quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Âmbito de jurisdição – análise de um Acórdão do STA de 22.04.2009, processo nº 0113/09


Muitos são os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que se pronunciam ainda sobre o antigo ETAF, de 1984[1]. É curioso constatar que ainda não se resolveram litígios cujos processos foram instaurados antes de 2004, tal como o acórdão em causa. Como é de conhecimento, o novo ETAF[2] apenas se aplica a conflitos que surgem após a sua entrada em vigor.  
É triste saber que estamos na Faculdade a aprender o contencioso administrativo e fiscal de hoje, para que depois, na prática, resolver segundo as regras não de ontem, mas sim de quase dez anos...  O “prazo razoável” a que o art. 2º, nº 1 do ETAF faz referência é bastante questionável, ou seja, aceder aos Tribunais é fácil, difícil é sair dos mesmos com uma decisão a tempo útil.
Por deparar-me com vários acórdãos em que ainda se faz alusão ao antigo ETAF, seria interessante analisar a decisão que o STA tomou relativamente ao conflito e comparar a mesma acção se fosse hoje intentada, tendo por base a matéria até agora leccionada.
Para a análise deste acórdão é importante ter presente dois artigos do ETAF de 1984.
Nomeadamente o art. 4º,nº 1, al. f) que afirmava que “questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público” se encontravam fora do âmbito da jurisdição administrativa.  Por sua vez, o art. 51º, nº 1, al. h) consagra o seguinte: “compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”.
Vamos, resumidamente, expor a matéria de facto deste acórdão (tal como se fosse um caso prático):
Trata-se de um litígio entre um particular e o Município de Angra do Heroísmo, em que o primeiro pede  a condenação do segundo no pagamento de uma  indemnização por prejuízos sofridos devido a uma “construção e funcionamento de uma ETAR para tratamento de águas residuais, danos morais e despesas geradas pela realização de um estudo”, ou seja, estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual por parte de uma entidade pública.
Quid iuris antes e depois da reforma?
O que está aqui em causa é saber a quem compete apreciar o litígio, se a um tribunal administrativo ou se a responsabilidade cabe aos tribunais judicias.
No caso concreto, quer o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, quer o Tribunal Central Administrativo Sul declararam-se incompetentes para conhecimento da acção, por isso, coube recurso para o STA.
De acordo com o antigo ETAF, e com base no art. 4º, nº 1, al. f) constatamos que estamos perante a problemática distinção entre a prática de um acto de gestão pública e de um acto de gestão privada da administração, o que acarreta consequências ao nível da propositura da acçâo, se em tribunais administrativos ou em tribunais judiciais.
Caso considerássemos que a construção de uma ETAR se incluí na gestão privada da administração, a previsão do art. 501º do Código Civil encontrar-se-ia preenchido e a acção seria intentada nos tribunais judicias. Se estivéssemos perante um acto de gestão pública, seguir-se-ia o regime do ETAF e os tribunais administrativos seriam os competentes para dirimir o litígio.
Como distinguir entre uma actuação pública ou privada da administração pública?  Segue-se a definição que foi dada pelo Tribunal de Conflitos[3]:
  •  “Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção”;

  •          “Actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado”.


É importante ter presente a Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, que estabelece, nos termos do art. 26º, nº 1, al. b), a gestão de tratamento de águas residuais urbanas por parte dos municípios.
Consequentemente, por se tratar de normas de direito público e estarmos perante a satisfação de um interesse colectivo, face ao exposto, o STA declara que são competentes os tribunais administrativos para apreciar a acção.
          Depois da reforma, a resposta mantêm-se? 
       Sabemos que antes da reforma estávamos perante uma dualidade de jurisdições no que toca à responsabilidade da administração consoante a qualificação do acto como sendo de gestão pública ou privada.
Hoje isso já não se verifica. Então, qual a solução adoptada pelo legislador em 2002? De acordo com o art. 4º, nº 1, al. g) do novo ETAF, os tribunais administrativos são competentes para julgar as acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público. É indiferente se estamos perante uma actividade de gestão pública ou privada, o que importa é a entidade pública contra a qual a acção é proposta, independentemente do regime substantivo aplicável.
Assim, neste caso, aplicávamos a lei relativa à responsabilidade civil do Estado e demais entidade públicas[4], pois estamos perante uma relação jurídico-administrativa, nos termos do art. 1º, nº 1 do ETAF e art. 212º, nº 3 da Constituição.
Pelo contrário, e abrindo aqui uma sub-hipótese, se esta situação não tivesse em vista uma construção de uma ETAR, mas sim, por exemplo, a celebração de um contrato que é regulado pelo direito privado, não se afastava o âmbito administrativo da jurisdição e os tribunais administrativos seriam competentes para conhecer do litígio, ou seja, houve uma extensão do âmbito de jurisdição, e aqui reside a novidade do novo ETAF.
Em suma, apesar da resposta manter-se igual, a distinção que vigorava no regime anterior deixa de ser relevante para a escolha da jurisdição competente, uma vez que, de acordo com o art. 4º, nº 1, al. f), os tribunais administrativos apreciam sempre os litígios que implicam um acto por parte entidade pública, independentemente da responsabilidade em causa.  


Helena dos Santos
            Aluna nº 19623


[1] Decreto-lei nº 129/84.
[2] Aprovado pela Lei nº 13/2002.
[3]  Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 04.04.2006, processo nº 8/03.
[4] Lei 67/2007.

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