domingo, 25 de novembro de 2012

O Direito Administrativo Sancionador

"Jus Punendi"


   “O jus punendi  tem a sua expressão clássica no direito penal . A Sanção penal, mormente a pena privativa da liberdade ditada pelos tribunais ainda é hoje o símbolo do poderio estatal. No entanto, desde que o Estado Ocidental perdeu o seu carácter absenteísta e foi chamado a desempenhar um maior numero de funções, estendendo a sua actuação a áreas que antes lhe eram interditas , o jus punendi   tornou-se mais complexo , não se resumindo ao direito penal , nem se restringindo a ser efectivado pelo poder judiciário, visto que a Administração começou a tomar maior parte no seu exercício”. 1

   A crise económica do pós- guerra, e a influência do pensamento keynesiano fizeram aumentar a actividade administrativa do estado que expandiu a sua intervenção para sectores como a promoção de qualidade de vida e bem estar, efectivação de direitos económicos sociais e culturais protecção do património meio ambiente e natureza, preservação de recursos naturais, ensino , território , tudo considerado tarefas fundamentais do Estado Social  e como tal consagradas na Constituição  ( Artº 9 CRP) . Este aumento da actividade administrativa, provocou significativo aumento da produção legislativa especial nas áreas de intervenção social do estado e consequentemente o aumento das condutas ilícitas, mostrando-se o sistema sancionador penal insuficiente para fazer face á proliferação das condutas consideradas ilícitas, operou a devolução à Administração do poder sancionador.

   De acordo com Marcelo Prates 2: “Note-se que não se pode falar aí no ingresso da Administração no poder punitivo estatal, mas sim no seu retorno, pois, se a passagem, no século XIX, do Estado Absoluto para o Estado liberal significou, em muitos casos, a progressiva abolição do então habitual poder sancionador detido pela Administração, mediante a introdução da rígida divisão de poderes e a consequente “jurisdicionalização”da repressão estatal , a transição do Estado liberal para o Estado social , no Século XX,   momento que aqui pretendemos focalizar, veio operar exactamente em sentido oposto , com a devolução de parte do poder punitivo estatal para as autoridades administrativas”. 2

   Com o aumento da despesa publica a nível interno, a lentidão e ineficácia da estrutura administrativa demasiado pesada e burocrática, associadas às políticas económicas e monetárias da União Europeia no intuito de evitar deficits excessivos e aumentar a competitividade internacional, começam a partir da década de setenta a transformar-se as funções do Estado que passa de Estado  Social prestador directo de bens e serviços a Estado Regulador cujas funções passam a ser as de controlar, fiscalizar e regular os particulares que assumem a execução das tarefas públicas,  que o Estado  comprometido com os cidadãos e com a própria Constituição tem que assegurar.

   “ À tradicional actividade imperativa soma-se a actividade consensual, isto, passando a Administração a desenvolver as suas actividades antes pela via da coordenação, seja com outros entes públicos , (cooperação) , seja com os particulares(colaboração) , do que por aquela da subordinação . Mesmo porque em diversos sectores das actuação administrativa  como os relativos a prestações ou a serviços públicos, p.ex., existe substancial coincidência entre os interesses da Administração e os interesses  dos cidadãos…” 3  

   A Sanção Administrativa é fundamental a esta nova função Reguladora do Estado . “Se se aceita a regulação publica, há que aceitar a sanção pelo seu descumprimento”  Nieto Garcia citado na obra”cita”  de Marcelo Prates.

   “Regulação, fiscalização e punição fazem parte de uma cadeia de elos sucessivos, indissociáveis, dentro das quais o aumento do primeiro elo, a regulação, implica o robustecimento dos elos seguintes” 4.

   O Código Penal Português de 1982, de influência alemã, incorpora a descriminalização do direito penal, a qual é indissociável do desenvolvimento do Direito Administrativo Sancionatório, provocando uma redistribuição de ilícitos entre a esfera criminal e a esfera administrativa. O incremento dos diplomas legislativos pôs em causa a eficácia das normas e a eficácia da punição pelo não acatamento das respectivas regras. A descriminalização acima caracterizou-se quer pela passagem para o poder administrativo de condutas puníveis, consideradas de menor importância, quer por uma reclassificação  de outras condutas que fruto da globalização, foram adquirindo maior relevância social, nomeadamente as relativas à protecção do meio ambiente ou economia.

   A descriminalização do direito penal pretendeu reduzir o número de processos nos tribunais sobrecarregados, distinguir a tutela de bens considerados primários, de outros com menor valor ético, consagrando a sanção penal como o ultimo recurso de punição, munindo a administração publica de poderes para conseguir realizar os seus objectivos. Esta descriminalização, não pretendeu deixar certos interesses, mesmo menores, sem protecção, antes delegou a sua defesa na Administração.

   O crescimento da actividade sancionadora da Administração implicou o crescimento de Administrações Publicas e a criação de novas entidades nomeadamente as reguladoras às quais lhes são atribuídas cada vez mais um maior volume de funções e trabalho.

   Inexistem suportes estatísticos que permitam ainda avaliar o resultado prático de tais medidas.
Quanto ao objectivo de aliviar os tribunais, este principalmente nos tribunais comuns poderá ficar eventualmente comprometido, atendendo à possibilidade de recurso judicial das decisões administrativas.

