segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Do Memorando de Entendimento da Troika à condenação à prática do acto administrativo legalmente devido (parte 1)


[1]Portugal mergulhado numa crise económica e financeira depara-se em Abril de 2011 com a inevitabilidade de solicitar assistência financeira junto do Conselho Europeu em colaboração com o Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional[2].
Na sequência deste pedido, os Ministros do Eurogrupo e do Conselho Ecofin decidiram iniciar a preparação do programa de ajustamento económico e financeiro a Portugal - através dos mecanismos europeus de estabilização financeira (criado pelo Regulamento (UE) n.º 407/2010 do Conselho, de 11 de Maio de 2010[3]), mais concretamente, o mecanismo europeu de estabilização financeira (european financial stabilisation mechanism (EFSM): o apoio financeiro da União Europeia), e a “facilidade” europeia de estabilização financeira (european financial stability facility (EFSF): o apoio financeiro da zona euro)[4], e dos mecanismos assistência financeira do Fundo Monetário Internacional –, tendo-se seguido um longo processo de negociações para definir as condições deste programa.
O programa de ajuda financeira externa implicaria “a celebração de dois contratos de empréstimo e o compromisso de adopção de um programa de ajustamento, consubstanciado em dois memorandos[5] de entendimento, com a duração de três anos, e constituído por um conjunto de medidas de política económica e financeira”[6].
Este documento que foi o requisito para o programa de ajuda financeira externa, específica quer em termos gerais quer detalhadamente, diversas medidas estruturais que incidem sobre os mais diversos âmbitos da política nacional, como a saúde, o funcionamento da justiça, a organização da administração pública, a legislação laboral, entre outros.

2- COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

Nesta exposição pretende-se dar resposta à seguinte questão: após a assinatura do Memorando de Entendimento da Troika[7] por parte do Estado Português, um particular poderá exigir judicialmente que o Estado Português – em especial o governo - adopte as medidas descritas no mesmo Memorando de Entendimento; ou seja se o Estado português através do governo decidisse não implementar uma ou mais medidas – em especial um acto administrativo - constante no Memorando de Entendimento, poderia um particular (cidadão português) exigir contenciosamente a adopção das medidas impostas no dito Memorando de Entendimento?
Será importante começar por realçar a questão da “vinculatividade”, ou seja, esta poderá ser abordada, neste caso, em dois sentidos. Em primeiro lugar, podemos questionar-nos acerca da natureza jurídica do Memorando de Entendimento: de que tipo de instrumento jurídico se trata? Da natureza jurídica poderemos retirar, nomeadamente, conclusões acerca da vinculação internacional do Estado português a este Memorando de Entendimento. Em segundo lugar, importa ainda saber qual o nível de imperatividade do conteúdo da regulamentação: será que as partes pretendiam obrigar-se ao cumprimento daquelas medidas?
Note-se que estas duas questões são distintas: o instrumento pode ter a capacidade de obrigar as partes – por estas serem competentes para se vincular, etc. – mas o conteúdo do acordo ser um mero gentleman’s agreement, que produz apenas efeitos políticos e não vincula juridicamente (pense-se, por exemplo, num tratado internacional correctamente ratificado em que as partes se limitam a declarar intenções).
E por último será necessário sabermos se um cidadão poderá demandar o Estado Português para que este seja condenado à prática de um acto administrativo que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado. Procuraremos, em seguida, dar resposta a estas três questões.

2.1. A natureza jurídica do Memorando de Entendimento da Troika

Como nota prévia, saliente-se o facto de o Governo ao decidir recorrer ao pedido de ajuda externa ter sido um acto discricionário[8] (neste caso de acção). No entanto, tendo-a solicitado, comprometeu-se a tomar certas medidas, que foram reduzidas a escrito no referido Memorando de Entendimento.
Deste modo, perceber a natureza deste instrumento é essencial para compreender qual o grau de vinculação do Estado português a essas medidas. É importante salientar que esta questão ainda não foi tratada nem na doutrina nem na jurisprudência[9], pelo que temos sérias dúvidas em relação à sua natureza jurídica. Afiguram-se-nos as seguintes hipóteses:
                              i.              Ter natureza de acto administrativo;
                            ii.              Ter natureza de acto jurídico da União Europeia;
                          iii.              Ter natureza de convenção internacional;
                          iv.              Ter natureza de recomendação.
