quinta-feira, 25 de outubro de 2012

"Julgar a Administração é ainda administrar"

A Separação de Poderes no Estado Liberal



  O Estado liberal nasceu das revoluções de finais do século XVIII e início do século XIX. Com ele, afirmam-se os direitos fundamentais dos cidadãos, o princípio da legalidade e o princípio da separação de poderes. É MONTESQUIEU, no célebre “De L’Espirit des Lois”, que enquadra este último no âmbito estatal considerando que existem sempre três espécies de poderes num Estado: poder legislativo, poder executivo e o poder judicial. Contudo, o “pecado original” foi ter sido adoptada uma concepção rígida deste princípio, uma vez que, para MONTESQUIEU o poder judicial seria “aquele através do qual o Estado pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares”, ou seja: a resolução de litígios de matéria administrativa não era da competência dos tribunais. Aqui, os revolucionários franceses, encontraram justificação para erigirem um sistema marcado pela promiscuidade entre as tarefas de julgar e de administrar.
  
  Na França revolucionária, era preferível considerar que “julgar a Administração é ainda administrar” do que reconhecer que efectivamente essa era uma tarefa dos tribunais judiciais. A Constituição Francesa de 1789 proibia os tribunais judiciais de interferirem na esfera da Administração, pelo que a solução foi edificar um sistema em que o administrador era juiz, um juiz “doméstico” ou de “trazer por casa”, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva. A esse sistema de promiscuidade deu-se o nome ciclo do Administrador-Juiz sendo subdividido em três momentos de evolução em que o sistema assumiu diferentes configurações:
  • 1789 – 1799: o controlo da administração era assegurado pelos próprios órgãos da administração activa;
  • 1799 – 1872: é criado o Conselho de Estado devendo os órgãos de topo da Administração decidir em matéria contenciosa sob sua consulta obrigatória, embora não vinculativa; denominava-se o sistema da “justiça reservada”. Surge assim um corpo que é “meio-administrativo, meio judiciário”;
  • A partir de 1872: passa-se a um sistema de “justiça delegada” em que se tornam definitivas as decisões do Conselho de Estado, por uma “delegação de poderes” do executivo.

  Note-se que mesmo nesta última fase, os órgãos de controlo da Administração são ainda órgãos administrativos, embora independentes da Administração activa.
  
  Contudo, o “pecado” não ficava por aqui. O entendimento distorcido do princípio da separação de poderes ia mais longe impedindo os chamados ”tribunais” administrativos (que não era verdadeiros tribunais e sim meros órgãos de controlo) de algo mais do que anular condutas administrativas (chamado contencioso de mera anulação) uma vez que era considerada absurda a hipótese de uma condenação da administração à adopção de condutas (contencioso de plena jurisdição) dado que isso equivaleria (na concepção errada, rígida, distorcida francesa) a permitir aos órgãos de controlo administrativos que exercessem a função administrativa. Escusado será referir o quão incongruente era este argumento: mas afinal não era essa mesma concepção que considerava que “julgar a administração é ainda administrar”? Aqui cito o Professor Marcelo Rebelo de Sousa: visto a partir do presente, o edifício jurídico-público do Estado liberal evidencia múltiplas contradições internas.
  
  Tudo ainda se torna mais curioso se se notar como as coisas se passaram de forma diferente na Inglaterra, matriz do liberalismo. Aí, a ideia de separação de poderes passava por considerar cada um dos poderes como independente e autónomo mas que se limitavam reciprocamente sem que isso implicasse a sua integração em qualquer entidade superior, tendo daí resultado a submissão da Administração aos tribunais e às regras de “direito comum”. Pelo contrário a França construiu, num pano de fundo para toda esta trama, a ideia de um Estado “todo-poderoso” escondido atrás da Administração, e que vai por isso obrigar à criação de um contencioso especial.

  Resta-me concluir com o óbvio: hoje o poder de controlar a administração é evidentemente jurisdicional.

Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Ed. Almedina, 2009
REBELO DE SOUSA, Marcelo, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral tomo I – Introdução e Princípios Fundamentais, Publicações Dom Quixote, 2008
AMARAL, Diogo Freira do, Curso de Direito Administrativo Vol. I, Ed. Almedina, 2006

 

 

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