“O jus punendi tem a sua
expressão clássica no direito penal . A Sanção penal, mormente a pena privativa
da liberdade ditada pelos tribunais ainda é hoje o símbolo do poderio estatal.
No entanto, desde que o Estado Ocidental perdeu o seu carácter absenteísta e
foi chamado a desempenhar um maior numero de funções, estendendo a sua actuação
a áreas que antes lhe eram interditas , o
jus punendi tornou-se mais complexo
, não se resumindo ao direito penal , nem se restringindo a ser efectivado pelo
poder judiciário, visto que a Administração começou a tomar maior parte no seu
exercício”. 1
A crise económica do pós- guerra,
e a influência do pensamento keynesiano fizeram aumentar a actividade administrativa
do estado que expandiu a sua intervenção para sectores como a promoção de
qualidade de vida e bem estar, efectivação de direitos económicos sociais e
culturais protecção do património meio ambiente e natureza, preservação de
recursos naturais, ensino , território , tudo considerado tarefas fundamentais
do Estado Social e como tal consagradas na Constituição ( Artº 9 CRP) . Este aumento da actividade
administrativa, provocou significativo aumento da produção legislativa especial
nas áreas de intervenção social do estado e consequentemente o aumento das
condutas ilícitas, mostrando-se o sistema sancionador penal insuficiente para
fazer face á proliferação das condutas consideradas ilícitas, operou a
devolução à Administração do poder sancionador.
De acordo com Marcelo Prates 2: “Note-se que não se pode falar aí no ingresso da
Administração no poder punitivo estatal, mas sim no seu retorno, pois, se a
passagem, no século XIX, do Estado Absoluto para o Estado liberal significou,
em muitos casos, a progressiva abolição do então habitual poder sancionador
detido pela Administração, mediante a introdução da rígida divisão de poderes e
a consequente “jurisdicionalização”da repressão estatal , a transição do Estado
liberal para o Estado social , no Século XX,
momento que aqui pretendemos focalizar, veio operar exactamente em
sentido oposto , com a devolução de parte do poder punitivo estatal para as
autoridades administrativas”. 2
Com o aumento da despesa publica
a nível interno, a lentidão e ineficácia da estrutura administrativa demasiado
pesada e burocrática, associadas às políticas económicas e monetárias da União
Europeia no intuito de evitar deficits excessivos e aumentar a competitividade
internacional, começam a partir da década de setenta a transformar-se as
funções do Estado que passa de Estado
Social prestador directo de bens e serviços a Estado Regulador cujas
funções passam a ser as de controlar, fiscalizar e regular os particulares que
assumem a execução das tarefas públicas,
que o Estado comprometido com os
cidadãos e com a própria Constituição tem que assegurar.
“ À tradicional actividade
imperativa soma-se a actividade consensual,
isto, passando a Administração a desenvolver as suas actividades antes pela via
da coordenação, seja com outros entes
públicos , (cooperação) , seja com os
particulares(colaboração) , do que
por aquela da subordinação . Mesmo
porque em diversos sectores das actuação administrativa como os relativos a prestações ou a serviços
públicos, p.ex., existe substancial coincidência entre os interesses da
Administração e os interesses dos
cidadãos…” 3
A Sanção Administrativa é
fundamental a esta nova função Reguladora do Estado . “Se se aceita a regulação publica, há que aceitar a sanção pelo seu
descumprimento” Nieto Garcia citado na
obra”cita” de Marcelo Prates.
“Regulação, fiscalização e
punição fazem parte de uma cadeia de elos sucessivos, indissociáveis, dentro
das quais o aumento do primeiro elo, a regulação, implica o robustecimento dos
elos seguintes” 4.
O Código Penal Português de 1982,
de influência alemã, incorpora a descriminalização do direito penal, a qual é
indissociável do desenvolvimento do Direito Administrativo Sancionatório,
provocando uma redistribuição de ilícitos entre a esfera criminal e a esfera administrativa.
O incremento dos diplomas legislativos pôs em causa a eficácia das normas e a
eficácia da punição pelo não acatamento das respectivas regras. A
descriminalização acima caracterizou-se quer pela passagem para o poder
administrativo de condutas puníveis, consideradas de menor importância, quer
por uma reclassificação de outras
condutas que fruto da globalização, foram adquirindo maior relevância social,
nomeadamente as relativas à protecção do meio ambiente ou economia.
A descriminalização do direito
penal pretendeu reduzir o número de processos nos tribunais sobrecarregados,
distinguir a tutela de bens considerados primários, de outros com menor valor
ético, consagrando a sanção penal como o ultimo recurso de punição, munindo a
administração publica de poderes para conseguir realizar os seus objectivos.
Esta descriminalização, não pretendeu deixar certos interesses, mesmo menores,
sem protecção, antes delegou a sua defesa na Administração.
O crescimento da actividade
sancionadora da Administração implicou o crescimento de Administrações Publicas
e a criação de novas entidades nomeadamente as reguladoras às quais lhes são atribuídas cada vez mais um maior
volume de funções e trabalho.
Inexistem suportes estatísticos
que permitam ainda avaliar o resultado prático de tais medidas.
Quanto ao objectivo de aliviar os
tribunais, este principalmente nos tribunais comuns poderá ficar eventualmente
comprometido, atendendo à possibilidade de recurso judicial das decisões
administrativas.
A divisão de poderes
A coexistência do ius punendi estadual, de carácter
administrativo, com o poder judicial a quem, nos termos da Constituição cabe a
aplicação da justiça não é pacifico porque parece fazer perigar o principio da
separação de poderes, principalmente quando a Administração exerce os seus
poderes representando interesses de ordem geral e não em autotutela .
