(Des)
valorização do Órgão ou da Pessoa colectiva?
I.
Enquadramento geral - legitimidade passiva dos
entes públicos
II.
Legitimidade Passiva da Pessoa Colectiva Pública
III.
Pela demanda do Órgão
1.
Tutela do particular
2.
Por uma boa administração
3.
Argumento legal
4.
Excepções à nova regra
i.
Litígios interorganicos
ii.
Pessoa colectiva Estado em especial
iii.
Princípio da desculpabilidade do erro na
identificação do autor do acto
5.
Entidades públicas sui géneris
IV.
Considerações finais
I.
Enquadramento
geral - legitimidade passiva dos entes públicos
A reforma do contencioso administrativo consagrou uma inovação no que
toca à determinação da legitimidade passiva dos entes públicos, assistimos a
uma mudança de critério que coloca como parte passiva a Pessoa Colectiva
Publica e não o órgão.
Consideramos esta mudança ilusória pois muitas são as excepções na
prática ao critério, o caso de litígios interorgânicos, também permitidos pelo
CPTA, a pessoa colectiva Estado em especial e os casos em que assistimos à
consagração do que podemos chamar Princípio da desculpabilidade do erro na
identificação da entidade pública demandada. Estas excepções levam ao
enfraquecimento da regra geral e a uma continuidade com o pensamento face à
legitimidade passiva das entidades publicas antes da reforma.
Com esta abordagem pretendemos demonstrar que o que existe é apenas uma
falsa ruptura com o critério da demanda do órgão e por outro lado a importância
do órgão enquanto parte passiva nas acções que têm por objecto acção ou omissão
de uma entidade pública.
II.
Legitimidade
passiva da Pessoa Colectiva Pública
Para tratarmos da matéria temos que
atender ao art.10 nº2 do CPTA que nos indica na primeira parte o critério
geral, a “parte demandada é a Pessoa Colectiva Pública”. Como fundamentos desta
mudança de critério podemos indicar um argumento de ordem histórica pois o
recurso de anulação foi abolido e só aí fazia sentido demandar o órgão que
praticou o acto, com um contencioso de partes e tendencialmente subjectivista a
mudança de paradigma foi uma das questões a resolver, conforme disposto nos
considerandos iniciais do CPTA.
Por outro lado pretende-se solucionar a
dificuldade inerente ao particular na determinação do órgão, considerando o
nosso legislador que a Pessoa Colectiva é de mais fácil determinação,
recordamos que na antiga LPTA esta errada identificação era constante e levava
à improcedência de inúmeros litígios.
III.Pela demanda do
Órgão
1.Tutela do particular
Segundo o art.10 do CPA, a administração pública
deve zelar pela desburocratização e pela eficiência, também no procedimento dos
tribunais administrativos devem ser consagrados esses princípios. Um
contencioso de cariz tendencialmente subjectivo considera a tutela do
particular como fim directo e o interesse público como fim indirecto. O
particular vê a sua posição tutelada agora com o mecanismo do art.10/4 que
prima pelo aproveitamento dos seus actos e consagra uma desculpabilidade nos
casos de erro na de identificação do autor do acto.
Contudo, esta protecção não é ilimitada
pois o particular vê a improcedência do litígio se identifica um órgão que não
pertence à pessoa colectiva pública em apreço. Assim sendo e segundo um prisma
de protecção do particular, parece-nos que existe um vínculo mais estreito na
relação jurídico-administrativa entre particular e órgão do que na relação
entre particular e pessoa colectiva pública, pense-se no caso de se tratar de
uma pessoa colectiva complexa, existem neste caso expectativas do particular a
proteger.
