AS
RELAÇÕES JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS MULTIPOLARES – CONTRIBUTO PARA A
SUBJECTIVIZAÇÃO TOTAL DO CONTENCIOSO
ADMINISTRATIVO
O
acto administrativo (1), enquanto conceito quadro fundamental da teoria jus
administrativista, constitui ainda a
forma de actuação administrativa mais
frequente na actualidade, apesar de muitos autores considerarem que tal
conceito está em, crise (2).
O
acto administrativo foi a primeira forma de actuação da Administração Pública,
constituindo o mesmo num comando de actuação imperativo e vinculativo para os
cidadãos destinatários desse mesmo acto. Este modelo de acto constitui o
paradigma da Administração agressiva do Estado Liberal e que se prolongou até
ao surgimento das Constituições do Estado social e posterior incremento de uma
administração prestacional que facultava bens e serviços aos cidadãos. (3)
As
relações administrativas estabeleciam-se assim entre duas partes pré definidas
(Estado/ Cidadão), num binómio bilateral de relacionamento
jus-administrativista.
Com
o desenvolvimento e incremento das funções do Estado e subsequente alargamento
das áreas onde intervém a Administração, os actos emitidos por esta passaram a
ter um reflexo não só na esfera jurídica do seu receptor, mas também na esfera
jurídica de terceiros, estranhos aquela relação jurídica concreta.
É
neste contexto que surge a temática dos actos, ou mais correctamente relações
administrativas multilaterais (4), poligonais ou triangulares onde para além do
destinatário de determinada medida administrativa, um terceiro é afectado na
sua vida em termos práticos por esta.
É
importante estudar este fenómeno, uma vez que, este ocorre constantemente na
actual administração infra estrutural, o mesmo ter ganho uma grande incidência
no Direito Administrativo especial (5) e também pelo facto da reforma do Contencioso Administrativo português
de 2004, ter aproximado o nosso regime próximo do Direito germânico (6), sendo
que foi neste ordenamento jurídico que as relações jurídicas multilaterais
surgiram e ganharam maior fulgor dogmático-prático.
Preliminarmente,
podemos dizer que as relações jurídicas multipolares se caracterizam pela
existência de dois interesses privados conflituantes derivados de um acto
jurídico público emitido pela administração e que coloca os destinatários em
sentido amplo daquele acto numa situação antagónica.
Este
conceito administrativo nasceu de forma incipiente, ainda no Estado Liberal de
Direito, nos finais do século XIX, devido a problemas do foro prático que se
colocavam entre os particulares e a Administração e que careciam de ser
resolvidos, nomeadamente a impugnação de actos administrativos de terceiros que
interferissem na esfera jurídica de outro particular, causando-lhe algum dano,
passando a jurisprudência alemã a permitir que tais impugnações ocorressem (7).
Porém,
só com a entrada em vigor da Lei Fundamental alemã, o conceito ganhou maior
operatividade, devido à tutela directa e efectiva dos direitos subjectivos dos
particulares aí prevista, uma vez que o cidadão e a garantia dos seus direitos
eram o centro gravitacional daquele complexo normativo.
Mas,
o surgimento do Código de Procedimento Administrativo Germânico (VwVfG) de 1976, demonstra claramente o
sentido subjectivista seguido e a consagração do modelo de procedimento
multipolar ao permitir a intervenção de terceiros no procedimento
administrativo, se interesses e direitos de terceiros pudessem estar em ligação
com aquele concreto procedimento (veja-se o parágrafo 13 desse diploma).
Refira-se
que todo este modelo jurídico não surgiu por acaso. É importante salientar que
o mesmo tem raízes históricas profundas, uma vez que toda a construção
administrativista de além reno, foi construída numa base subjectivista de
tutela dos direitos e interesses dos particulares.
O
mesmo já não acontece em ordenamentos jurídicos como o francês (8) e até 2004
com o português (9), uma vez que o modelo seguido nestes países é de índole
objectivista, revelando em primeiro lugar a defesa da legalidade.
Definido
preliminarmente o conceito, e feita uma breve abordagem histórica do mesmo,
cabe agora trata-lo em termos dogmáticos de forma a que possamos aplica-lo a
todas as situações que caiam no seu âmbito de aplicação.