O principio da separação de
poderes é em si um principio informador do Estado de Direito e constitui uma
conquista da Revolução Liberal, na medida em que a Administração passou a
prosseguir essencialmente uma função preventiva, enquanto o poder judicial
detinha o monopólio do poder repressivo estatal.
Com a passagem do Estado Liberal
para o Estado Social a Administração voltou, de acordo com Marcelo Partes a
deter o poder sancionatório, face ao crescente número de infracções resultado
do intervencionismo estatal nas diversas áreas da vida social e aos movimentos
descriminalizadores de certas infracções de menor repercussão ética.
Em Portugal foi através do
Decreto Lei nº 232/79 de 24 de Julho que foi instituído o ilícito de mera
ordenação social. Segundo o legislador de 1979, a criação de um ordenamento
sancionatório novo e distinto do Direito Penal teve como objectivo libertar o
Direito Penal do “ numero inflacionário e incontrolável de infracções
destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração,
cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do
Direito Penal “munindo os órgãos legislativos e executivos de “uma gama
diferenciada de sanções ajustada à natureza e gravidade dos ilícitos a reprimir
ou prevenir e aproximando a ordem jurídica Portuguesa do “direito contemporâneo
vigente noutros Estados. No entanto há que ter em conta que formalmente o
processo penal oferece maiores garantias aos cidadãos que o processo
sancionador administrativo.
Nas palavras de Marcelo Caetano, 5“ no caso de repressão
administrativa é exercido um poder punitivo particular fundado na necessidade
da defesa da coesão e eficiência de certo grupo existente na comunidade politica;
no caso da repressão criminal é exercido o poder punitivo geral contido na
soberania do Estado para defesa de interesses essenciais da própria comunidade
politica e dos seus membros na medida em que o respeito de certos interesses
individuais seja condição de subsistência e harmonia da vida social .
Há quem como por exemplo Miguel
Pedrosa Machado 6 se
questione sobre se as contra-ordenações não constituirão um atentado ao
principio da jurisdicionalidade e ao principio da separação de poderes, considerando
necessário “ saber se o facto de se infringir o principio da
jurisdicionalidade em relação às
infracções que , por muito que o seu nomen
juris seja modificado, não deixam de
ser materialmente penais , é ou não conforme à Constituição “, considerando a
referência expressa da Constituição à existência de “ um direito de mera
ordenação social”. Sobre tal questão pronunciou-se o Tribunal Constitucional 7, a propósito dos artigos nºs 33º e 34º nº 1 do
RGCO, considerando-os constitucionais , desde que esteja assegurada a
possibilidade de impugnação judicial prevista no artigo 59º do referido
diploma:
“ Garantido com efectividade e permanência o
direito de impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas,
aplicadoras de uma coima, há-de concluir-se no sentido de as normas agora sob
análise não atentarem por qualquer forma contra o princípio da reserva da
função jurisdicional aos tribunais consagrada no Artº 205 da Constituição.
E do mesmo modo, tais normas,
também não afectam o disposto no artigo 211º do texto constitucional, uma vez
que aquelas autoridades administrativas não dispõem, em caso algum, de uma
competência criminal especializada, limitando-se a efectuar o processamento das
contra-ordenações por fora a tornar-se possível a imposição das respectivas
coimas que, como já se viu detêm natureza distinta dos ilícitos criminais. “
O que é essencial é que a
possibilidade de os administrados, impugnarem judicialmente as decisões da administração se mantenha
salvaguardada .
A própria doutrina critica do
sistema instituído pelo Decreto lei nº 433/82, nomeadamente o Prof Cavaleiro
Ferreira apontou restrições ao principio da jurisdicionalidade , mas reconhece
que a sanção administrava punitiva de ilícitos de mera ordenação social (
contra-ordenações ), são no momento que corre, tidas por instrumentos adequados
à resposta a dar pelo aparelho punitivo do Estado à celeridade da vida
económica e social e à hipertrofia da justiça formal”8 .
Segundo PALIERO, o Direito
Sancionador Administrativo constitui, assim um elemento de controlo social “alternativo”ao Direito Penal e
destinado a complementar a tutela dos bens jurídicos mediante a repressão dos
ilícitos de menor relevância social . Esta função de colaborar com a justiça na
prevenção e punição dos ilícitos menores justifica o estabelecimento e
manutenção do poder sancionatório da Administração.9
1-
Sanção Administrativa Geral Anatomia e
Autonomia – Marcelo Madureira Prates Almedina 2005 pags 25 e 26
2-
Marcelo Madureira Prates obra citada
pág.26
3-
Marcelo Madureira Prates obra citada
pág. 43
4-
Marcelo Madureira Prates, ora citada
pág .47
5-
Marcelo Caetano Princípios
Fundamentais do Direito Administrativo Ed 1881 Almedina pág 37
6-
Elementos para o estudo da legislação
portuguesa sobre contra-ordenações , in Sciencia juridica , 1986,págs. 71, 108
e 114
7-
Acórdão do Tribunal Constitucional
nº158/92 de 23/04/92publicaddo no DR,II Serie, de 02/09/92
8-
“Anteprojecto de Revisão do Dec -Lei
nº 433/82 de 27 de Outubro in Separata da Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, 2,1992, pág. .297
9-
Blanca Lozano, Panorâmina Geral de la Potestad
Sancionadora de la Admnistration em Europa, pag 413
-
Por Mariana Roque, Nº 18282
P
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