Na medida em que o Memorando de Entendimento foi assinado pelo Governo, este poderia assumir a natureza de acto administrativo (i). Quanto à noção de acto administrativo, há que notar que esta não é consensual. Há, no entanto, um ponto que é unânime: o acto administrativo é unilateral. Deste modo, como explica Freitas do Amaral, “ficam de fora todos os actos bilaterais da Administração e, nomeadamente, todos os contratos por ela celebrados, sejam ou não contratos administrativos” [10]. Assim, o Memorando de Entendimento, por ser multilateral, não pode ser um acto administrativo. Não devemos, no entanto, excluir a sua relevância como forma de actividade administrativa, como veremos adiante.
Quanto à hipótese de o Memorando de Entendimento ser um acto jurídico da União Europeia (ii), nos termos do art. 288.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, é claro, que pelas suas características se pode afastar liminarmente a sua qualificação como regulamento[11] ou directiva[12], restando assim, analisar a sua qualificação como decisão ou recomendação. Deixaremos para o final a recomendação, visto que o que será dito, vale para qualquer tipo de acto com cariz recomendatório, seja ele comunitário ou internacional. Assim, quanto à decisão, Fausto de Quadros aproxima-a do acto administrativo definitivo, sendo “um acto individual e concreto” que “pode ter como destinatários os Estados-Membros[13]. Tem, no entanto, o mesmo problema que o acto administrativo, é um acto unilateral. Assim, o Memorando de Entendimento não pode ser uma decisão comunitária (embora para ser celebrado, tenham obviamente existido decisões comunitárias nesse sentido, como já referimos).
Sendo então um acto bilateral em que as outras partes são entidades internacionais, devemos procurar saber se terá natureza de convenção internacional (iii). Uma convenção internacional é, nas palavras de Jorge Miranda, “um acordo de vontades entre sujeitos de Direito Internacional constitutivo de direitos e deveres ou de outros efeitos nas relações entre eles”[14], podendo ser normativa ou não normativa. O Memorando de Entendimento é, sem dúvida, um acordo de vontades, constitui efeitos entre as partes, e é celebrado entre sujeitos de Direito Internacional. Assim, preenche o conceito de convenção internacional. Importa no entanto recordar que o Direito Constitucional português não aceita a figura dos acordos em forma ultra-simplificada, pelo que o Estado Português só fica internamente vinculado após a ratificação, art. 135.º, al. b) Constituição de República Portuguesa – no caso dos tratados – ou após a aprovação, art. 134.º, al. b) Constituição de República Portuguesa – no caso dos acordos sob a forma simplificada -, de acordo com o disposto no art. 8.º, n.º 2, Constituição de República Portuguesa[15].
Neste caso, o Conselho de Ministros português aprovou no dia 5 de Maio de 2011 a Resolução n.º 8/2011, pela qual o Governo delegava no Ministro de Estado e das Finanças a competência para, em representação da República Portuguesa, outorgar os instrumentos necessários à concretização do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro a Portugal[16], sendo que estes instrumentos foram, de facto, assinados no dia 17 de Maio. Esta Resolução refere ainda que o Conselho de Ministros considerou que, tendo sido finalizadas as negociações, já haveria condições para aprovar as duas propostas de memorandos e as duas propostas de contratos de financiamento atrás referidos (v. n.º 1, al. a) da Resolução).
As primeiras dúvidas de constitucionalidade surgem a propósito da aprovação exigida pela Constituição de República Portuguesa no art. 200.º, n.º 1, al. c) em Conselho de Ministros que parece não ter chegado a verificar-se. Como explicam Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, esta aprovação é “logicamente, posterior à assinatura”[17] pelo Governo (neste caso, pelo Ministro das Finanças, que seria o plenipotenciário - art. 7.º da Convenção de Viena) junto do Conselho Europeu, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional. Inerente ao que ficou exposto verifica-se também a ausência da assinatura pelo Presidente da República.
