Actualmente,
o artigo 4.º do ETAF prevê, para delimitar o âmbito de jurisdição
administrativa, uma vertente positiva e uma vertente negativa. Tal não sucedia
na versão anterior do diploma, no qual apenas se referia a sua vertente
negativa. Passou, então, a ser um artigo mais exemplificativo e a abranger mais
matérias, tendo sofrendo algumas transições de alíneas, se bem com pequenas
alterações (por exemplo, a actual alínea a) do numero 2 estavam nas alíneas a)
e b) do numero 1, e a alínea d) do numero 1 passou para a alínea c) do numero 2
do actual diploma – matérias referentes à validade de actos políticos e
legislativos). Deixou de vigorar a alínea f) do artigo 4.º, norma restritiva da
competência dos tribunais administrativos (as que tinham por objecto questões
de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito
público. Atribui competência em todas as situações que envolvem pessoas
colectivas de direito público (g) e h)). Desta forma, deixa de fazer sentido a
distinção entre actos de gestão privado e de gestão publica, tendo sempre
competência quando implique situações com entidade pública, ou que ponham em
causa interesses públicos, nomeadamente quando está em causa a entidade
“Estado” e demais pessoas colectivas públicas e os seus regimes próprios.
Este
artigo deve ser analisado acompanhado do artigo 1.º do mesmo diploma e com o
artigo 212.º/3 da CRP, na medida em que nos elucida acerca do critério geral do
âmbito de jurisdição administrativa: o das relações jurídicas administrativas.
Assim sendo, podemos então, dizer que o artigo 4.º é uma concretização
(exemplificativa) destes dois artigos gerais, pois sem esta concretização, o
critério seria bastante abstracto e de difícil aplicação, pois, afinal, o que
são relações jurídico administrativas?!
O
Prof. Mário Aroso Almeida entende que são as
relações derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por
órgãos da AP ou equiparados (in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos,
2005, pág. 57) ; por sua vez os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem
“esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções
e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos
sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público
(especialmente) da administração; 2 – as relações controvertidas são reguladas
sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos
negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza
privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da
relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre
relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou
fiscal” (in Constituição Anotada, 3ª edição, 815);
já o prof. Freitas do Amaral define como “aquela que confere poderes de
autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante
particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos
particulares perante a administração” (No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf)). à ver acórdão 025/09 de 20.01.2010! Tenho de concordar com o
Prof. Mário Aroso de Almeida na medida em que o importante é o interesse
público e a sua prossecução, e para isso temos a AP como entidade pública
pronta a alcançar esse objectivo; desta forma, todos os actos que ponham em
causa regras administrativas quer sejam praticados directamente pela AP, quer
por órgãos similares, estão, a meu ver, abrangidos pelo direito administrativo,
pois actuaram, no fundo, ao abrigo desse mesmo.
Podemos então concluir que o
âmbito de jurisdição administrativa aumentou mas, ao mesmo tempo, é preciso ser
cauteloso na aplicação das variadas alíneas do artigo 4.º, em especial as
referentes aos contratos e à responsabilidade administrativas. O
legislador, ao fazer as enumerações constantes no artigo 4.º, quis manter a
referência constitucional necessária/mínima (“dimensão mínima da reserva de jurisdição administrativa –
garantia institucional”, como defende
Carla Amado Gomes), tendo esta de
acompanhar sempre a leitura do artigo. Já em relação à análise daquilo que fica
além do âmbito administrativo, é necessária uma redução teleológica, na sua
interpretação, do artigo constitucional, “traçando
uma linha divisória em face da jurisdição comum” (Carla Amado Gomes). Assim, desde que matérias de direito público
não estejam expressamente atribuídas a nenhuma outra jurisdição, então os
tribunais administrativos são a jurisdição comum. A jurisdição administrativa é
especial em relação à comum, mas
geral em relação a outras jurisdições que tratem de matérias jurídico-públicas
(“dimensão máxima de reserva”).
A
atribuição à jurisdição comum para julgar litígios emergentes de relações
jurídico-públicas trata-se de uma excepção à reserva de jurisdição
administrativa. Isto põe em causa o critério constitucional? Creio que não, na
medida em que, e como defende Carla Amado
Gomes, por questões práticas e de efectividade da resolução dos mesmos, é
mais oportuno que assim o seja, desde que se reconduza para o foro competente,
assim que possível (ver artigo 209.º CRP).
Situação
grave é, sim, a atribuição aos tribunais administrativos de questões
essencialmente privadas ou jurídico - políticas. Contudo, o critério
constitucional impede que a jurisdição comum “invada” a administrativa, e a sua
força normativa não fica afectada pois trata-se de alargamento do âmbito de jurisdição,
e não uma restrição.
Tal como
defende a Prof.ª Maria João Estorninho, verificou-se “um imenso alargamento do
âmbito da jurisdição administrativa, uma vez que os litígios emergentes da
tradicionalmente denominada “actividade de gestão privada” da AP deixam de
estar excluídos da jurisdição administrativa”, como foi supra enunciado.
Apesar
das mudanças substanciais que este artigo nos trouxe, creio que se mantêm
situações de alguma ambiguidade nas cláusulas, nomeadamente no que diz respeito
aos contratos e à responsabilidade administrativas (alíneas e), f), g), h) e
i)), que, provavelmente necessitam de ser clarificadas oportunamente. Penso
ainda assim que o que o legislador quis evidenciar com esta “linguística” foi o
interesse comum, público, e a prossecução dos seus objectivos, e por isso, à
partida, trata-se de relações jurídico-administrativas.
Marisa Silva, n.º 19 764
(OBS.: ver "O artigo 4.º do ETAF: Um exemplo de creeping jurisdiction?", Carla Amado Gomes, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes - Lisboa, 2004, p. 399 - 426)
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