O particular demanda o órgão porque foi
ele o autor do acto e justifica-se segundo a sua pretensão um arrolamento do
mesmo em juízo, não faz sentido colocar da outra parte do litígio uma pessoa
colectiva despojada de conhecimento fáctico do caso concreto. Pense-se no caso
de um acto da Câmara Municipal (art.56 e s da LAL), enquanto órgão executivo da
Pessoa Colectiva Município, o particular tem que demandar o Município segundo o
critério geral do actual contencioso administrativo, no entanto, de um ponto de
vista prático existe nas considerações do particular o intuito de demandar a
Câmara Municipal pois foi esta efectivamente que praticou o acto, seguindo um
princípio de tutela de expectativas do particular face à responsabilização do
autor do acto, é justificável que o particular demande o órgão.
A pessoa colectiva pública por vezes é
abstracta e aí sim existem dificuldades de ordem prática na sua identificação
não na identificação do órgão conforme é dito pelos adeptos do novo critério, reconhece
o legislador que é desculpável o erro subjacente à identificação. Assim
considera-se que o particular não tem que conhecer a pessoa colectiva pública, caímos
no erro de criar um critério que não é eficaz e de o reconhecer dando a
possibilidade de o particular demandar o órgão mesmo que saiba a que Pessoa
Colectiva Pública pertence, uma vez que o artigo 10/4 não exige um
preenchimento de requisitos face à essencialidade do erro. O erro na
identificação pode não ser um verdadeiro erro, pode ser uma actuação consciente
da parte activa, a boa fé não é um requisito para a actuação do mecanismo.
Existe um processo automático que não pressupõe qualquer juízo subjectivo face
à actuação da parte activa.
A realidade do contencioso administrativo
pode ter mudado e sofrido rupturas, podemos não ter um contencioso de cariz
anulatório, no entanto, mesmo assim perante um contencioso subjectivo se
demonstra adequado a demanda de um órgão.
2.Por uma boa administração
Os órgãos exprimem
a vontade da pessoa colectiva, são centros de imputação de poderes funcionais.
Segundo um critério de demanda do órgão, embora de cariz clássico e ligado ao
recurso de anulação, a sua ligação ao processo trás vantagens no que toca à
tutela da legalidade e na defesa do interesse público. Existe uma melhor prossecução
do interesse público na medida em que o órgão sabendo que vai ser demandado em
juízo directamente, vai actuar sempre com maior cautela. Com isto não se pense
que o órgão actua à margem da legalidade quando não é demandado, pelo contrário
existe assim um incentivo a uma maior exigência para a sua actuação
administrativa.
Segundo um juízo de responsabilização
directa do órgão, a sua actuação tende a ser mais cuidadosa, ainda para
reforçar a sua exigência pense-se que agora o recurso hierárquico nem sempre
ocorre, pode existir um mecanismo de garantia directa sem que se esgote as vias
administrativas extra-contenciosas.
Esta demanda leva a que exista uma melhor
administração, consagrando-se o art. 10º do CPA que exige desburocratização e
eficiência da actividade administrativa
3.Argumento legal
O artigo 78º do CPTA refere-se aos
requisitos da petição inicial, no numero 2 alínea e) é feita uma referencia à
indicação do órgão que praticou ou devia ter praticado o acto, assim como à
Pessoa colectiva publica ou o ministério quando em causa a pessoa colectiva
Estado. Acolhe-se aqui uma faculdade alternativa na demanda de entes públicos,
ou numa interpretação mais restritiva considera-se possível demandar o órgão
apenas nos casos de litígios interorganico.
Em suma, existe uma consideração implícita
de que o critério geral não é absoluto e o peso do órgão é reconhecido.
4.Excepções à nova regra
i.
Litígios inter-orgânicos
O art.10 nº6 do CPTA refere claramente
como excepção à regra geral, a consagração do antigo critério da LPTA que
confere legitimidade aos órgãos. Trata-se de uma valorização implícita, em caso
de ocorrer um litígio entre órgãos da mesma pessoa colectiva não faz sentido de
um ponto de vista prático e procedimental demandar a Pessoa Colectiva a que o
próprio órgão (na qualidade de autor) pertence, nem em última análise ter a
Pessoa Colectiva na qualidade de parte activa e passiva. O novo critério falha
e demonstra fragilidades de ordem prática, existe necessidade de recorrer ao
antigo pensamento anterior à reforma.
ii.