A não aprovação em Conselho de Ministros e a consequente falta de assinatura do Presidente da República têm sem dúvida, reflexos ao nível da vinculação do Estado Português a este Memorando de Entendimento. Recorde-se que, no plano interno, o art. 200.º, n.º 1, al. c) da Constituição de República Portuguesa, exige que o acordo tivesse sido aprovado em Conselho de Ministros, após a sua assinatura no dia 17, para que o Memorando de Entendimento vigorasse na ordem jurídica portuguesa - art. 8.º, n.º 2, da Constituição de República Portuguesa - sendo que essa aprovação e sua publicação – art. 119.º, n.º 1, al. b) da Constituição de República Portuguesa - não parece ter-se verificado[18].
Ainda neste ponto justifica-se verificar se estamos perante um caso do art. 46.º, n.º 1 e 2 da Convenção de Viena[19] [20]. Será que houve uma violação manifesta de uma disposição do direito interno e essa violação diz respeito a uma norma de importância fundamental?
O n.º 2 do art. 46.º da Convenção de Viena faz-nos pender no sentido de não se tratar de uma violação manifesta de uma disposição do direito interno, pois “Uma violação é manifesta se for objectivamente evidente para qualquer Estado que proceda, nesse domínio, de acordo com a prática habitual e de boa fé.”. Quanto à violação de uma norma de importância fundamental esta suscita mais dúvidas, face ao art. 161.º al. i) e n) da Constituição de República Portuguesa.
Em relação à alínea i) 1.ª parte do art. 161.º, parece não haver qualquer tipo de inconstitucionalidade pois quanto a Tratados só caberia na competência da Assembleia da República as matérias designadas no início do mesmo artigo[21], nenhuma versando o conteúdo do Memorando de Entendimento. Já à 2.ª parte da alínea i) do art. 161.º parece levantar mais dúvidas pois o Memorando de Entendimento versa directa ou indirectamente sobre matérias da competência reservada da Assembleia da República, o que suscita aqui mais um caso de constitucionalidade duvidosa.
Quanto à sua alínea n), parece-nos bastante forçado considerar o Memorando de Entendimento como um documento sobre matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia, sob a competência legislativa reservada da Assembleia da Republica, mas no entanto consideramos pertinente assinalar.
De facto, a doutrina administrativista tem considerado que, para além das formas de actuação formal – o acto, o regulamento e o contrato administrativo -, a Administração Pública pode desenvolver uma actividade à margem dos procedimentos e mecanismos previstos na lei, afastando-se da legalidade formal[22]. Marcelo Rebelo de Sousa dá como exemplos de actuações informais “declarações de intenções da administração quanto a comportamentos a adoptar por si no futuro”, “acordos de cavalheiros” ou “protocolos entre a administração e particulares quanto a condutas específicas futuras”, sendo que realça que estes não têm qualquer tipo de vinculatividade[23]. Distingue-os, assim, dos contratos administrativos intraprocedimentais, que são “acordos pelos quais a administração pública e os interessados fixam o objecto e conteúdo do acto administrativo que constituirá a decisão final de um determinado procedimento”[24], sendo, assim, contratos de promessa.
Por sua vez, Paulo Otero trata precisamente da temática do “enfraquecimento vinculativo da legalidade” [25], referindo-se a dois fenómenos: a diferenciação da intensidade vinculativa da legalidade (a chamada “soft law”) e a actividade informal da Administração. Afirma, assim, que “A actividade informal da Administração aparece como expressão de comportamentos administrativos dificilmente classificáveis dentro das diversas formas tradicionais de actuação administrativa”[26], como parece se aproximar este acordo com o Conselho Europeu, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Há, assim, uma vinculação da Administração à adopção de certos comportamentos, mas sem que lhe possa ser imposto o seu cumprimento, e sem que haja responsabilidade pelo incumprimento.
