quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A (ir)relevância do tipo de gestão, no âmbito da Responsabilidade Civil da Administração Pública




Sendo certo que a Administração Pública é quem desempenha a Função Administrativa, esta competência manifesta-se nas mais diversas formas. Independentemente de se tratar de um regulamento, de um acto administrativo, de um contrato administrativo ou de qualquer outra manifestação de poder público administrativo, estes actos têm sempre uma particularidade em comum, vital para este nosso âmbito. Todas estas demonstrações de poder público são susceptíveis de lesar a esfera jurídica de particulares, no decorrer da concretização prática da Função Administrativa. É neste plano que se projecta o conceito de responsabilidade civil pública.
O contencioso da responsabilidade civil pública foi desde os seus primórdios algo nebuloso de apurar, com base nos mais variados motivos. No âmbito deste curto ensaio, será enfatizado o papel da actuação de gestão quer privada, quer pública, para efeitos de responsabilização das Entidades Públicas perante os particulares. Adiantando um conceito minimalista para identificar a responsabilidade civil pública, podemos defini-la como uma obrigação jurídica, que tem como alvo um ente colectivo público e implica que este indemnize o sujeito lesado pelos danos causados no exercício da função administrativa.
Este tipo de contencioso tem uma enorme relevância nos mais diversos âmbitos. Se num nível científico mais estrito ele foi um dos alicerces na construção do Direito Administrativo, num plano mais amplo, o contencioso da responsabilidade civil pública faz sentir a sua importância no nosso quotidiano. Isto porque a responsabilidade civil das entidades do Estado está intrinsecamente ligada à própria concepção de Estado de Direito. Tal reflexo está projectado na Constituição da República Portuguesa, à luz do artigo 22º e no âmbito dos direitos fundamentais.
Foi uma matéria deixada na sombra pela reforma do contencioso português, no ano de 2004. A responsabilidade civil do estado, ainda integrou a proposta de Lei nº95/VIII relativa ao Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado. Porém, em Novembro de 2001, a Assembleia da República ao discutir e aprovar na generalidade as propostas legislativas, resolveu deixar convenientemente pelo caminho, o diploma regulador da responsabilidade civil da administração pública. Escusado será referir a importância extrema que este teria no plano renovador.
De facto só em 31 de Dezembro de 2007, por meio da Lei nº67/07, entrou em vigor no território português, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. De sublinhar que este diploma não procurou harmonizar-se com a teleologia reformista da Justiça Administrativa, preconizada em 2004. Não foi desta forma a resposta esperada para a turbulência sentida neste âmbito.
Rumo ao objectivo proposto, entramos nas densas águas da dualidade do contencioso da responsabilidade civil das entidades públicas. Foi um marco persistente nesta matéria e de difíceis avanços no sentido de uma unidade no contencioso. Esta dualidade prende-se directamente com a actuação de gestão pública ou privada, por parte do Estado. Para a compreendermos, impõe-se um recuo no tempo, até aos primórdios do Direito Administrativo.
Remontando ao ano de 1873, devemos obrigatoriamente analisar o Acórdão Blanco, da autoria do Tribunal de Conflitos Francês, publicado no dia 8 de Janeiro. Iremos desta forma levantar o véu sobre o cerne deste ensaio. A decisão em causa foi vital no plano Administrativo, especialmente ao proclamar este tipo de Direito, como um ramo autónomo. Porém, é de lamentar que o fez pelas piores condições e motivos. Fê-lo no intuito de limitar a responsabilidade da Administração Pública perante o óbito de uma criança. A menina em causa era Agnès Blanco e tinha sido vítima de um atropelamento fatal, por parte de um vagão, ao serviço de uma empresa pública de tabaco sediada em Bordéus. Os seus pais depararam-se com uma confusa batalha judicial, no âmbito de indemnização por gestão danosa do Estado, não sabendo quais os tribunais competentes para tal efeito ou sequer a legislação aplicável. Uma dúvida que se alastrava também à doutrina da época. O Direito Administrativo surge assim, não para garantir a protecção efectiva dos particulares, mas sim para garantir a primazia da Administração Pública.
