quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Âmbito de Jurisdição Administrativo


    Actualmente, o artigo 4.º do ETAF prevê, para delimitar o âmbito de jurisdição administrativa, uma vertente positiva e uma vertente negativa. Tal não sucedia na versão anterior do diploma, no qual apenas se referia a sua vertente negativa. Passou, então, a ser um artigo mais exemplificativo e a abranger mais matérias, tendo sofrendo algumas transições de alíneas, se bem com pequenas alterações (por exemplo, a actual alínea a) do numero 2 estavam nas alíneas a) e b) do numero 1, e a alínea d) do numero 1 passou para a alínea c) do numero 2 do actual diploma – matérias referentes à validade de actos políticos e legislativos). Deixou de vigorar a alínea f) do artigo 4.º, norma restritiva da competência dos tribunais administrativos (as que tinham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público. Atribui competência em todas as situações que envolvem pessoas colectivas de direito público (g) e h)). Desta forma, deixa de fazer sentido a distinção entre actos de gestão privado e de gestão publica, tendo sempre competência quando implique situações com entidade pública, ou que ponham em causa interesses públicos, nomeadamente quando está em causa a entidade “Estado” e demais pessoas colectivas públicas e os seus regimes próprios.
       Este artigo deve ser analisado acompanhado do artigo 1.º do mesmo diploma e com o artigo 212.º/3 da CRP, na medida em que nos elucida acerca do critério geral do âmbito de jurisdição administrativa: o das relações jurídicas administrativas. Assim sendo, podemos então, dizer que o artigo 4.º é uma concretização (exemplificativa) destes dois artigos gerais, pois sem esta concretização, o critério seria bastante abstracto e de difícil aplicação, pois, afinal, o que são relações jurídico administrativas?!
       O Prof. Mário Aroso Almeida entende que são as relações derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da AP ou equiparados (in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57) ; por sua vez os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração; 2 – as relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”  (in Constituição Anotada, 3ª edição, 815); já o prof. Freitas do Amaral define como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração” (No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf)). à ver acórdão 025/09 de 20.01.2010! Tenho de concordar com o Prof. Mário Aroso de Almeida na medida em que o importante é o interesse público e a sua prossecução, e para isso temos a AP como entidade pública pronta a alcançar esse objectivo; desta forma, todos os actos que ponham em causa regras administrativas quer sejam praticados directamente pela AP, quer por órgãos similares, estão, a meu ver, abrangidos pelo direito administrativo, pois actuaram, no fundo, ao abrigo desse mesmo.
          Podemos então concluir que o âmbito de jurisdição administrativa aumentou mas, ao mesmo tempo, é preciso ser cauteloso na aplicação das variadas alíneas do artigo 4.º, em especial as referentes aos contratos e à responsabilidade administrativas. O legislador, ao fazer as enumerações constantes no artigo 4.º, quis manter a referência constitucional necessária/mínima (“dimensão mínima da reserva de jurisdição administrativa garantia institucional”, como defende Carla Amado Gomes), tendo esta de acompanhar sempre a leitura do artigo. Já em relação à análise daquilo que fica além do âmbito administrativo, é necessária uma redução teleológica, na sua interpretação, do artigo constitucional, “traçando uma linha divisória em face da jurisdição comum” (Carla Amado Gomes). Assim, desde que matérias de direito público não estejam expressamente atribuídas a nenhuma outra jurisdição, então os tribunais administrativos são a jurisdição comum. A jurisdição administrativa é especial em relação à comum, mas geral em relação a outras jurisdições que tratem de matérias jurídico-públicas (“dimensão máxima de reserva”).
       A atribuição à jurisdição comum para julgar litígios emergentes de relações jurídico-públicas trata-se de uma excepção à reserva de jurisdição administrativa. Isto põe em causa o critério constitucional? Creio que não, na medida em que, e como defende Carla Amado Gomes, por questões práticas e de efectividade da resolução dos mesmos, é mais oportuno que assim o seja, desde que se reconduza para o foro competente, assim que possível (ver artigo 209.º CRP).
     Situação grave é, sim, a atribuição aos tribunais administrativos de questões essencialmente privadas ou jurídico - políticas. Contudo, o critério constitucional impede que a jurisdição comum “invada” a administrativa, e a sua força normativa não fica afectada pois trata-se de alargamento do âmbito de jurisdição, e não uma restrição.
          Tal como defende a Prof.ª Maria João Estorninho, verificou-se “um imenso alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, uma vez que os litígios emergentes da tradicionalmente denominada “actividade de gestão privada” da AP deixam de estar excluídos da jurisdição administrativa”, como foi supra enunciado.
        Apesar das mudanças substanciais que este artigo nos trouxe, creio que se mantêm situações de alguma ambiguidade nas cláusulas, nomeadamente no que diz respeito aos contratos e à responsabilidade administrativas (alíneas e), f), g), h) e i)), que, provavelmente necessitam de ser clarificadas oportunamente. Penso ainda assim que o que o legislador quis evidenciar com esta “linguística” foi o interesse comum, público, e a prossecução dos seus objectivos, e por isso, à partida, trata-se de relações jurídico-administrativas.

Marisa Silva, n.º 19 764

(OBS.: ver "O artigo 4.º do ETAF: Um exemplo de creeping jurisdiction?", Carla Amado Gomes, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes - Lisboa, 2004, p. 399 - 426)

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