No presente texto pretende-se elaborar uma sumária
exposição da situação anterior à Reforma de 2002, relativamente ao papel do
Supremo Tribunal Administrativo enquanto tribunal de primeira instância,
principalmente no que diz respeito à inclusão dos actos dos Ministros no elenco
de actos cuja apreciação em primeiro grau competia ao STA.
Antes de mais, para efeitos sistemáticos, torna-se necessário
fazer um enquadramento geral da matéria. Assim, no que diz respeito aos
pressupostos do processo administrativo relativos ao tribunal, é de referir a
competência em razão da hierarquia.
De acordo com o artigo 8.º do ETAF, os tribunais
administrativos e fiscais estão organizados em três ordens de tribunais:
tribunais de primeira instância, Tribunais Centrais Administrativos (tribunais
de segunda instância) e o Supremo Tribunal Administrativo. O ETAF regula as
competências destes tribunais, nos artigos 24.º e 25.º, para o STA, 37.º, para
os Tribunais Centrais Administrativos e 44.º, para os tribunais administrativos
de primeira instância.
Actualmente, o ETAF atribui aos tribunais administrativos
de primeira instância competência para conhecer, em primeiro grau de
jurisdição, da generalidade dos processos. Assim dispõe o artigo 44.º “compete
aos tribunais administrativos de círculo conhecer, em 1.ª instância, de todos
os processos do âmbito da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja
competência, em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais
superiores e da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados”.
No entanto, como se depreende da leitura do artigo, nalguns casos atribui-se
competência para os tribunais superiores conhecerem, em primeiro grau de
jurisdição, de alguns processos. Assim, verifica-se que o STA tem competência,
em primeira instância, no que diz respeito a acções e omissões praticadas por certos
tipos de órgãos de topo do Estado[1].
Artigo 24.º
Competência
da Secção de Contencioso Administrativo
1 - Compete
à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo
Tribunal
Administrativo conhecer:
a)
Dos processos em matéria administrativa relativos a
acções ou omissões das seguintes entidades:
i) Presidente da República;
ii) Assembleia da República e seu Presidente;
iii) Conselho de Ministros;
iv) Primeiro-Ministro;
v) Tribunal Constitucional e seu Presidente, Presidente
do Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de Contas e seu Presidente e
Presidente do Supremo Tribunal Militar;
vi) Conselho Superior de Defesa Nacional;
vii) Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais e seu presidente;
viii) Procurador-Geral da República;
ix) Conselho Superior do Ministério Público;
b)
Dos processos relativos a eleições previstas nesta lei;
c)
Dos pedidos de adopção de providências cautelares
relativos a processos da sua competência;
d)
Dos pedidos relativos à execução das suas decisões;
e)
Dos pedidos cumulados nos processos referidos na alínea
a);
f)
Das acções de regresso, fundadas em responsabilidade por
danos resultantes do exercício das suas funções, propostas contra juízes do
Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais centrais administrativos e
magistrados do Ministério Público que exerçam funções junto destes tribunais,
ou equiparados;
g)
Dos recursos dos acórdãos que aos tribunais centrais
administrativos caiba proferir em primeiro grau de jurisdição;
h)
Dos conflitos de competência entre tribunais
administrativos;
i)
De outros processos cuja apreciação lhe seja deferida por
lei.
2 - Compete
ainda à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
conhecer dos recursos de revista sobre matéria de direito interpostos de acórdãos
da Secção de Contencioso Administrativo dos tribunais centrais administrativos
e de decisões dos tribunais administrativos de círculo, segundo o disposto na
lei de processo.
Antes da Reforma do Contencioso
Administrativo de 2002 (em vigor desde 2004), incluíam-se os actos dos
Ministros entre as acções e omissões relativamente aos quais o STA possuía uma competência
em primeira instância. Tinha-se de se impugnar para o STA (sistema de pirâmide
invertida).
Artigo 26.º do ETAF de 1984
(Competência
da Secção pelas subsecções)
1 – Compete à Secção de Contencioso Administrativo,
pelas suas subsecções, conhecer:
a)
Dos recursos de acórdãos da Secção de Contencioso
Administrativo do Tribunal Central Administrativo proferidos em 1.º grau de jurisdição;
b)
Dos recursos de decisões dos tribunais
administrativos de círculo para cujo conhecimento não seja competente o
Tribunal Central Administrativo;
c)
Dos recursos de actos administrativos ou em matéria
administrativa praticados pelo Presidente da República, pela Assembleia da
República e seu Presidente, pelo Governo, seus membros, Ministros da República e Provedor de Justiça, todos com excepção
dos relativos ao funcionalismo público, pelos Presidentes do Tribunal
Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal de Contas, pelo
Conselho Superior de Defesa Nacional, pelo Conselho Superior dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e seu Presidente, pelo Procurador-Geral da República,
pelo Conselho Superior do Ministério Público e pela comissão de eleições
prevista na Lei Orgânica do Ministério Público;
d)
Dos processos de contencioso relativo a eleições
previstas no presente diploma;
e)
Dos conflitos de competência entre tribunais
administrativos de círculo e a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal
Central Administrativo;
f)
Dos conflitos de jurisdição entre a Secção de
Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo e autoridades
administrativas;
g)
Dos pedidos de suspensão da eficácia dos actos a
que se refere a alínea c);
h)
Dos pedidos relativos à execução dos julgados;
i)
Dos pedidos de produção antecipada de prova
formulados em processo nela pendente;
j)
Das matérias que lhe forem confiadas por lei.