Em Portugal, no período anterior à reforma de 2004, inúmeras situações análogas à de Agnès Blanco reproduziram-se nos nossos Tribunais ao longo do tempo. Acontecia que, perante uma actuação administrativa danosa, se o particular reclamasse a correspondente indemnização num Tribunal Judicial, este declarar-se-ia incompetente para apreciar a questão. Alegaria como base da sua posição, estar em causa um acto de Gestão Pública, o qual não integra o âmbito de aplicação do Código Civil. Malograda tal tentativa, não seria de admirar que o sujeito lesado pelo acto supra referido, prosseguisse o seu intuito desta vez no Tribunal Administrativo. Eis que um “dejá vú” contencioso atormenta o sujeito queixoso. No fundo, este vê o Tribunal mudar, mas a declaração de incompetência repete-se. Desta vez, é o tribunal Administrativo quem vem deitar por terra as pretensões de Justiça do ofendido, numa declaração análoga à do Tribunal Judicial. Defende ainda, que a administração danosa em causa é uma actividade de Gestão Privada e como tal, é do âmbito das relações entre particulares, tuteladas pelo Código Civil.
Face a esta incógnita ao nível da competência e do direito aplicável a matérias relacionadas com actuações danosas por parte de entidades públicas, só o Tribunal de Conflitos veio dar paz a todas as “famílias Blanco”. Foram inúmeros os casos de pessoas que tanto batalharam ao longo do tempo, pela persecução de Justiça em Portugal e noutros países europeus como França.
É doutrinalmente pacífico que, após a decisão do tribunal de Conflitos e até à reforma de 2004, assistíamos a uma dualidade de critérios, nos mais variados níveis. Refira-se que se a Administração causasse danos, no âmbito de uma Gestão Privada, ela respondia à luz do Direito Civil e em sede de Tribunal Judicial. Se por outro lado, o dano fosse causado a certo sujeito, no exercício de actividades de Gestão Pública, ela respondia sob a égide do Direito Administrativo, perante Tribunais Administrativos.
Fica patente a fragmentação inerente a uma dualidade de regimes jurídicos e tribunais competentes. Prejudicando directamente os cidadãos e suas garantias. É um sistema despromovido de lógica, especialmente porque a distinção entre Gestão Pública e Privada há muito tempo perdera sustentabilidade no âmbito da responsabilidade que aqui analisamos. Foi a Jurisprudência quem deu o primeiro passo no sentido de uma inovação prática. Deixou de lado o tipo de gestão em causa, em detrimento de um conceito mais amplo e preciso para a multiplicidade de casos em concreto. Esse conceito apurador de responsabilidade das entidades públicas, foi tão-somente a susceptibilidade do acto que produz lesão a outrem, se introduzir ou não no âmbito da Função Administrativa.
A dualidade é finalmente posta de lado, num processo lógico de uniformização do Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Pública. O “ambiente” de Função Administrativa vem assim por termo a um sistema injusto, dotado de uma bicefalia difícil de definir a todos os níveis e que por várias vezes se traduziu numa denegação de justiça. Uma grave restrição à protecção plena e efectiva dos particulares. Algo que assume em certos casos, o cariz de direito fundamental, constitucionalmente protegido.
Ressalva feita a que a dualidade legislativa manteve-se até à entrada em vigor da Lei nº 67/2007, mesmo perante um cenário de unidade jurisdicional. A Lei supra referida, vem introduzir um novo regime de responsabilidade civil pública.
Refira-se ainda que, no âmbito da jurisdição administrativa a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais é fixada com base nas relações jurídicas em causa. Num plano prático, é de referir o artigo 212, nº3 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 1º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e por fim o artigo 4º também ele do ETAF. São ambos sinónimos da referida união jurisdicional, que pôs termo à dualidade entre os dois tipos de gestão e seus reflexos processuais. Desta forma, todo o contencioso da responsabilidade civil pública, passa a ser da competência dos Tribunais Administrativos.

Gonçalo A. A. Mata de Castro Lousada
N.17297



Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Ed. Almedina, 2009
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo como Direito Concretizado ou “Ainda por Concretizar”?, Almedina,1999
FREITAS DO AMARAL, Diogo, Direito Administrativo – Volume III
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos Preparatórios da Reforma, Coimbra Editora, 2002



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