Pessoa colectiva Estado em especial
O Estado, é uma pessoa colectiva pública
de cariz complexo, a sua estrutura é regida por um grande número de órgãos e
serviços. Assim o CPTA opta no art. 10 nº2 segunda parte por eleger como parte
passiva os Ministérios quando em causa esteja uma acção que tenha como objecto
a acção ou omissão do Estado.
iii.
Princípio da desculpabilidade do erro na
identificação do autor do acto
O novo regime do contencioso veio
consagrar um mecanismo que visa a procedência da acção, o objectivo é a decisão
de mérito e como fim último tutelar o interesse do particular. Assistimos agora
à protecção do particular em caso de erro ao identificar o autor do acto administrativo,
o fenómeno de subjectivização é evidente.
Importa referir que não existem quaisquer requisitos a
preencher para se estar perante um erro na identificação do autor do acto desculpável
para efeitos de aplicação do art.10 nº4. Existe um mecanismo automático que
leva a procedência da causa, existindo efectivamente erro ou existindo uma
actuação consciente do particular.
O que ocorre é uma desformalização do
processo, o particular que indica de forma errada a parte passiva não vê a sua
pretensão indeferida, pelo contrário, existe uma ficção por parte do Tribunal
de que a acção foi proposta contra o verdadeiro titular dessa posição jurídica
passiva.
Assistimos a um processo que torna
legitimo o que é ilegítimo. Faça-se notar que o órgão indicado desde que
pertença à mesma pessoa colectiva intervém inicialmente como parte do processo,
é arrolado pelo particular mas não é parte “activa” no procedimento. Cabe à
pessoa colectiva intervir mesmo sem ser arrolada na petição inicial, surge um
fenómeno de participação por ficção, tendo em conta a relação que existe entre
o órgão e a respectiva pessoa colectiva.
O processo explicado pretende resolver o
problema sentido anteriormente na LPTA, muitas das vezes o particular via como
obstáculo à procedência da causa, a má identificação do autor do acto
recorrido. Numa linha subjectivista, colocamos o particular numa posição de
igualdade perante a administração pois pretendemos advogar um contencioso de
partes, contudo privilegiamos o particular ao encarar os seus actos com um
certo cuidado e tomando juízos de desculpabilidade face à sua ignorância no conhecimento
da realidade administrativa. O que surge aqui é um critério que colide com a
própria ratio de igualdade de partes, se queremos um contencioso administrativo
subjectivo encaramos o processo de igual para igual, não privilegiamos posições
por serem dotadas de debilidade ou fragilidade. Se o legislador considera um
erro desculpável, a má identificação do autor do acto, considera inadequado e
demasiado exigente o novo critério - legitimidade passiva da pessoa colectiva publica
em ultima análise, reconhece que é desculpável o particular não ter
conhecimento da pessoa colectiva a qual o órgão pertence.
Assim sendo, o que parece ser uma solução
prática e uma demonstração do mérito do critério e da verdadeira ruptura com o
passado, é acima de tudo uma demonstração de continuidade. Acolhe-se aqui,
ainda que implicitamente, o dito antigo critério que coloca o órgão como
detentor de legitimidade.
A Desculpabilidade do erro de identificação,
inicialmente é uma forma de tutelar o interesse do particular e evitar o indeferimento,
contudo não será em última análise uma forma de reconhecer que o órgão tem
legitimidade passiva pois não se vai citar a pessoa colectiva pública?
Assistimos a uma prevalência do princípio
da economia processual e a uma tutela do princípio da prevalência do mérito
sobre a forma, à semelhança do que ocorre no processo civil, contudo admite-se
que o órgão é dotado de legitimidade processual.
