terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Acto que deveria ter sido emitido e não foi



    Nos primórdios do Direito Administrativo e face à dogmatização do princípio da separação de poderes, era impensável que os tribunais condenassem a Administração à prática de actos devidos, ou seja, a Administração poderia recusar-se a praticar um acto que lhe foi legitimamente pedido por um particular. Assim, os particulares eram destituídos de direitos subjectivos invocáveis perante o Estado não tendo como se defender de um acto ilegal ou de uma omissão indevida praticada pela Administração isto porque estava em vigor um Contencioso de mera anulação de matriz Francesa e destinado à protecção da legalidade objectiva. Note-se que a Administração só figurava como parte para acções em matéria de contratos e de responsabilidade.
    O princípio da separação de poderes preconizado por Montesquieu era então alvo de interpretações erróneas onde julgar e administrar eram facilmente confundidos. Assim, entendia-se que a condenação da Administração era a substituição desta pelos tribunais, quais revolucionários franceses onde “julgar a Administração é também administrar”.
    Com o apogeu do Estado Social, o princípio da separação de poderes passou a ser entendido de outra forma. Segundo o Professor Gomes Canotilho, é confiado a cada órgão soberano uma função materialmente distinta. Assim, nenhum desses órgãos poderá interferir na esfera de jurisdição do outro sob pena de violação do princípio da separação de poderes.
     Com a reforma de 1984/1985, o Professor Freitas do Amaral refere que os particulares poderiam optar entre intentar logo a acção para o reconhecimento de direitos ou optar por utilizar o recurso de anulação do indeferimento tácito. A ideia transposta para o art. 69º da LPTA teve clara influência alemã, através da denominada “acção condenatória da Administração”.
    A revisão constitucional de 1997 foi urgente e nas palavras do Prof. Mário Aroso “constitucionalmente obrigatória”. Para o Prof. Sérvulo Correia, nasceu um novo meio processual de natureza condenatória que culminou com a previsão da possibilidade aos administrados de tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, ou seja, assegurou-se a tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares – art. 268.º n.º 4 CRP. Quanto a este artigo, o Professor Vasco Pereira da Silva afirmava que poderia haver formulação do pedido de condenação tanto para a acção de reconhecimento de direitos como para o contencioso de anulação.
    Com a entrada em vigor do CPTA, surge no art. 66.º a acção de condenação à prática do acto devido passando a ser indiscutível a admissibilidade de pedidos de condenação da Administração à prática de actos devidos.
    O acto devido é uma das quatro sub-espécies de acções qualificadas em função do pedido. É uma modalidade de acção administrativa especial pautada pela ausência de um acto que na perspectiva do autor deveria ter sido emitido e não foi – art. 46º/2-b) e 66.º e seguintes CPTA. Em síntese é uma forma processual utilizada pelo particular para combater eventuais inércias administrativas.


O conceito referenciado supra abrange três situações:



1) A primeira situação de pura omissão vem mencionada no art. 67º n.º 1 al. a) CPTA (violação do dever de proceder). Esta conjuntura corresponde às situações em que, tendo havido requerimento do particular, a Administração não tenha decidido no prazo legalmente estabelecido. Até aqui, a alternativa a esta solução era considerar-se indeferidas as pretensões e permitir ao particular a utilização dos meios de impugnação. Actualmente, com a condenação à prática do acto devido, o art. 109.º do CPA deixa de fazer sentido sendo de entender-se tacitamente revogado segundo o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva. Este artigo difere do art. 108º do CPA uma vez que este acto de deferimento tácito não dá azo a dirigir ao Tribunal Administrativo um pedido de condenação à prática do acto devido, uma vez que a produção do acto resultou da própria lei.



2) A segunda situação vem prevista no art. 67.º n.º 1 al. b) CPTA. Aqui estão patentes as situações em que a Administração pratica actos de indeferimento ou de conteúdo negativo e actos de recusa da pretensão ou prática do acto devido, isto é, a Administração pratica um acto que não satisfaz a pretensão do autor (violação do dever de resolver). Neste caso, o autor passa a poder fazer valer a sua posição substantiva ao invés de impugnar o acto – arts. 51º n.º 4 e 66.º n.º 2 do CPTA.



3) Finalmente, a terceira hipótese tem teor legal no art. 67.º n.º 1 al c) CPTA. Aqui está prevista uma omissão por recusa de apreciação do requerimento dirigido à prática do acto. A Administração nem sequer considera a pretensão.


     A discricionariedade é uma das características da actuação da Administração. Assim, um acto de conteúdo devido pode integrar momentos discricionários sendo a sua emissão legalmente obrigatória. Nos termos do art. 71.º n.º 1 CPTA, a sentença emitida será sempre condenatória ainda que o requerimento não tenha obtido resposta ou a sua apreciação tenha sido recusada uma vez que o juíz deve impor a prática do acto devido.
    As sentenças de condenação à prática de acto devido têm o dever de concretizar qual o âmbito e o limite das vinculações legais – art. 71.º n.º 2 CPTA. Nos termos do art. 66º n.º 3 CPTA, para se prever o incumprimento pode determinar-se a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias sendo a condenação genérica se o tribunal assim o considerar.
    O art. 169.º n.º 1 CPTA culmina com a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias aos titulares dos órgãos condenados pela sentença.
    A legitimidade para pedir a condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido consta do art. 68.º do CPTA. No artigo referido figuram tanto os sujeitos privados, os sujeitos públicos, o Ministério Público e o actor popular. Estes dois últimos suscitam mais dúvidas na doutrina. Para o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva, a disposição patente no art. 68.º n.º 1 al c) necessita de uma interpretação correctiva visto que tanto as omissões como os actos de conteúdo negativo têm como objectivo último tutelar direitos e interesses dos particulares. Assim, na omissão, tem de haver um pedido do particular nos termos dos arts. 67.º n.º 1 al a) CPTA e 9.º CPA. Quanto ao actor popular, apesar de figurar no art. 68.º n.º 1 do CPTA, o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva entende não ser de admitir a sua inclusão na legitimidade para pedir a condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido.
    Em relação aos prazos para o direito de acção, estes variam de três meses a um ano conforme o disposto no art. 69.º do CPTA.




Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso de- O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição.2004;
BRITO, Wladimir- Lições de Direito Processual Administrativo, 2ª edição. Coimbra Editora.2008;
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina,2009;
PROENÇA, André Rosa Lã Pais - As duas faces da condenação à prática do acto devido. Lisboa, 2005. Tese apresentada à Faculdade de Direito de Lisboa.


Liliana de Castro, aluna n.º 18219.
 

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