menor margem de autonomia administrativa na resolução daquele litígio.
Em suma, através desta solução ensaiada, não faz sentido distinguir  destinatário do acto administrativo e terceiro, pois se a situação jurídica dos particulares, cair no âmbito de aplicação do programa normativo multipolar, todos eles são partes integrantes daquele acto e daquela relação jurídico-administrativa.(12)
Esta teoria tem uma forte relevância no Contencioso Administrativo pois se não existisse a figura das relações jurídicas multilaterais, muitos particulares não veriam os direitos subjectivos tutelados porque não tinham ligação directa com a relação material controvertida.
São múltiplas as manifestações das relações jurídicas multilaterais no Contencioso Administrativo português, podendo citar-se a título meramente exemplificativo a possibilidade de cumulação de pedidos artigos 4º e 12º do CPTA e a obrigatoriedade de demandar os contra-interessados quando se pretenda impugnar um acto administrativo artigo 57.º CPTA.
Todavia, parece-nos, que a letra do artigo 57.º do CPTA persiste ainda na velha ideia de bilateralidade dos actos administrativos, sendo os contra-interessados “terceiros” e não verdadeiramente titulares de uma relação jurídica administrativista.
Assim sendo, defendemos de iure condendo, que o legislador deveria introduzir efectivamente e de uma vez por todas uma ideia de legitimidade de carácter subjectivista, (acabando com o laivos de objectivismo ainda persistentes),  em que todos aqueles abrangidos por determinado acto administrativo fariam parte da acção, não como terceiros, mas sim como titulares daquela relação material controvertida multilateral, pois só assim interesses e direitos subjectivos antagónicos podiam ser tutelados de forma equitativa e equilibrada.
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() Existem duas grandes tradições de entendimento do acto administrativo: a teoria ampla de acto administrativo sufragada pela generalidade da doutrina portuguesa (por exemplo: Marcello Caetano, Marcelo Rebelo de Sousa, Fausto de Quadros) enquanto produtor de efeitos jurídicos, podendo os actos ser recorríveis e não recorríveis e a teoria restrita de acto administrativo que engloba apenas os actos recorríveis produtores de efeitos jurídicos inovadores na esfera do particular. É este a posição dominante no Direito Alemão e entre nós defendida por exemplo por Sérvulo Correia e Rogério Soares

(2) É o caso de VASCO PEREIRA DA SILVA que refere que na actual administração infra estrutural existem outras múltiplas forma de actuação mais adequadas às recentes necessidades. Em sentido contrário SÉRVULO CORREIA – Acto Administrativo e Âmbito de Jurisdição Administrativa – Estudos em Homenagem ao Professor Rogério Soares, Coimbra 2001 página 1182 onde salienta que o velho conceito de acto administrativo da Administração Agressiva tem hoje ainda  relevância actual.

(3) Ver a referência a este fenómeno em: MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral – tomo I, 1ª edição Dom Quixote  pp 88 e ss.

(4) ver por todos a dissertação de doutoramento de VASCO PEREIRA DA SILVA – Em Busca do Acto Administrativo Perdido 1996 Almedina pp 160 e ss, onde o autor desenvolve com algum pormenor a temática das relações jurídicas bilaterais fazendo uma evolução histórica do assunto procurando buscar a sua génese e ainda pp 273 e ss; e pp 598 e ss. .

(5) Entre outros ramos de Direito Administrativo Especial onde este fenómeno tem relevância podemos salientar: o Direito do Urbanismo, o Direito Administrativo Económico, O Direito dos Resíduos, o Direito da Energia…

(6) Tal como salientam: DIOGO FREITAS DO AMARAL E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo 2ª edição Almedina página 6.  

(7) Veja-se em pormenor o surgimento da figura em estudo em FRANCISCO PAES MARQUES  As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares – Contributo Para a Sua Compreensão Substantiva pp 121 e ss.

(8) VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no  Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª edição Almedina  pp 13 e ss, onde o autor realiza uma análise detalhada do surgimento do Direito Processual Administrativo de matriz francesa.

(9) Idem, pp 189 e ss.

(10) MENEZES CORDEIRO, Tratado De Direito Civil Português II Direito das Obrigações tomo I 1º edição 2009 Almedina pp 353 e ss, onde é detalhadamente analisada a temática da eficácia externa das obrigações, pondo este civilista assim em xeque, a doutrina tradicional da relatividade das obrigações, propondo uma relatividade tendencial destas.

(11) É importante não esquecer porém, que o acto administrativo continua a ter um carácter individual, o que sucede aqui é que os destinatários têm é de ser sempre determináveis.

(12) FRANCISCO PAES MARQUES, ob Cit. página 284 chama a tal solução programa normativo multipolar, designação que nós parece feliz, e à qual também aderimos.


















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