EUROPEIZAÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
É hoje inegável que o Direito Administrativo, incluindo a sua vertente processual, assim como outros ramos de Direito, sofre forte influência do Direito Europeu, tendo vindo a intensificar-se recentemente. O Prof. Fausto de Quadros chega mesmo a considerar adequada a palavra "penetração" para realçar tão grande impacto.
Segundo a divisão feita pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, a europeização do Contencioso Administrativo encontra-se temporalmente inserida nos finais do séc. XX e inícios do séc. XXI. Precedida pelo período da constitucionalização (décadas de 70 e 80), ambos os fenómenos constituem a fase do "crisma" ou da "confirmação" do referido contencioso.
A europeização é complexa, compreendendo e definindo-se como a conjunção e interacção de dois fenómenos principais: o surgimento de fontes europeias relevantes em matérias de Contencioso Administrativo e a crescente convergência das legislações nacionais.
Historicamente, foram os princípios jurídico-administrativos dos Direitos Administrativos nacionais a contribuir para a criação e dando forma ao chamado Direito Administrativo Europeu. Actualmente os papéis estão invertidos, decorrendo uma "revolução silenciosa" na qual os Direitos Administrativos nacionais estão a ser harmonizados e havendo um reforço do grau de exigência no que respeita à protecção dos administrados. Existe portanto uma convergência dinâmica vertical a que Miguel Prata Roque, recorrendo a uma metáfora, apelida especificamente de "efeito boomerang
" pois os princípios de Direito Administrativo comuns aos Estados-membros, depois de "lançados", regressam agora com mais velocidade, ou seja, transformados e aperfeiçoados. Sobre este ponto, o Prof. Vasco Pereira da Silva estabelece uma dupla dependência, sendo a primeira uma "dependência administrativa do Direito Europeu", uma vez que "(...) o Direito Europeu só se realiza através do Direito Administrativo (...)" e esta concretização é feita por "(...) normas, instituições e formas de actuação de Direito Administrativo, ao nível de cada um dos Estados que integram a União", e a segunda uma "dependência europeia do Direito Administrativo" já que "(...) o Direito Administrativo é cada vez mais Direito Europeu, (...) pela multiplicidade de fontes europeias relevantes no domínio jurídico-administrativo (...)".
Ainda para este Professor, o aspecto do fenómeno de europeização é especialmente visível no âmbito do Processo Administrativo uma vez que, no que respeita ao nível europeu do Direito e Processo Administrativos, ambos andam intimamente ligados e têm na jurisprudência a principal fonte das normas substantivas e que resultam da "colaboração criadora" do Tribunal de Justiça da União Europeia com os tribunais nacionais, havendo então um Direito do Procedimento Administrativo Europeu. Relativamente às regras de procedimento e de processo administrativos, estas têm vindo a autonomizar-se das regras substantivas e a adquirir importância quer ao nível das fontes comunitárias quer nacionais, dando origem à europeização e convergência dos sistemas processuais dos Estados-membros, patente nas recentes reformas do Processo Administrativo. Aqui volta a haver nova dualidade de dependências, mas desta vez mais concretamente, "dependência processual administrativa do Direito Europeu" e "dependência europeia do Processo Administrativo".
O Direito do Procedimento Administrativo Europeu contém "regras comuns", quer de fonte legislativa quer de fonte jurisprudencial, nomeadamente, a consagração de um princípio de "plenitude da competência do juiz nacional na sua qualidade de juiz comunitário" que vale tanto para os pedidos cautelares como para os principais, isto é, o juiz tem plena jurisdição e tal permite a criação de novos meios processuais, quando eles não existam ou sejam insuficientes, constituindo assim um dos mais importantes instrumentos da europeização; e o regime jurídico da tutela cautelar europeia em matéria de contratos públicos que vem complementar as regras substantivas.
Uma das regras que suscitou maiores questões é a afirmação de uma dimensão europeia do direito à tutela judicial efectiva, pelo Tribunal de Justiça, ao pôr em causa o efeito preclusivo do direito de acção contra as autoridades públicas, constante de legislação nacional, quando exista incompatibilidade entre o Direito Europeu e o Direito Estadual, e ao conferir aos tribunais nacionais poderes de conhecimento oficioso desses casos. Tomando como referência o caso Foto-Frost*, pode acontecer que num tribunal administrativo nacional seja invocada a invalidade de um acto ou norma de Direito Europeu. O juiz nacional não tem competência para declarar a nulidade ou anular esse acto dado o princípio da separação entre a jurisdição nacional e a europeia mas se pelo menos tiver dúvidas sobre ela e entender que a resposta é condição da boa resolução do litígio então está obrigado, mesmo que da sentença do tribunal em causa caiba recurso jurisdicional no âmbito do direito interno, a suscitar perante o TJ a questão prejudicial de apreciação de invalidade do acto de Direito Europeu. Apesar de não estar expressamente previsto no Tratado os Estados-membros seguem-no pacificamente.
