sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O Supremo Tribunal Administrativo como tribunal de primeira instância: antes e depois da Reforma de 2002


No presente texto pretende-se elaborar uma sumária exposição da situação anterior à Reforma de 2002, relativamente ao papel do Supremo Tribunal Administrativo enquanto tribunal de primeira instância, principalmente no que diz respeito à inclusão dos actos dos Ministros no elenco de actos cuja apreciação em primeiro grau competia ao STA.

Antes de mais, para efeitos sistemáticos, torna-se necessário fazer um enquadramento geral da matéria. Assim, no que diz respeito aos pressupostos do processo administrativo relativos ao tribunal, é de referir a competência em razão da hierarquia.

De acordo com o artigo 8.º do ETAF, os tribunais administrativos e fiscais estão organizados em três ordens de tribunais: tribunais de primeira instância, Tribunais Centrais Administrativos (tribunais de segunda instância) e o Supremo Tribunal Administrativo. O ETAF regula as competências destes tribunais, nos artigos 24.º e 25.º, para o STA, 37.º, para os Tribunais Centrais Administrativos e 44.º, para os tribunais administrativos de primeira instância.

Actualmente, o ETAF atribui aos tribunais administrativos de primeira instância competência para conhecer, em primeiro grau de jurisdição, da generalidade dos processos. Assim dispõe o artigo 44.º “compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer, em 1.ª instância, de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores e da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados”. No entanto, como se depreende da leitura do artigo, nalguns casos atribui-se competência para os tribunais superiores conhecerem, em primeiro grau de jurisdição, de alguns processos. Assim, verifica-se que o STA tem competência, em primeira instância, no que diz respeito a acções e omissões praticadas por certos tipos de órgãos de topo do Estado[1].

Artigo 24.º
Competência da Secção de Contencioso Administrativo
1 - Compete à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo
Tribunal Administrativo conhecer: 
a)       Dos processos em matéria administrativa relativos a acções ou omissões das seguintes entidades: 
i) Presidente da República;
ii) Assembleia da República e seu Presidente;
iii) Conselho de Ministros;
iv) Primeiro-Ministro;
v) Tribunal Constitucional e seu Presidente, Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de Contas e seu Presidente e Presidente do Supremo Tribunal Militar; 
vi) Conselho Superior de Defesa Nacional;
vii) Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu presidente;
viii) Procurador-Geral da República;
ix) Conselho Superior do Ministério Público;
b)       Dos processos relativos a eleições previstas nesta lei;
c)       Dos pedidos de adopção de providências cautelares relativos a processos da sua competência; 
d)       Dos pedidos relativos à execução das suas decisões;
e)       Dos pedidos cumulados nos processos referidos na alínea a);
f)        Das acções de regresso, fundadas em responsabilidade por danos resultantes do exercício das suas funções, propostas contra juízes do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais centrais administrativos e magistrados do Ministério Público que exerçam funções junto destes tribunais, ou equiparados; 
g)       Dos recursos dos acórdãos que aos tribunais centrais administrativos caiba proferir em primeiro grau de jurisdição; 
h)       Dos conflitos de competência entre tribunais administrativos;
i)         De outros processos cuja apreciação lhe seja deferida por lei.
2 - Compete ainda à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo conhecer dos recursos de revista sobre matéria de direito interpostos de acórdãos da Secção de Contencioso Administrativo dos tribunais centrais administrativos e de decisões dos tribunais administrativos de círculo, segundo o disposto na lei de processo. 

Antes da Reforma do Contencioso Administrativo de 2002 (em vigor desde 2004), incluíam-se os actos dos Ministros entre as acções e omissões relativamente aos quais o STA possuía uma competência em primeira instância. Tinha-se de se impugnar para o STA (sistema de pirâmide invertida).

