Sendo certo que a
Administração Pública é quem desempenha a Função Administrativa, esta
competência manifesta-se nas mais diversas formas. Independentemente de se
tratar de um regulamento, de um acto administrativo, de um contrato
administrativo ou de qualquer outra manifestação de poder público
administrativo, estes actos têm sempre uma particularidade em comum, vital para
este nosso âmbito. Todas estas demonstrações de poder público são susceptíveis
de lesar a esfera jurídica de particulares, no decorrer da concretização
prática da Função Administrativa. É neste plano que se projecta o conceito de
responsabilidade civil pública.
O contencioso da
responsabilidade civil pública foi desde os seus primórdios algo nebuloso de
apurar, com base nos mais variados motivos. No âmbito deste curto ensaio, será
enfatizado o papel da actuação de gestão quer privada, quer pública, para
efeitos de responsabilização das Entidades Públicas perante os particulares.
Adiantando um conceito minimalista para identificar a responsabilidade civil
pública, podemos defini-la como uma obrigação jurídica, que tem como alvo um
ente colectivo público e implica que este indemnize o sujeito lesado pelos
danos causados no exercício da função administrativa.
Este tipo de
contencioso tem uma enorme relevância nos mais diversos âmbitos. Se num nível
científico mais estrito ele foi um dos alicerces na construção do Direito
Administrativo, num plano mais amplo, o contencioso da responsabilidade civil
pública faz sentir a sua importância no nosso quotidiano. Isto porque a
responsabilidade civil das entidades do Estado está intrinsecamente ligada à
própria concepção de Estado de Direito. Tal reflexo está projectado na
Constituição da República Portuguesa, à luz do artigo 22º e no âmbito dos
direitos fundamentais.
Foi uma matéria deixada
na sombra pela reforma do contencioso português, no ano de 2004. A
responsabilidade civil do estado, ainda integrou a proposta de Lei nº95/VIII
relativa ao Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado. Porém, em
Novembro de 2001, a Assembleia da República ao discutir e aprovar na
generalidade as propostas legislativas, resolveu deixar convenientemente pelo
caminho, o diploma regulador da responsabilidade civil da administração
pública. Escusado será referir a importância extrema que este teria no plano
renovador.
De facto só em 31 de
Dezembro de 2007, por meio da Lei nº67/07, entrou em vigor no território
português, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e
demais Entidades Públicas. De sublinhar que este diploma não procurou
harmonizar-se com a teleologia reformista da Justiça Administrativa,
preconizada em 2004. Não foi desta forma a resposta esperada para a turbulência
sentida neste âmbito.
Rumo ao objectivo
proposto, entramos nas densas águas da dualidade do contencioso da
responsabilidade civil das entidades públicas. Foi um marco persistente nesta
matéria e de difíceis avanços no sentido de uma unidade no contencioso. Esta
dualidade prende-se directamente com a actuação de gestão pública ou privada,
por parte do Estado. Para a compreendermos, impõe-se um recuo no tempo, até aos
primórdios do Direito Administrativo.
Remontando ao ano de
1873, devemos obrigatoriamente analisar o Acórdão Blanco, da autoria do
Tribunal de Conflitos Francês, publicado no dia 8 de Janeiro. Iremos desta
forma levantar o véu sobre o cerne deste ensaio. A decisão em causa foi vital
no plano Administrativo, especialmente ao proclamar este tipo de Direito, como
um ramo autónomo. Porém, é de lamentar que o fez pelas piores condições e
motivos. Fê-lo no intuito de limitar a responsabilidade da Administração
Pública perante o óbito de uma criança. A menina em causa era Agnès Blanco e
tinha sido vítima de um atropelamento fatal, por parte de um vagão, ao serviço
de uma empresa pública de tabaco sediada em Bordéus. Os seus pais depararam-se
com uma confusa batalha judicial, no âmbito de indemnização por gestão danosa
do Estado, não sabendo quais os tribunais competentes para tal efeito ou sequer
a legislação aplicável. Uma dúvida que se alastrava também à doutrina da época.
O Direito Administrativo surge assim, não para garantir a protecção efectiva
dos particulares, mas sim para garantir a primazia da Administração Pública.
Em Portugal, no período
anterior à reforma de 2004, inúmeras situações análogas à de Agnès Blanco
reproduziram-se nos nossos Tribunais ao longo do tempo. Acontecia que, perante
uma actuação administrativa danosa, se o particular reclamasse a correspondente
indemnização num Tribunal Judicial, este declarar-se-ia incompetente para
apreciar a questão. Alegaria como base da sua posição, estar em causa um acto
de Gestão Pública, o qual não integra o âmbito de aplicação do Código Civil.