A outra regra é relativa ao regime da responsabilidade civil extra-contratual dos poderes públicos, de acordo com o "princípio segundo o qual os Estados-membros são obrigados a indemnizar os danos causados aos indivíduos pela violação do Direito Comunitário, que lhes são imputáveis", a qual, por sua vez, fundamenta-se nos princípios constitucionais gerais da "plena eficácia das normas comunitárias" e da tutela efectiva dos direitos dos particulares. Foram afirmados pela primeira vez no caso Francovich os pressupostos da responsabilidade extra-contratual nesta situação. Para se efectivar a responsabilização do órgão ou do agente do Estado exigia-se: a ilicitude do seu comportamento (por actos legislativos, administrativos ou jurisdicionais); a violação de uma regra de Direito que proteja os direitos dos particulares; que esta violação fosse suficientemente grave e manifesta; que daí tenha resultado dano (certo, suscetível de ser avaliado pecuniariamente e emergente ou de lucro cessante); exigindo-se um nexo de causalidade entre o prejuízo e o comportamento que o provocou.
Em termos de princípios e ligada a estas "regras comuns", levanta-se uma questão pertinente sobre o princípio da igualdade. Não pode haver , no sistema jurídico interno, domínios menos favoráveis ao particular por força de Direito de fonte interna do que outras áreas com fonte no Direito Europeu. Assim, por exemplo, porque para o Direito Europeu o critério da reparação para a efectivação da responsabilidade extra-contratual do Estado por incumprimento daquele Direito é o da reposição da situação hipotética actual, o mesmo deve ser o critério para a efectivação da responsabilidade extra-contratual do Estado por violação de Direito de fonte estritamente interna. Solução diferente desta traduzir-se-ia numa discriminação negativa quando se aplicasse o Direito de fonte interna e poderia assumir a forma de uma discriminação de nacionais quanto a não-nacionais.
Cabe agora perceber a convergência dinâmica horizontal.
Se o Prof. Vasco Pereira da Silva propõe-se a analisar a psicanálise do contencioso administrativo e refere o "comparatismo entre sistemas" ou "comparatismo das soluções jurídicas" que, segundo ele, potencia a "mestiçagem jurídica", Miguel Prata Roque estabelece um consultório de infecciologia e refere um "efeito de contágio", que levou a que cada um dos Direitos Administrativos nacionais se influenciasse reciprocamente devido a um "vírus extremamente mutável e transmissível". Segundo este último autor, à medida que os Estado-membros vão entrando em contacto com sistemas administrativos já contagiados, acabam por adquiri-lo, ainda que aquele venha a sofrer mutações decorrentes das especificidades do Direito Administrativo nacional infectado.
A europeização do Contencioso Administrativo francês conduziu à implementação de um sistema jurisdicionalizado e vocacionado para a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, superando assim os últimos resquícios das "experiências traumáticas da juventude".
Na Alemanha, tal não obrigou a grandes mudanças sistemáticas, sendo aliás, considerado um sistema "exemplar", mas tal não impediu que houvesse um choque naquilo que respeita à protecção dos direitos dos particulares, designadamente em sede de tutela cautelar.
No Reino Unido, assiste-se a uma influência decisiva do Direito Europeu no Direito Administrativo, sendo os princípios europeus mais facilmente aceites como modelo e assim incorporizados. Um dos domínios em que é notória essa influência é no que concerne á organização do sistema de garantias dos particulares.
Em Portugal, até 2004, havia um "défice de europeização", solucionado com a Reforma que entrou em vigor nesse mesmo ano e da qual resultou um Processo Administrativo que concretiza de forma adequada o modelo europeu de uma Justiça Administrativa plenamente jurisdicionalizada e efectiva dos direitos dos particulares.
A europeização do Contencioso Administrativo não pretende nem leva à destruição ou ao desaparecimento das especificidades dos Direitos nacionais nem da sua soberania, assim como a convergência não pressupõe uma similitude integral entre cada um dos sistemas administrativos dos Estados-membros, antes vivendo da sua multiplicidade e heterogeneidade, até porque ainda que a União Europeia tenha legitimidade para adoptar actos jurídicos destinados a fazer confluir os diversos sistemas administrativos nacionais, as opções quanto ao grau de intervenção variam significativamente. Atendendo à evolução dos acontecimentos, já não se falará apenas de uma europeização, mas do surgimento de um Direito Administrativo Global.
*Acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1987. – FOTO-FROST contra HAUPTZOLLAMT LUEBECK- OST. – pedido de decisão prejudicial apreciado pelo Finanzgericht Hamburg. – Incompetência dos tribunais nacionais para declararem a invalidade dos actos comunitários – Processo 314/85.
Bibliografia
· SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, págs.106 a 150.
· QUADROS, Fausto de, A europeização do Contencioso Administrativo, 2006.
. ROQUE, Miguel Prata, O Direito Administrativo Europeu, 2010.
Frederico F. F. Soares Nº 17292
Escrito em desacordo com as regras do novo acordo ortográfico
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