Como
já referimos anteriormente, as relações jurídicas multipolares, verificam-se
sempre que é emitido um acto administrativo atributivo de vantagens ou perdas
para um particular, que reflexamente atinge um terceiro, exterior aquela
relação jurídica concreta.
Cabe
então aferir quando é que efectivamente tal situação acontece. A doutrina tem
ensaiado várias construções de aplicação deste conceito.
Para
alguns, para que se pudesse aplicar o conceito, seria necessário que existisse
uma lesão num bem jurídico de terceiro, devido à prática de um acto imediato,
final, imperativo e jurídico por parte da Administração.
Outros,
traziam à colação a ideia de que existe um espaço de fruição dos direitos
individuais, que não deve ser atingido pela actuação de terceiros.
Existem
ainda autores que dizem que existe normas de condutas administrativa que devem
ser respeitadas pelas partes, dando o exemplo da relação que existe entre o
proprietário de um bem imóvel e o seu vizinho que deve ser analisada em moldes
de Direito Público e não tanto em moldes de Direito Privado.
Todas
estas teorias parecem ser insuficientes, uma vez que, parecem continuar a
pairar sobre o dogma da relação bipolar Administração particular, sendo o terceiro
reflexamente tutelado e não propriamente titular daquela relação jurídica
ampla.
Parece-nos
que tal doutrina defende uma teoria de actos administrativos com eficácia
externa, continuando contudo o acto administrativo emitido a assentar numa
ideia de relatividade estrutural, copiando de certo modo a construção
privatista das obrigações com eficácia externa em relação a terceiros.(10)
Este
tipo de construção, não parece proceder, pois no contemporâneo Estado
Democrático de Direito, não nos podemos esquecer que é tarefa primordial do
Direito Administrativo, concretizar o Direito Constitucional, retirando-o das
amarras da teoria jurídica para um plano materialmente prático, pois aos
particulares não interessa uma Lei Fundamental pejada de normas programáticas,
se o legislador ordinário e a própria Administração não dão concretização
prática às mesmas.
Assim
sendo, cabe criar uma teoria geral e abstracta e não individual e concreta, que
tutele os direitos fundamentais subjectivos dos particulares em situação
conflitual (11).
Tal
caminho, é alcançado recorrendo, às relações jurídicas multilaterais, que têm
que encontrar efectivamente o seu fundamento na lei, devendo legislar-se com
carácter geral e abstracto isto é (aplicando as norma daí retiradas a uma pluralidade
indeterminada de pessoas e situações de facto. É este o caminho que deve ser
seguido, pois só através do mesmo, será possível tutelar todos aqueles que
tenham interesses conflituantes, chamando-os àquela relação
jurídico-administrativa de modo a que nenhum particular no exercício dos seus
direitos subjectivos agrida a esfera jurídica pessoal ou patrimonial de outros
particulares.
Esta
solução permite acabar com outro trauma da infância difícil do Direito
Administrativo, afastando-se definitivamente a ideia de acto administrativo
bilateral, ao chamar-se àquela relação jurídica multipolar todos aqueles
abrangidos na sua previsão normativa, passando os “pseudo terceiros” a ter sempre uma tutela efectiva, e não
meramente eventual
A
Administração passa assim a poder conformar os interesses privados
conflituantes podendo ter maior, ou menor margem de autonomia administrativa na
resolução daquele litígio.
Em
suma, através desta solução ensaiada, não faz sentido distinguir destinatário do acto administrativo e
terceiro, pois se a situação jurídica dos particulares, cair no âmbito de
aplicação do programa normativo multipolar, todos eles são partes integrantes
daquele acto e daquela relação jurídico-administrativa.(12)
Esta
teoria tem uma forte relevância no Contencioso Administrativo pois se não
existisse a figura das relações jurídicas multilaterais, muitos particulares
não veriam os direitos subjectivos tutelados porque não tinham ligação directa
com a relação material controvertida.
São
múltiplas as manifestações das relações jurídicas multilaterais no Contencioso
Administrativo português, podendo citar-se a título meramente exemplificativo a
possibilidade de cumulação de pedidos artigos 4º e 12º do CPTA e a
obrigatoriedade de demandar os contra-interessados quando se pretenda impugnar
um acto administrativo artigo 57.º CPTA.