A divisão de poderes

   A coexistência do ius punendi estadual, de carácter administrativo, com o poder judicial a quem, nos termos da Constituição cabe a aplicação da justiça não é pacifico porque parece fazer perigar o principio da separação de poderes, principalmente quando a Administração exerce os seus poderes representando interesses de ordem geral e não em autotutela .

   O principio da separação de poderes é em si um principio informador do Estado de Direito e constitui uma conquista da Revolução Liberal, na medida em que a Administração passou a prosseguir essencialmente uma função preventiva, enquanto o poder judicial detinha o monopólio do poder repressivo estatal.

   Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social a Administração voltou, de acordo com Marcelo Partes a deter o poder sancionatório, face ao crescente número de infracções resultado do intervencionismo estatal nas diversas áreas da vida social e aos movimentos descriminalizadores de certas infracções de menor repercussão ética.

   Em Portugal foi através do Decreto Lei nº 232/79 de 24 de Julho que foi instituído o ilícito de mera ordenação social. Segundo o legislador de 1979, a criação de um ordenamento sancionatório novo e distinto do Direito Penal teve como objectivo libertar o Direito Penal do “ numero inflacionário e incontrolável de infracções destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do Direito Penal “munindo os órgãos legislativos e executivos de “uma gama diferenciada de sanções ajustada à natureza e gravidade dos ilícitos a reprimir ou prevenir e aproximando a ordem jurídica Portuguesa do “direito contemporâneo vigente noutros Estados. No entanto há que ter em conta que formalmente o processo penal oferece maiores garantias aos cidadãos que o processo sancionador administrativo.

   Nas palavras de Marcelo Caetano, 5“ no caso de repressão administrativa é exercido um poder punitivo particular fundado na necessidade da defesa da coesão e eficiência de certo grupo existente na comunidade politica; no caso da repressão criminal é exercido o poder punitivo geral contido na soberania do Estado para defesa de interesses essenciais da própria comunidade politica e dos seus membros na medida em que o respeito de certos interesses individuais seja condição de subsistência e harmonia da vida social .

   Há quem como por exemplo Miguel Pedrosa Machado 6 se questione sobre se as contra-ordenações não constituirão um atentado ao principio da jurisdicionalidade  e ao principio  da separação de poderes, considerando necessário  “ saber se  o facto de se infringir o principio da jurisdicionalidade em relação às  infracções que , por muito que o seu nomen juris  seja modificado, não deixam de ser materialmente penais , é ou não conforme à Constituição “, considerando a referência expressa da Constituição à existência de “ um direito de mera ordenação social”. Sobre tal questão pronunciou-se o Tribunal Constitucional 7,  a propósito dos artigos nºs 33º e 34º nº 1 do RGCO, considerando-os constitucionais , desde que esteja assegurada a possibilidade de impugnação judicial prevista no artigo 59º do referido diploma:

 “ Garantido com efectividade e permanência o direito de impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas, aplicadoras de uma coima, há-de concluir-se no sentido de as normas agora sob análise não atentarem por qualquer forma contra o princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais consagrada no Artº 205 da Constituição.

   E do mesmo modo, tais normas, também não afectam o disposto no artigo 211º do texto constitucional, uma vez que aquelas autoridades administrativas não dispõem, em caso algum, de uma competência criminal especializada, limitando-se a efectuar o processamento das contra-ordenações por fora a tornar-se possível a imposição das respectivas coimas que, como já se viu detêm natureza distinta dos ilícitos criminais. “
O que é essencial é que a possibilidade de os administrados, impugnarem judicialmente  as decisões da administração se mantenha salvaguardada .

   A própria doutrina critica do sistema instituído pelo Decreto lei nº 433/82, nomeadamente o Prof Cavaleiro Ferreira apontou restrições ao principio da jurisdicionalidade , mas reconhece que a sanção administrava punitiva de ilícitos de mera ordenação social ( contra-ordenações ), são no momento que corre, tidas por instrumentos adequados à resposta a dar pelo aparelho punitivo do Estado à celeridade da vida económica e social e à hipertrofia da justiça formal”8 .

   Segundo PALIERO, o Direito Sancionador Administrativo constitui, assim um elemento de controlo  social “alternativo”ao Direito Penal e destinado a complementar a tutela dos bens jurídicos mediante a repressão dos ilícitos de menor relevância social . Esta função de colaborar com a justiça na prevenção e punição dos ilícitos menores justifica o estabelecimento e manutenção do poder sancionatório da Administração.9


  
1-        Sanção Administrativa Geral Anatomia e Autonomia – Marcelo Madureira Prates Almedina 2005 pags 25 e 26
2-        Marcelo Madureira Prates obra citada pág.26
3-        Marcelo Madureira Prates obra citada pág. 43
4-        Marcelo Madureira Prates, ora citada pág .47
5-        Marcelo Caetano Princípios Fundamentais do Direito Administrativo Ed 1881 Almedina pág 37
6-        Elementos para o estudo da legislação portuguesa sobre contra-ordenações , in Sciencia juridica , 1986,págs. 71, 108 e 114
7-        Acórdão do Tribunal Constitucional nº158/92 de 23/04/92publicaddo no DR,II Serie, de 02/09/92
8-        “Anteprojecto de Revisão do Dec -Lei nº 433/82 de 27 de Outubro in Separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2,1992, pág. .297
9-         Blanca Lozano, Panorâmina Geral de la Potestad Sancionadora de la Admnistration em Europa, pag 413

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      Por Mariana Roque, Nº 18282

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