2 – O disposto no número anterior não abrange as
matérias respeitantes ao contencioso fiscal.
Era necessário recorrer ao
recurso hierárquico necessário, o que significava recorrer para o para o
ministro e só depois para o contencioso administrativo (só a decisão proferida
pelo topo da hierarquia é que se podia impugnar judicialmente).
Quanto ao recurso hierárquico,
há-que distinguir actos administrativos verticalmente definitivos (aqueles que
são praticados por autoridades de cujos os actos se pode recorrer directamente
para o Tribunal Administrativo) e actos que não são verticalmente definitivos
(aqueles que são praticados por autoridades de cujos actos se não pode recorrer
directamente para os Tribunais). O recurso hierárquico necessário é aquele que
é indispensável utilizar para se obter um acto verticalmente definitivo do qual
se possa recorrer contenciosamente.
De referir que, já antes da
Reforma, o Prof. Vasco Pereira da Silva defendia a inconstitucionalidade da
regra relativa ao recurso hierárquico necessário. No entanto, grande parte da
doutrina defende uma posição contrária.
Com a Reforma verifica-se que o
elenco de sujeitos contra quem as acções deveriam ser propostas, em primeira
instância, no STA foi restringido, deixando de incluir os actos praticados por
Ministros e Secretários de Estados. Esta eliminação é coerente com uma lógica
de eficiência e racionalidade uma vez que uma larga parte da actividade da
Administração Pública resulta de actos ministeriais. A Reforma de 2002
permitiu, assim, a redução do número de casos em que o STA funcionava como um
tribunal de primeira instância. Consequentemente, foi possível a passagem de um
sistema de pirâmide invertida, pouco eficiente e ilógico, para um sistema
próximo da pirâmide de base alargada. O novo ETAF veio
suprir o sistema de pirâmide invertida existente (existência de mais juízes nos
tribunais superiores do que na base). Consequentemente, a maioria dos processos
inseridos no âmbito da jurisdição administrativa deverão ser intentados nos
tribunais de primeira instância (tribunais de círculo).
Em conclusão, hoje em dia o STA
é fundamentalmente um tribunal de revista, com excepção dos processos que lhe
cabem em primeira instância, cumprindo-se um dos objectivos da Reforma: a
redistribuição de competência entre os tribunais administrativos[2],
atribuindo-se à primeira instância o que é de primeira instância.
Bibliografia
FREITAS DO AMARAL/ MÁRIO AROSO DE ALMEIDA "Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo", 3ª. edição, Almedina, Coimbra
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, Coimbra
Ministério da Justiça, "Reforma do Contencioso Administrativo", v. II, Coimbra Editora
VASCO PEREIRA DA SILVA, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", 2ª edição, Almedina, Coimbra
-- "Temas e Problemas de Processo Administrativo - Intervenções do Curso de Pósgraduação sobre o Processo Administrativo" ("e-book"), ICJP, Lisboa, 2010
FREITAS DO AMARAL/ MÁRIO AROSO DE ALMEIDA "Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo", 3ª. edição, Almedina, Coimbra
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, Coimbra
Ministério da Justiça, "Reforma do Contencioso Administrativo", v. II, Coimbra Editora
VASCO PEREIRA DA SILVA, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", 2ª edição, Almedina, Coimbra
-- "Temas e Problemas de Processo Administrativo - Intervenções do Curso de Pósgraduação sobre o Processo Administrativo" ("e-book"), ICJP, Lisboa, 2010
[1] Apesar disso, continua
da haver possibilidade de interpor recurso, devido á ao princípio do duplo grau
de jurisdição: há possibilidade de recurso, competência de pleno da secção
(artigo 25.º, n.º1 do ETAF).
[2] Nos trabalhos preparatórios da Reforma considera-se "fundamental, no âmbito da reforma do contencioso administrativo em curso, proceder à alteração da actual distribuição de competências, de forma a evoluir no sentido de um modelo idêntico ao das restantes jurisdições, em que a generalidade dos meios processuais deverão ter inicio nos tribunais administrativos de círculo (...)"
Trabalho realizado por Fabiana Pereira, nº19599
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