A Separação de Poderes no Estado Liberal
O Estado liberal nasceu
das revoluções de finais do século XVIII e início do século XIX. Com ele,
afirmam-se os direitos fundamentais dos cidadãos, o princípio da legalidade e o
princípio da separação de poderes. É MONTESQUIEU, no célebre “De L’Espirit des Lois”, que enquadra
este último no âmbito estatal considerando que existem sempre três espécies de
poderes num Estado: poder legislativo, poder executivo e o poder judicial.
Contudo, o “pecado original” foi ter sido adoptada uma concepção rígida deste
princípio, uma vez que, para MONTESQUIEU o poder judicial seria “aquele através
do qual o Estado pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares”, ou
seja: a resolução de litígios de matéria administrativa não era da competência
dos tribunais. Aqui, os revolucionários franceses, encontraram justificação
para erigirem um sistema marcado pela promiscuidade entre as tarefas de julgar
e de administrar.
Na França
revolucionária, era preferível considerar que “julgar a Administração é ainda
administrar” do que reconhecer que efectivamente essa era uma tarefa dos
tribunais judiciais. A Constituição Francesa de 1789 proibia os tribunais
judiciais de interferirem na esfera da Administração, pelo que a solução foi
edificar um sistema em que o administrador era juiz, um juiz “doméstico” ou de
“trazer por casa”, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva. A esse
sistema de promiscuidade deu-se o nome ciclo do Administrador-Juiz sendo subdividido em três momentos de evolução
em que o sistema assumiu diferentes configurações:
- 1789 – 1799: o controlo da administração era assegurado pelos próprios órgãos da administração activa;
- 1799 – 1872: é criado o Conselho de Estado devendo os órgãos de topo da Administração decidir em matéria contenciosa sob sua consulta obrigatória, embora não vinculativa; denominava-se o sistema da “justiça reservada”. Surge assim um corpo que é “meio-administrativo, meio judiciário”;
- A partir de 1872: passa-se a um sistema de “justiça delegada” em que se tornam definitivas as decisões do Conselho de Estado, por uma “delegação de poderes” do executivo.
Note-se que mesmo nesta
última fase, os órgãos de controlo da Administração são ainda órgãos
administrativos, embora independentes da Administração activa.
Contudo, o “pecado” não
ficava por aqui. O entendimento distorcido do princípio da separação de poderes
ia mais longe impedindo os chamados ”tribunais” administrativos (que não era
verdadeiros tribunais e sim meros órgãos de controlo) de algo mais do que
anular condutas administrativas (chamado contencioso
de mera anulação) uma vez que era considerada absurda a hipótese de uma
condenação da administração à adopção de condutas (contencioso de plena jurisdição) dado que isso equivaleria (na concepção
errada, rígida, distorcida francesa) a permitir aos órgãos de controlo
administrativos que exercessem a função administrativa. Escusado será referir o
quão incongruente era este argumento: mas afinal não era essa mesma concepção
que considerava que “julgar a administração é ainda administrar”? Aqui cito o
Professor Marcelo Rebelo de Sousa: visto a partir do presente, o edifício
jurídico-público do Estado liberal evidencia múltiplas contradições internas.
Tudo ainda se torna
mais curioso se se notar como as coisas se passaram de forma diferente na
Inglaterra, matriz do liberalismo. Aí, a ideia de separação de poderes passava
por considerar cada um dos poderes como independente e autónomo mas que se
limitavam reciprocamente sem que isso implicasse a sua integração em qualquer
entidade superior, tendo daí resultado a submissão da Administração aos
tribunais e às regras de “direito comum”. Pelo contrário a França construiu,
num pano de fundo para toda esta trama, a ideia de um Estado “todo-poderoso”
escondido atrás da Administração, e que vai por isso obrigar à criação de um
contencioso especial.
Resta-me concluir com o
óbvio: hoje o poder de controlar a administração é evidentemente jurisdicional.
Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Ed.
Almedina, 2009
REBELO DE SOUSA, Marcelo, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral tomo I – Introdução e Princípios Fundamentais, Publicações Dom Quixote, 2008
AMARAL, Diogo Freira do, Curso de Direito Administrativo Vol. I, Ed. Almedina, 2006
REBELO DE SOUSA, Marcelo, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral tomo I – Introdução e Princípios Fundamentais, Publicações Dom Quixote, 2008
AMARAL, Diogo Freira do, Curso de Direito Administrativo Vol. I, Ed. Almedina, 2006
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