(Re) nascimento dos Tribunais Administrativos
I. Enquadramento geral
A grande reforma
do contencioso administrativo de 2004 veio implementar medidas inovadoras e
estruturais no âmbito do contencioso administrativo. Perante esse conjunto de
mudanças destaco o facto de se criar uma ruptura com a ideia clássica e
limitada de matriz francesa, segundo o qual a administração teria uma razão
suprema. Esta mudança de paradigma é reafirmada pela introdução no nosso
contencioso de um mecanismo que permite condenar a administração à prática de
actos devidos, patente na secção II do CPTA - “condenação à prática do acto
devido” correspondente à acção administrativa especial e no título II na acção
administrativa comum art. 37 nº2 alínea c) - condenação à adopção ou abstenção
de um determinado comportamento.
Como refere
Alexandra Leitão in Cadernos de Justiça Administrativa,
temos que ter em atenção se o particular pretende obter um acto, sendo que aí a
acção administrativa é especial, ou se por seu turno uma conduta ou apreciação
material tendo por correspondência a acção administrativa comum. Feita a
advertência, pretendemos demonstrar que o juiz administrativo ganha agora
poderes de cariz condenatório, para condenar a administração a praticar ou a
abster-se, quer em relação a actos ou outros comportamentos. Todo este novo
sistema veio fazer (re)nascer uma força verdadeiramente judicial nos Tribunais
Administrativos.
II. Dupla consagração constitucional: garantia da tutela jurisdicional efectiva e
respeito pelo princípio da separação de poderes
1. Do ponto de vista
constitucional a permissão desta condenação surge em sequência dos artigos 20º
nº1 e 268 nº4 da Constituição da República Portuguesa, o que permite reforçar a
ideia de um contencioso de partes que garante uma tutela de jurisdição efectiva
e a consagração do Principio da separação de poderes. Esta consagração está patente
na nossa CRP desde 1997, contudo a sua efectiva concretização apenas é
garantida com a reforma do contencioso. Por um lado assistimos a uma
administração que recebe ordens de um tribunal, o que reforça a importância dos
Tribunais Administrativos e reforça a sua independência face à administração, por
outro lado surgem verdadeiros Tribunais Administrativos porque até então parecia
faltar um elemento no rol de poderes e competências do juiz administrativo, que
foi agora trazido em 2004, um poder condenatório e não um mero poder suspensivo.
O Princípio da separação de poderes não é posto em causa, existe um poder
condenatório e não um poder substitutivo, os Tribunais Administrativos condenam
a administração, não praticam actos que lhe pertencem. Afirma-se o princípio da
separação de poderes porque temos que atribuir à função administrativa o que é
decorrente da actividade administrativa e à função judicial o que é matéria da
função judicial.
III. Inspiração no sistema alemão
Do ponto de vista do direito
comparado, a Alemanha consagrou o “vornahmeklage” sob a influência de JELLINEK
demonstrando que a administração deveria ser tratada como um destinatário do
poder condenatório e condenada à prática de actos e comportamentos, hoje em dia
consagra também a “Unterlassungsklage”, acção de abstenção. O nosso
legislador na reforma, optou correctamente por um sistema que já havia sido
consagrado noutra ordem jurídica e fugiu ao direito administrativo francês de
cariz clássico em que se encara a administração como autoritária e irrepreensível.
Existe uma aproximação do plano substantivo ao plano processual, faça-se notar
que a administração de hoje é de cariz prestativo, não faz sentido ficarmos
presos ao passado longínquo em que se encara o contencioso como processo de
anulação.
IV. Condenação à prática de actos devidos
1.Do ponto de vista
processual existem três vertentes da acção condenatória: situações de omissão
67º nº1 alinea a) casos em que o particular
apresenta requerimento que constitui o órgão competente no dever de decidir;
actos de indeferimento art. 67º nº1 alínea a); e casos de recusa de apreciação art.67º nº1
alina c).
2.Sobrevivência do
Indeferimento tácito?
A figura do
indeferimento tácito prevista no art.109º do CPA desaparece, o juiz agora pode
condenar a administração porque não agiu, assim o acto de indeferimento não
produz efeitos e o particular não ficciona a produção desse efeito jurídico
negativo. Ocorre uma revogação tácita e parcial do preceito 109 do CPA,
solucionando uma lacuna até então existente na figura do indeferimento tácito.
A administração deve pronunciar-se sempre, respeitando o Principio da decisão
art. 9º do CPA, não podemos aderir a um sistema que pretende uma ficção da
prática de um acto de indeferimento, a administração existe para agir sendo a
sua última ratio a prossecução do interesse público. Para a grande maioria da
doutrina a norma do CPA é revogada, no entanto, o STA num acórdão de 24 de
Novembro de 2004 viria a consagrar “regimes especiais de indeferimento tácito”,
parece assim uma consagração indirecta do instituto jurídico, ainda que para
situações pontuais.