Malograda tal tentativa, não seria de admirar que o sujeito lesado pelo acto
supra referido, prosseguisse o seu intuito desta vez no Tribunal
Administrativo. Eis que um “dejá vú” contencioso atormenta o sujeito queixoso.
No fundo, este vê o Tribunal mudar, mas a declaração de incompetência
repete-se. Desta vez, é o tribunal Administrativo quem vem deitar por terra as
pretensões de Justiça do ofendido, numa declaração análoga à do Tribunal
Judicial. Defende ainda, que a administração danosa em causa é uma actividade
de Gestão Privada e como tal, é do âmbito das relações entre particulares,
tuteladas pelo Código Civil.
Face a esta incógnita
ao nível da competência e do direito aplicável a matérias relacionadas com
actuações danosas por parte de entidades públicas, só o Tribunal de Conflitos
veio dar paz a todas as “famílias Blanco”. Foram inúmeros os casos de pessoas
que tanto batalharam ao longo do tempo, pela persecução de Justiça em Portugal
e noutros países europeus como França.
É doutrinalmente
pacífico que, após a decisão do tribunal de Conflitos e até à reforma de 2004,
assistíamos a uma dualidade de critérios, nos mais variados níveis. Refira-se
que se a Administração causasse danos, no âmbito de uma Gestão Privada, ela
respondia à luz do Direito Civil e em sede de Tribunal Judicial. Se por outro
lado, o dano fosse causado a certo sujeito, no exercício de actividades de
Gestão Pública, ela respondia sob a égide do Direito Administrativo, perante
Tribunais Administrativos.
Fica patente a
fragmentação inerente a uma dualidade de regimes jurídicos e tribunais
competentes. Prejudicando directamente os cidadãos e suas garantias. É um
sistema despromovido de lógica, especialmente porque a distinção entre Gestão
Pública e Privada há muito tempo perdera sustentabilidade no âmbito da
responsabilidade que aqui analisamos. Foi a Jurisprudência quem deu o primeiro
passo no sentido de uma inovação prática. Deixou de lado o tipo de gestão em
causa, em detrimento de um conceito mais amplo e preciso para a multiplicidade
de casos em concreto. Esse conceito apurador de responsabilidade das entidades
públicas, foi tão-somente a susceptibilidade do acto que produz lesão a outrem,
se introduzir ou não no âmbito da Função Administrativa.
A dualidade é
finalmente posta de lado, num processo lógico de uniformização do Regime
Jurídico da Responsabilidade Civil Pública. O “ambiente” de Função
Administrativa vem assim por termo a um sistema injusto, dotado de uma
bicefalia difícil de definir a todos os níveis e que por várias vezes se
traduziu numa denegação de justiça. Uma grave restrição à protecção plena e
efectiva dos particulares. Algo que assume em certos casos, o cariz de direito
fundamental, constitucionalmente protegido.
Ressalva feita a que a
dualidade legislativa manteve-se até à entrada em vigor da Lei nº 67/2007,
mesmo perante um cenário de unidade jurisdicional. A Lei supra referida, vem
introduzir um novo regime de responsabilidade civil pública.
Refira-se ainda que, no
âmbito da jurisdição administrativa a competência dos Tribunais Administrativos
e Fiscais é fixada com base nas relações jurídicas em causa. Num plano prático,
é de referir o artigo 212, nº3 da Constituição da República Portuguesa, o
artigo 1º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e por fim o
artigo 4º também ele do ETAF. São ambos sinónimos da referida união
jurisdicional, que pôs termo à dualidade entre os dois tipos de gestão e seus
reflexos processuais. Desta forma, todo o contencioso da responsabilidade civil
pública, passa a ser da competência dos Tribunais Administrativos.
Gonçalo A. A. Mata de Castro Lousada
N.17297
Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA,
Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as
acções no novo processo administrativo, Ed. Almedina, 2009
PEREIRA DA SILVA,
Vasco, O Contencioso Administrativo como Direito Concretizado ou “Ainda por
Concretizar”?, Almedina,1999
FREITAS DO AMARAL,
Diogo, Direito Administrativo – Volume III
Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado – Trabalhos Preparatórios da Reforma, Coimbra
Editora, 2002
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