Artigo 26.º do ETAF de 1984
(Competência da Secção pelas subsecções)
1 – Compete à Secção de Contencioso Administrativo, pelas suas subsecções, conhecer:
a)       Dos recursos de acórdãos da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo proferidos em 1.º grau de jurisdição;
b)       Dos recursos de decisões dos tribunais administrativos de círculo para cujo conhecimento não seja competente o Tribunal Central Administrativo;
c)       Dos recursos de actos administrativos ou em matéria administrativa praticados pelo Presidente da República, pela Assembleia da República e seu Presidente, pelo Governo, seus membros, Ministros da República e Provedor de Justiça, todos com excepção dos relativos ao funcionalismo público, pelos Presidentes do Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal de Contas, pelo Conselho Superior de Defesa Nacional, pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu Presidente, pelo Procurador-Geral da República, pelo Conselho Superior do Ministério Público e pela comissão de eleições prevista na Lei Orgânica do Ministério Público;
d)       Dos processos de contencioso relativo a eleições previstas no presente diploma;
e)       Dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo e a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo;
f)        Dos conflitos de jurisdição entre a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo e autoridades administrativas;
g)       Dos pedidos de suspensão da eficácia dos actos a que se refere a alínea c);
h)       Dos pedidos relativos à execução dos julgados;
i)         Dos pedidos de produção antecipada de prova formulados em processo nela pendente;
j)        Das matérias que lhe forem confiadas por lei.
2 – O disposto no número anterior não abrange as matérias respeitantes ao contencioso fiscal.

Era necessário recorrer ao recurso hierárquico necessário, o que significava recorrer para o para o ministro e só depois para o contencioso administrativo (só a decisão proferida pelo topo da hierarquia é que se podia impugnar judicialmente).
Quanto ao recurso hierárquico, há-que distinguir actos administrativos verticalmente definitivos (aqueles que são praticados por autoridades de cujos os actos se pode recorrer directamente para o Tribunal Administrativo) e actos que não são verticalmente definitivos (aqueles que são praticados por autoridades de cujos actos se não pode recorrer directamente para os Tribunais). O recurso hierárquico necessário é aquele que é indispensável utilizar para se obter um acto verticalmente definitivo do qual se possa recorrer contenciosamente.
De referir que, já antes da Reforma, o Prof. Vasco Pereira da Silva defendia a inconstitucionalidade da regra relativa ao recurso hierárquico necessário. No entanto, grande parte da doutrina defende uma posição contrária.

Com a Reforma verifica-se que o elenco de sujeitos contra quem as acções deveriam ser propostas, em primeira instância, no STA foi restringido, deixando de incluir os actos praticados por Ministros e Secretários de Estados. Esta eliminação é coerente com uma lógica de eficiência e racionalidade uma vez que uma larga parte da actividade da Administração Pública resulta de actos ministeriais. A Reforma de 2002 permitiu, assim, a redução do número de casos em que o STA funcionava como um tribunal de primeira instância. Consequentemente, foi possível a passagem de um sistema de pirâmide invertida, pouco eficiente e ilógico, para um sistema próximo da pirâmide de base alargada. O novo ETAF veio suprir o sistema de pirâmide invertida existente (existência de mais juízes nos tribunais superiores do que na base). Consequentemente, a maioria dos processos inseridos no âmbito da jurisdição administrativa deverão ser intentados nos tribunais de primeira instância (tribunais de círculo).

Em conclusão, hoje em dia o STA é fundamentalmente um tribunal de revista, com excepção dos processos que lhe cabem em primeira instância, cumprindo-se um dos objectivos da Reforma: a redistribuição de competência entre os tribunais administrativos[2], atribuindo-se à primeira instância o que é de primeira instância.

Bibliografia
FREITAS DO AMARAL/ MÁRIO AROSO DE ALMEIDA "Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo", 3ª. edição, Almedina, Coimbra
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, Coimbra
Ministério da Justiça, "Reforma do Contencioso Administrativo", v. II, Coimbra Editora
VASCO PEREIRA DA SILVA, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", 2ª edição, Almedina, Coimbra
-- "Temas e Problemas de Processo Administrativo - Intervenções do Curso de Pósgraduação sobre o Processo Administrativo" ("e-book"), ICJP, Lisboa, 2010


[1] Apesar disso, continua da haver possibilidade de interpor recurso, devido á ao princípio do duplo grau de jurisdição: há possibilidade de recurso, competência de pleno da secção (artigo 25.º, n.º1 do ETAF).
[2] Nos trabalhos preparatórios da Reforma considera-se "fundamental, no âmbito da reforma do contencioso administrativo em curso, proceder à alteração da actual distribuição de competências, de forma a evoluir no sentido de um modelo idêntico ao das restantes jurisdições, em que a generalidade dos meios processuais deverão ter inicio nos tribunais administrativos de círculo (...)" 
Trabalho realizado por Fabiana Pereira, nº19599

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