5. Entidades públicas sui
generis
Entidades independentes do art.10 nº3, cabem aqui
neste artigo os órgãos independentes do Estado, em que a acção deve ser
proposta contra o Estado visto que a entidade não tem personalidade jurídica.
Permite-se uma vez mais a demanda de um órgão apesar de não ter personalidade
jurídica, o mecanismo de protecção do número 4 permite que o processo prossiga
sem necessidade de demandar uma entidade com personalidade jurídica. Considera-se
que a entidade que verdadeiramente está
em condições de contradizer o pedido é o órgão independente do Estado, segundo
um princípio de desculpa patente no número 4 do mesmo artigo o juiz ficciona
que foi arrolada a pessoa colectiva. O caso dos órgãos independentes origina ao
fenómeno que leva a que exista uma contradição com a própria essência dos
mesmos, se por um lado não estão sujeitos a tutela do Estado, quando praticam
um acto que venha a ser impugnado em juízo o Estado representa-os,
retirando-lhe legitimidade processual.
Recorrendo ao
art.24 do ETAF, são abrangidas pela secção do contencioso administrativo e pela
competência do Supremo Tribunal Administrativo, litígios que respeitem a acções
ou omissões de entidades de cariz excepcional, designadamente o Presidente da
Republica, Primeiro-Ministro, Conselho de Ministros, Procurador geral da
Republica. Assim sendo estas entidades são dotadas de legitimidade passiva,
considerando uma excepção ao critério geral.
IV.Considerações
finais
A reforma do
contencioso parece ter consagrado uma mudança de paradigma no que se refere à
determinação da legitimidade passiva, contudo face ao exposto neste estudo
concluímos pela continuidade. Existe uma tentativa de contornar as dificuldades
do critério rígido de demanda do órgão para os casos de acções de impugnação, solucionar
os problemas dos inúmeros casos de improcedência de acções pela errada identificação
do autor do acto por parte do particular, aqui o art.10 nº4 resolve e leva a um
contencioso desformalizado e célere, em que prevalece o mérito face à forma.
O mecanismo patente no art. 10/4 do CPTA
vem também valorizar o órgão enquanto titular de poderes em juízo na qualidade
de parte passiva. O velho critério não desaparece e o facto de o legislador
considerar um erro irrelevante e desculpável e de concluir pela procedência do
processo, leva-nos a crer que o órgão tem relevância em juízo, em última
análise é o órgão o melhor conhecedor da situação em litígio, o órgão exprime a
vontade da Pessoa Colectiva Pública.
Seria incoerente seguir apenas um critério
geral para todas as acções contenciosas, no passado para as acções sobre
contratos e responsabilidade civil da administração o critério era a Pessoa
Colectiva, continua a fazer sentido demandar a pessoa colectiva nestes casos,
está subjacente um pressuposto patrimonial. Contudo para processos de
impugnação faz sentido a demanda do órgão para efeitos de conexão procedimental
da relação jurídico-administrativa existente, que é criada pelo próprio órgão.
Seguindo o entendimento do professor
regente da cadeira, consideramos que o critério para determinação não é uno,
existe um duplo critério ou um mecanismo de cariz aberto que permite atribuir
legitimidade quer à Pessoa Colectiva Pública quer ao órgão. Assistimos a uma
valorização do órgão e uma falsa valorização da pessoa colectiva pública,
devido a todas as fragilidades apresentadas saí no final reforçada a
“legitimidade” do órgão.
Bibliografia
·
Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito
Administrativo vol.I e vol.II
·
Vasco Pereira da Silva, Contencioso no divã da
psicanálise
·
Mário Aroso de Almeida, Manual de Contencioso
Administrativo
·
Mário Aroso de Almeida e Freitas do Amaral,
Grandes Linhas da Reforma
·
CPTA anotado Mário Esteves de Oliveira
Ana Filipa Urbano, aluna nº19469
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