Neste caso, o Memorando de Entendimento foi negociado e assinado pelo Governo, sendo que segundo Paulo Otero, o art. 199.º, al. g), Constituição da República Portuguesa é uma norma genericamente habilitadora do exercício de uma actividade informal por parte do Governo, “permitindo-lhe, desde que isso se mostre necessário, a prática de todos os actos e de todas as providências indispensáveis à realização dos propósitos materiais e teleológicos definidos. Por isso mesmo, no domínio da promoção do desenvolvimento económico-social e da satisfação das necessidades colectivas, sem prejuízo do respeito pelos procedimentos e actos formais previstos na lei, o Governo poderá ainda, desde que se depare com espaços sem regulamentação jurídica específica, e em termos alternativos a emanar actos formais directamente fundados nesta mesma disposição constitucional, produzir uma actividade informal visando alcançar tais desideratos definidos pela Constituição”[27].
Tendo em conta que o art. 199.º, al. g), da Constituição da República Portuguesa é uma norma genericamente habilitadora do exercício da actividade administrativa do Governo, neste caso contrariamente, parece-nos verificar-se que a abertura da mesma, fica muito comprimida face ao princípio da separação de poderes, artigo 111.º da Constituição da República Portuguesa, e acrescente-se ainda que Paulo Otero ressalva esta actividade informal do Governo dizendo “…desde que se depare com espaços sem regulamentação jurídica específica, …”, o que face ao que se acaba de afirmar parece bastante duvidoso. Portanto parece-nos que na dúvida o governo não poderia através do art.º 199.º n.º1, al. g) tomar a decisão de recorrer – ou melhor vincular-se plenamente – à assistência financeira externa sem passar pela aprovação da Assembleia da República e consequentemente “crivo” do Presidente da República. No entanto, Jorge Miranda[28], Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros[29] explicam que nos termos do art. 12.º, 27.º e 46.º da Convenção de Viena, Portugal ficou vinculado ao acordo, no plano internacional, pela sua mera assinatura, visto que não ressalvou expressamente que só se vincularia a ele depois da sua aprovação pelo órgão nacional competente, não podendo agora invocar o incumprimento dessa formalidade, sem prejuízo do que foi dito atrás, a propósito do artigo 46.º n.º 1 da Convenção de Viena.
Concluindo, enquanto convenção internacional, isto é, acordo de vontades entre o Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, o Memorando de Entendimento vincula o Estado Português a nível internacional, embora não vigore na ordem interna[30].
Por fim, pelo que já foi dito, podemos afastar liminarmente a ideia segundo a qual o acordo poderia ser uma mera recomendação (iv) – definida por Paulo Otero como uma ”exortação ou um convite para os respectivos destinatários adoptarem certo comportamento, sem que isso signifique a existência de qualquer obrigação de resultado”[31] -, ou melhor, neste caso, uma lista de recomendações, feita pela Troika ao Governo português, para que o país conseguisse restabelecer uma situação económica e financeira que lhe permitisse restaurar a sua capacidade de se financiar nos mercados financeiros. Recorde-se que uma recomendação, no sentido do Direito da União Europeia, é, também, um acto que “encerra um convite aos seus destinatários para adopção de um dado comportamento”[32]. Na medida em que em todo o período de negociações, assim como no próprio Memorando de Entendimento, é inequívoca a intenção do Estado português se comprometer a algo, em troca de algo, e é também inequívoco que, sem essa vontade firme de comprometimento, a Comissão, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional não teriam aprovado este pacote de ajuda financeira. Neste sentido, é claro que não se tratam de meras recomendações feitas pela Troika ao Estado português, nem sequer de meras declarações de intenções feitas pelo Estado português à Troika. Há, no conteúdo do Memorando de Entendimento, um acordo de vontades, como já referimos.

Tomás Arantes e Oliveira Marques Maia


[1] Esta é a primeira de duas partes de um pequeno estudo realizado no âmbito da disciplina de Contencioso Administrativo e Tributário – sob a regência do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, no ano 2012-2013 – sobre a vinculatividade do decisor político português ao “Memorando de Entendimento da Troika” e em especial a susceptibilidade ou não, de este vir a ser condenado à pratica do acto legalmente devido.