Todavia,
parece-nos, que a letra do artigo 57.º do CPTA persiste ainda na velha ideia de
bilateralidade dos actos administrativos, sendo os contra-interessados
“terceiros” e não verdadeiramente titulares de uma relação jurídica
administrativista.
Assim
sendo, defendemos de iure condendo, que
o legislador deveria introduzir efectivamente e de uma vez por todas uma ideia
de legitimidade de carácter subjectivista, (acabando com o laivos de
objectivismo ainda persistentes), em que
todos aqueles abrangidos por determinado acto administrativo fariam parte da
acção, não como terceiros, mas sim como titulares daquela relação material
controvertida multilateral, pois só assim interesses e direitos subjectivos
antagónicos podiam ser tutelados de forma equitativa e equilibrada.
.
() Existem duas grandes tradições de
entendimento do acto administrativo: a teoria ampla de acto administrativo
sufragada pela generalidade da doutrina portuguesa (por exemplo: Marcello
Caetano, Marcelo Rebelo de Sousa, Fausto de Quadros) enquanto produtor de
efeitos jurídicos, podendo os actos ser recorríveis e não recorríveis e a
teoria restrita de acto administrativo que engloba apenas os actos recorríveis
produtores de efeitos jurídicos inovadores na esfera do particular. É este a
posição dominante no Direito Alemão e entre nós defendida por exemplo por
Sérvulo Correia e Rogério Soares
(2) É o caso de VASCO PEREIRA DA SILVA
que refere que na actual administração infra estrutural existem outras
múltiplas forma de actuação mais adequadas às recentes necessidades. Em sentido
contrário SÉRVULO CORREIA – Acto Administrativo
e Âmbito de Jurisdição Administrativa – Estudos em Homenagem ao Professor
Rogério Soares, Coimbra 2001 página 1182 onde salienta que o velho conceito
de acto administrativo da Administração Agressiva tem hoje ainda relevância actual.
(3)
Ver a referência a este fenómeno em: MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO
MATOS, Direito Administrativo Geral –
tomo I, 1ª edição Dom Quixote pp 88
e ss.
(4)
ver por todos a dissertação de doutoramento de VASCO PEREIRA DA SILVA – Em Busca do Acto Administrativo Perdido 1996
Almedina pp 160 e ss, onde o autor desenvolve com algum pormenor a temática das
relações jurídicas bilaterais fazendo uma evolução histórica do assunto
procurando buscar a sua génese e ainda pp 273 e ss; e pp 598 e ss. .
(5)
Entre outros ramos de Direito Administrativo Especial onde este fenómeno tem
relevância podemos salientar: o Direito do Urbanismo, o Direito Administrativo
Económico, O Direito dos Resíduos, o Direito da Energia…
(6)
Tal como salientam: DIOGO FREITAS DO AMARAL E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso
Administrativo 2ª edição Almedina
página 6.
(7) Veja-se em pormenor o surgimento da
figura em estudo em FRANCISCO PAES MARQUES As
Relações Jurídicas Administrativas Multipolares – Contributo Para a Sua
Compreensão Substantiva pp 121 e ss.
(8) VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no
Novo Processo Administrativo, 2ª edição Almedina pp 13 e ss, onde o autor
realiza uma análise detalhada do surgimento do Direito Processual
Administrativo de matriz francesa.
(9) Idem,
pp 189 e ss.
(10) MENEZES CORDEIRO, Tratado De Direito Civil Português II
Direito das Obrigações tomo I 1º edição 2009 Almedina pp 353 e ss, onde é detalhadamente
analisada a temática da eficácia externa das obrigações, pondo este civilista assim
em xeque, a doutrina tradicional da relatividade das obrigações, propondo uma
relatividade tendencial destas.
(11) É importante não esquecer porém,
que o acto administrativo continua a ter um carácter individual, o que sucede
aqui é que os destinatários têm é de ser sempre determináveis.
(12) FRANCISCO PAES MARQUES, ob Cit.
página 284 chama a tal solução programa normativo multipolar, designação que
nós parece feliz, e à qual também aderimos.
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