3.Quanto ao acto tácito
positivo art.108º do CPA, não assistimos a uma revogação pois passado o prazo
legal de resposta da administração de 90 dias e no âmbito das matérias do número
3 do mesmo artigo, existe a presunção legal de prática de um acto com conteúdo
favorável ao particular. Não podemos condenar a administração a praticar um
acto porque omitiu um comportamento ou se recusou a praticar um acto, em última
análise a sua inércia corresponde a uma manifestação positiva face à pretensão
do particular. O acto foi praticado ainda que de forma diversa da convencional,
o silêncio tem relevância jurídica ainda que de forma limitada, assinalamos a
necessidade da decorrência do prazo legal e do preenchimento de um dos
critérios materiais patentes no elenco do nº3 do art.108º.
V. Condenação à abstenção de um comportamento
Em
primeiro lugar é de notar a má escolha pelo legislador em integra-la na acção
administrativa comum art.37 nº2 alínea c), como refere Vasco Pereira da Silva
nas suas lições existe aqui uma má qualificação, devia pertencer à acção administrativa
especial. Segundo o critério que esteve na intenção do legislador, se o
particular pretende um acto ou um regulamento opta-se pelo processo especial, a contrario seria de acolher o processo
especial para os restantes casos. Parece que o legislador não considerou da
melhor forma a matéria de abstenção da prática de actos administrativos, em
coerência com o critério escolhido este seria direccionado para a acção
administrativa especial.
Existe aqui uma tutela preventiva
devido a uma ameaça de lesão ilegal de um direito do particular. A
administração é condenada a abster-se, existe uma obrigação de non facere pois a sua actuação
implicaria, segundo um juízo de razoabilidade, a lesão de um interesse
legalmente protegido do particular.
É de referir que não estamos no âmbito de um
procedimento cautelar, esta acção de abstenção pretende uma decisão de mérito e
não apenas uma tutela provisória, à semelhança do que acontece com a tutela
cautelar.
VI. Limites
O art.3 nº1 do CPTA
refere que os tribunais administrativos não podem tomar decisões pela
administração quando estas tenham natureza discricionária mas poderão
determinar áreas de vinculação, na opinião do senhor professor Marcelo Rebelo
de Sousa. A natureza de acto vinculado ou discricionário limita aqui o poder
decisório do juiz administrativo.
Outro dos limites já trabalhados é o acto
tácito positivo, perante a produção de efeitos deste acto a administração não
pode ser condenada a praticar o que já se efectiva, o particular não pode
recorrer aos tribunais administrativos se não tem um direito legalmente
protegido sob ameaça, sob pena de agir sem interesse processual.
VII. Considerações finais
Em forma de conclusão, é
importante referir o âmbito de soluções condenatórias que a reforma instaurou
no nosso contencioso administrativo e tributário, em primeiro lugar uma
sentença de condenação da administração a agir, em segundo lugar uma sentença
que condena à pratica do acto devido quando este tenha conteúdo vinculado e uma
sentença que condena a administração a substituir o acto ilegalmente praticado
por outro que não reincida nas ilegalidades cometidas. De outra perspectiva, os
poderes de condenação a uma abstenção, como se disse, apenas em caso de fundado
receio de lesar um direito do particular já existente.
Após esta exposição
conseguimos retirar algumas conclusões face a este mecanismo de cariz condenatório.
Só com a reforma e a consequente atribuição de poderes condenatórios ao juiz administrativo
é que existem verdadeiros tribunais administrativos, antes apenas
existiam instituições que não poderiam dizer como deveria a administração agir.
Ao contrário do que é defendido ou posto em causa pelos mais clássicos, esta
solução não viola o principio da separação de poderes, o juiz perante o litígio e a necessidade do particular ver tutelado o seu direito, não vai praticar um
acto substituindo a administração mas sim reafirmar e orientar a administração
para o fazer. Até então apenas existia uma tutela do particular de natureza
limitada ou incompleta, o recurso contencioso não traria efeitos para a tutela
da situação concreta, o particular via o acto anulado mas não via o seu direito
consagrado. É com o reforço dos poderes do juiz administrativo e com a
possibilidade de levar a administração a agir de acordo com o interesse público
que se efectiva um verdadeiro tribunal. O interesse público surge reforçado e
consagrado com este mecanismo condenatório. Com
a consagração do principio da tutela jurisdicional efectiva no plano
processual chegamos a uma plenitude de justiça administrativa, vai-se
mais além do que o mero reconhecimento do direito dos particulares e
concretiza-se esse mesmo direito. Todas as pessoas devem poder recorrer aos
tribunais quando os seus interesses ou direitos protegidos são ameaçados, só em
2004 os particulares detêm verdadeiramente essa tutela efectiva a titulo pleno.
No plano processual, o
juiz vê os seus direitos ampliados agora no âmbito da efectiva condenação da
administração, trata a administração como uma verdadeira parte o que permite
chegar à concretização e caracterização do nosso contencioso como um
contencioso de partes. Numa linha interpretativa e seguindo uma lógica
processual, se o juiz administrativo vê apenas com a reforma, nascer um amplo
mecanismo para poder decidir dos litígios com neutralidade e de forma a poder
condenar a administração, só com a reforma é que surgem os verdadeiros
tribunais administrativos. Agora, consegue-se julgar de forma criteriosa e
procurar a solução justa para o caso concreto, sem qualquer barreira inibitória
de pronúncia do juiz.
Bibliografia
- MARIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
2010
- VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no diva da
psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo
administrativo,
Coimbra
- Cadernos de justiça administrativa nº47 de 2004
Ana Filipa
Urbano
aluna nº19469
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