[2] Seguimos de perto a descrição dos acontecimentos que levaram ao pedido de ajuda externa que se encontra no preâmbulo da Resolução n.º 8/2011, disponível online em http://dre.pt/pdf2sdip/2011/05/095000000/2116421164.pdf (consultado em 21.10.2012).
[3] O Regulamento (UE) n.º 407/2010 do Conselho, de 21 de Maio de 2010, cria um mecanismo europeu de estabilização financeira. O art. 3.º deste Regulamento define o procedimento a adoptar para se obter o apoio financeiro, sendo que este depende de uma decisão adoptada pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão (n.º 5). Este apoio financeiro pode assumir a forma de um empréstimo ou linha de crédito concedido aos Estados-Membros. Essa decisão de conceder o empréstimo ou a linha de crédito deve conter, nos termos dos n.ºs 3 e 4, para além de dados concretos como o montante e a duração, as condições gerais de política económica em que assenta o apoio financeiro da União, com o objectivo de restabelecer no Estado-Membro em causa uma situação económica ou financeira sã e restaurar a sua capacidade de se financiar nos mercados financeiros. De acordo com as alíneas b) dos n.ºs 3 e 4, estas condições são definidas pela Comissão, em processo de consulta com o BCE, sendo que, posteriormente, são negociadas com o Estado-Membro. Destas negociações deve resultar um Memorando de Entendimento do qual constam, de forma pormenorizada, essas condições gerais (n.º 5), e que a Comissão apresenta ao Parlamento Europeu e ao Conselho. Este último órgão, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão, decide introduzir quaisquer ajustamentos nas condições gerais iniciais de política económica e aprova o programa de ajustamento revisto elaborado pelo Estado-Membro beneficiário (n.º 7). Note-se que se, posteriormente, forem feitos ajustamentos às referidas condições, estas terão também de ser aprovadas pelo Conselho.
[4] Note-se que depois da crise financeira de 2008, que teve repercussões na economia a nível global, os Estados Membros da UE sofreram várias consequências desfavoráveis, entre as quais, a desestabilização dos mercados financeiros,  a desaceleração do crescimento económico, e a deterioração dos défices orçamentais e das posições da dívida dos Estados-Membros. Deste modo, sendo que as dificuldades financeiras vividas por um Estado-Membro são uma séria ameaça para a estabilidade económica da UE como um todo, começou a notar-se que o EFSF e o EFSM – instrumentos de auxílio financeiro não permanentes – talvez não fossem suficientes para manter uma permanente estabilidade na União Económica e Monetária. Neste sentido, revogou-se o art. 122º, n.º 2, do TFUE, sendo aditado um n.º 3 ao seu art. 136.º, substituindo-se os referidos EFSF e o EFSM pelo mecanismo europeu de estabilidade (european stability mechanism (ESM)) a entrar em vigor em 2013. Assim, cfr. as Conclusões do Conselho Europeu (16--17 de Dezembro de 2010), onde se pode ler, neste sentido, o seguinte preâmbulo: “Ao longo da crise, actuámos com determinação para preservar a estabilidade financeira e promover o regresso a um crescimento sustentável. Continuaremos a fazê-lo e a UE e a área do euro sairão da crise mais fortes. Os instrumentos de estabilidade temporários implementados no corrente ano provaram ser úteis, mas a crise demonstrou que não podemos abrandar a vigilância. Foi por isso que chegámos hoje a acordo sobre o texto de uma alteração limitada ao Tratado relativa à criação de um futuro mecanismo permanente para salvaguardar a estabilidade financeira de toda a área do euro. Essa alteração deverá entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2013. Reiterámos também o nosso empenhamento em chegar a acordo sobre as propostas legislativas relativas à governação económica até finais de Junho de 2011, com o objectivo de reforçar o pilar económico da União Económica e Monetária e em continuar a implementar a estratégia Europa 2020”.
[5] Neste trabalho vamos-nos debruçar sobre o que a comunicação social apelida de “Memorando de Entendimento da Troika”, que, como acabámos de constatar, são na verdade, dois memorandos. No entanto, visto terem praticamente o mesmo conteúdo, iremos nesta exposição considerá-los como um só.
[6] Neste sentido, mais uma vez, o preâmbulo da Resolução n.º 8/2011.
