Muitos são
os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que se pronunciam ainda sobre o
antigo ETAF, de 1984[1]. É
curioso constatar que ainda não se resolveram litígios cujos processos foram instaurados
antes de 2004, tal como o acórdão em causa. Como é de conhecimento, o novo ETAF[2] apenas
se aplica a conflitos que surgem após a sua entrada em vigor.
É triste saber que estamos na
Faculdade a aprender o contencioso administrativo e fiscal de hoje, para que
depois, na prática, resolver segundo as regras não de ontem, mas sim de quase
dez anos... O “prazo razoável” a que o
art. 2º, nº 1 do ETAF faz referência é bastante questionável, ou seja, aceder
aos Tribunais é fácil, difícil é sair dos mesmos com uma decisão a tempo útil.
Por deparar-me com vários acórdãos em que ainda se faz alusão ao antigo ETAF, seria interessante analisar
a decisão que o STA tomou relativamente ao conflito e comparar a mesma acção se
fosse hoje intentada, tendo por base a matéria até agora leccionada.
Para a análise deste acórdão é
importante ter presente dois artigos do ETAF de 1984.
Nomeadamente o art. 4º,nº 1,
al. f) que afirmava que “questões de direito privado, ainda que qualquer das
partes seja pessoa de direito público” se encontravam fora do âmbito da
jurisdição administrativa. Por sua vez,
o art. 51º, nº 1, al. h) consagra o seguinte: “compete aos tribunais
administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do
Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por
prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”.
Vamos, resumidamente, expor a
matéria de facto deste acórdão (tal como se fosse um caso prático):
Trata-se de um litígio entre um
particular e o Município de Angra do Heroísmo, em que o primeiro pede a condenação do segundo no pagamento de
uma indemnização por prejuízos sofridos
devido a uma “construção e funcionamento de uma ETAR para tratamento de águas residuais,
danos morais e despesas geradas pela realização de um estudo”, ou seja, estamos
perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual por parte de uma
entidade pública.
Quid iuris antes e depois da
reforma?
O que está aqui em causa é
saber a quem compete apreciar o litígio, se a um tribunal administrativo ou se
a responsabilidade cabe aos tribunais judicias.
No caso concreto, quer o
Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, quer o Tribunal Central
Administrativo Sul declararam-se incompetentes para conhecimento da acção, por
isso, coube recurso para o STA.
De acordo com o antigo ETAF, e
com base no art. 4º, nº 1, al. f) constatamos que estamos perante a
problemática distinção entre a prática de um acto de gestão pública e de um
acto de gestão privada da administração, o que acarreta consequências ao nível
da propositura da acçâo, se em tribunais administrativos ou em tribunais judiciais.
Caso considerássemos que a
construção de uma ETAR se incluí na gestão privada da administração, a previsão
do art. 501º do Código Civil encontrar-se-ia preenchido e a acção seria intentada
nos tribunais judicias. Se estivéssemos perante um acto de gestão pública, seguir-se-ia
o regime do ETAF e os tribunais administrativos seriam os competentes para
dirimir o litígio.
Como distinguir entre uma
actuação pública ou privada da administração pública? Segue-se a definição que foi dada pelo
Tribunal de Conflitos[3]:
- “Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção”;
- “Actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado”.
É importante ter presente a Lei
nº 159/99, de 14 de Setembro, que estabelece, nos termos do art. 26º, nº 1, al.
b), a gestão de tratamento de águas residuais urbanas por parte dos municípios.
Consequentemente, por se tratar
de normas de direito público e estarmos perante a satisfação de um interesse
colectivo, face ao exposto, o STA declara que são competentes os tribunais
administrativos para apreciar a acção.
Depois
da reforma, a resposta mantêm-se?
Sabemos que
antes da reforma estávamos perante uma dualidade de jurisdições no que toca à responsabilidade
da administração consoante a qualificação do acto como sendo de gestão pública
ou privada.
Hoje isso já não se verifica.
Então, qual a solução adoptada pelo legislador em 2002? De acordo com o art. 4º,
nº 1, al. g) do novo ETAF, os tribunais administrativos são competentes para
julgar as acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas
de direito público. É indiferente se estamos perante uma actividade de gestão pública
ou privada, o que importa é a entidade pública contra a qual a acção é
proposta, independentemente do regime substantivo aplicável.
Assim, neste caso, aplicávamos
a lei relativa à responsabilidade civil do Estado e demais entidade públicas[4],
pois estamos perante uma relação jurídico-administrativa, nos termos do art. 1º,
nº 1 do ETAF e art. 212º, nº 3 da Constituição.
Pelo contrário, e abrindo aqui
uma sub-hipótese, se esta situação não tivesse em vista uma construção de uma
ETAR, mas sim, por exemplo, a celebração de um contrato que é regulado pelo
direito privado, não se afastava o âmbito administrativo da jurisdição e os
tribunais administrativos seriam competentes para conhecer do litígio, ou seja,
houve uma extensão do âmbito de jurisdição, e aqui reside a novidade do novo
ETAF.
Em suma, apesar da resposta
manter-se igual, a distinção que vigorava no regime anterior deixa de ser
relevante para a escolha da jurisdição competente, uma vez que, de acordo com o
art. 4º, nº 1, al. f), os tribunais administrativos apreciam sempre os litígios
que implicam um acto por parte entidade pública, independentemente da
responsabilidade em causa.
Helena dos Santos
Aluna nº 19623
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