[7] Por uma questão de facilidade de exposição trataremos o “Memorando de Entendimento da Troika” apenas por Memorando de Entendimento.
[8] Assim, não poderá nunca ser submetido a um tribunal administrativo o controlo do mérito dessa decisão. Cfr. Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 8.ª reimpressão da 1.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 93.
[9] No entanto, começam a surgir os primeiros estudos acerca do conteúdo do Memorando de Entendimento. Assim, v. in Revista da Ordem dos Advogados - Ano 71 - Abril / Junho 2011 Baptista, Eduardo Correia, "Natureza Jurídica dos Memorandos com o FMI e com a União Europeia"; v. a secção “O Memorando da Troika em análise”, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, n.º 2, ano IV, Setembro de 2011, composto pelos seguintes estudos: Rodrigues, Nuno Cunha, “Apreciação geral”, pp. 15-18; Silva, Miguel Moura e, “Finanças Públicas e Concorrência e Regulação”, pp. 19-24; Cabral, Nazaré da Costa, “Administração Fiscal e Segurança Social; Administração Pública”, pp. 25-36; Ferreira, Rogério M. Fernandes, “Política Fiscal”, pp. 37-46; Santos, Luís Máximo dos, “Regulação e Supervisão do Sector Financeiro e Sistema Judicial”, pp. 47-58; Ferreira, João Pateira, “Sector Empresarial do Estado”, pp. 59-70.
[10] V. idem, ibidem, p. 214.
[11] “…tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros.”
[12] “…vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.”
[13] Cfr. Quadros, Fausto de, Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2009, p. 365.
[14] Cfr. Miranda, Jorge, Curso de Direito Internacional Público, 3.ª ed. revista e actualizada, Princípia, Estoril, 2006 p. 58. No mesmo sentido, v. Pereira, André Gonçalves; e Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3.ª ed., Almedina, 2007, p. 173, que as definem como “um acordo de vontades, em forma escrita, entre sujeitos de Direito Internacional, agindo nesta qualidade, de que resulta a produção de efeitos jurídicos”.
[15] Sendo certo que não houve ratificação, dedicar-nos-emos apenas a compreender se houve aprovação. Só se tiver havido aprovação é que importará, eventualmente, compreender se esta matéria poderia ser regulada por acordo, ou se estamos perante uma reserva de tratado. Caso contrário, de acordo com o art. 8.º, n.º 2, CRP essa questão torna-se irrelevante porque o Memorando não vigorará na ordem interna de qualquer das formas.
[16] Como já referimos, esta Resolução está disponível online em: http://dre.pt/pdf2sdip/2011/05/095000000/2116421164.pdf (consultado em 26.09.2011), sendo que consideramos ter utilidade transcrevê-la: “Nos termos do n.º 5 do artigo 186.º e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:
1 — Considerar que, terminada a negociação entre o Governo, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional e assegurada a participação das forças políticas no processo negocial, estão reunidas as condições para:
a) Aprovar o projecto de programa de ajustamento, constante do memorando de entendimento relativo às condicionalidades específicas de política económica (memorandum of understanding), negociado entre a Comissão Europeia, em colaboração com o Banco Central Europeu, e o Governo português, bem como do memorando de políticas económicas e financeiras (memorandum of economic and financial policies) negociado com o Fundo Monetário Internacional;
b) Aprovar o projecto de contrato de financiamento (loan facility agreement) a celebrar entre a União Europeia e a República Portuguesa no âmbito do FSM, o contrato de financiamento (loan facility agreement) a celebrar entre a EFSF e a República Portuguesa, bem como os instrumentos que formalizam a assistência financeira por parte do Fundo Monetário Internacional.
2 — Delegar no Ministro de Estado e das Finanças, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto -Lei n.º 321/2009, de 11 de Dezembro, a competência para, em nome do Governo e em representação da República Portuguesa, outorgar o programa de ajustamento e os contratos de financiamento, bem como quaisquer outros instrumentos necessários à concretização da assistência financeira a que se refere a presente resolução, após a sua aprovação pelo Conselho da União Europeia (Ecofin) a 17 de Maio de 2011.”.
[17] Cfr. Pereira, André Gonçalves; e Fausto de Quadros, Manual…, op. cit., p. 221.
[18] Dizemos “não parece ter-se verificado” e não “não se verificou” porque, após o Conselho de Ministros em que foi aprovada a Resolução referida na nota anterior, o Ministro das Finanças, em conferência de imprensa, anunciou que “O Conselho de Ministros aprovou o plano de ajuda externa” (v., por exemplo, a notícia no Diário de Notícias, de 05 de Maio de 2011, disponível online em: http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx?content_id=1844773&especial=
Portugal%20pede%20ajuda%20externa&seccao=ECONOMIA
(consultado em 9.12.2011)). No entanto, não há publicidade (nem oficial – Diário da República – nem não oficial) de ter sido de facto aprovado o plano de ajuda externa, mas sim apenas a já transcrita Resolução que diz que estão reunidas as condições para aprovar o programa de ajustamento. Essa aprovação é que nunca se verificou, embora a afirmação do Ministro à comunicação social suscite muitas dúvidas.
[19]Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados”, de 23 de Maio de 1969. Texto oficial português constante da Resolução n.º 67/2003, de 7 de Agosto, que o aprova para ratificação. E que para uma maior facilidade de exposição designá-la-emos apenas por Convenção de Viena.
[20] E que de acordo com o seu art. 3.º, al. c): “O facto de a presente Convenção não se aplicar aos acordos internacionais concluídos entre Estados e outros sujeitos de direito internacional (…), não prejudica: A aplicação da Convenção às relações entre Estados regidas por acordos internacionais nos quais sejam igualmente partes outros sujeitos de direito internacional.”
[21] “…designadamente os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares, …”
[22] V. idem, ibidem, p. 185.
[23] Cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, Lisboa, 2007, p. 403.
[24] Cfr. idem, ibidem, p. 403.
[25] V. Otero, Paulo, Legalidade…, op. cit., pp. 908 ss.
[26] Cfr. idem, ibidem, p. 184.
[27] Cfr. idem, ibidem, p. 918.
[28] V. Miranda, Jorge, Curso…, op. cit., pp. 95 e 96, quando refere que “a nível internacional, parece que Portugal não poderá invocar a falta de aprovação (…), se não tiver ressalvado expressamente no acto da assinatura que só ficará vinculado pelo acordo depois da aprovação”.
[29] V. Pereira, André Gonçalves; e Fausto de Quadros, Manual…, op. cit., p. 221. Estes autores explicam que “uma especificidade do sistema constitucional português vigente reside no facto de os acordos (…) não vincularem o Estado Português com a sua aprovação, logicamente posterior à assinatura. (…) Trata-se, sem dúvida, de um desvio à pureza dos princípios que, como vimos, estabelecem que os acordos sob a forma simplificada obrigam com a sua mera assinatura, É certo que nada impede que a Constituição portuguesa imponha, após a assinatura, a aprovação do acordo (…). Mas, em face do art. 12.º, n.º 1, CV, caso Portugal não ressalve expressamente no acordo que só se vinculará a ele depois da sua aprovação pelo órgão nacional competente, ficará vinculado ao acordo no plano internacional pela sua assinatura, não obstante o acordo só passe a vigorar na ordem interna após a sua aprovação. (…) É isto assim porque o artigo 27.º CV, que já estudámos, dispõe que nenhum Estado pode invocar as disposições do seu Direito interno para se eximir ao cumprimento do tratado ao qual livremente se vinculou na cena internacional”. Note-se que, neste caso, não se verificam os pressupostos de aplicação do regime das ratificações imperfeitas, previsto no art. 46.º da Convenção de Viena, por a violação não ser manifesta, quanto a dizer respeito a uma norma fundamental do Direito português, maiores dúvidas nos surgem.
[30] Note-se, no entanto, que não se insere, propriamente, nos conteúdos tradicionais das convenções internacionais.
[31] Cfr. Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – o Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, reimpressão da 1.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 910.
[32] Cfr. Quadros, Fausto de, Direito…, op. cit., p. 367.

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