terça-feira, 23 de outubro de 2012

Condenação da Administração à abstenção/prática de comportamentos, prestações e actos devidos

(Re) nascimento dos Tribunais Administrativos

I. Enquadramento geral
A grande reforma do contencioso administrativo de 2004 veio implementar medidas inovadoras e estruturais no âmbito do contencioso administrativo. Perante esse conjunto de mudanças destaco o facto de se criar uma ruptura com a ideia clássica e limitada de matriz francesa, segundo o qual a administração teria uma razão suprema. Esta mudança de paradigma é reafirmada pela introdução no nosso contencioso de um mecanismo que permite condenar a administração à prática de actos devidos, patente na secção II do CPTA - “condenação à prática do acto devido” correspondente à acção administrativa especial e no título II na acção administrativa comum art. 37 nº2 alínea c) - condenação à adopção ou abstenção de um determinado comportamento.
Como refere Alexandra Leitão in Cadernos de Justiça Administrativa, temos que ter em atenção se o particular pretende obter um acto, sendo que aí a acção administrativa é especial, ou se por seu turno uma conduta ou apreciação material tendo por correspondência a acção administrativa comum. Feita a advertência, pretendemos demonstrar que o juiz administrativo ganha agora poderes de cariz condenatório, para condenar a administração a praticar ou a abster-se, quer em relação a actos ou outros comportamentos. Todo este novo sistema veio fazer (re)nascer uma força verdadeiramente judicial nos Tribunais Administrativos.

II. Dupla consagração constitucional: garantia da tutela jurisdicional efectiva e respeito pelo princípio da separação de poderes

1. Do ponto de vista constitucional a permissão desta condenação surge em sequência dos artigos 20º nº1 e 268 nº4 da Constituição da República Portuguesa, o que permite reforçar a ideia de um contencioso de partes que garante uma tutela de jurisdição efectiva e a consagração do Principio da separação de poderes. Esta consagração está patente na nossa CRP desde 1997, contudo a sua efectiva concretização apenas é garantida com a reforma do contencioso. Por um lado assistimos a uma administração que recebe ordens de um tribunal, o que reforça a importância dos Tribunais Administrativos e reforça a sua independência face à administração, por outro lado surgem verdadeiros Tribunais Administrativos porque até então parecia faltar um elemento no rol de poderes e competências do juiz administrativo, que foi agora trazido em 2004, um poder condenatório e não um mero poder suspensivo. O Princípio da separação de poderes não é posto em causa, existe um poder condenatório e não um poder substitutivo, os Tribunais Administrativos condenam a administração, não praticam actos que lhe pertencem. Afirma-se o princípio da separação de poderes porque temos que atribuir à função administrativa o que é decorrente da actividade administrativa e à função judicial o que é matéria da função judicial.
III. Inspiração no sistema alemão
Do ponto de vista do direito comparado, a Alemanha consagrou o “vornahmeklage” sob a influência de JELLINEK demonstrando que a administração deveria ser tratada como um destinatário do poder condenatório e condenada à prática de actos e comportamentos, hoje em dia consagra também a “Unterlassungsklage”, acção de abstenção. O nosso legislador na reforma, optou correctamente por um sistema que já havia sido consagrado noutra ordem jurídica e fugiu ao direito administrativo francês de cariz clássico em que se encara a administração como autoritária e irrepreensível. Existe uma aproximação do plano substantivo ao plano processual, faça-se notar que a administração de hoje é de cariz prestativo, não faz sentido ficarmos presos ao passado longínquo em que se encara o contencioso como processo de anulação.

IV. Condenação à prática de actos devidos
1.Do ponto de vista processual existem três vertentes da acção condenatória: situações de omissão 67º nº1 alinea a) casos em que o particular apresenta requerimento que constitui o órgão competente no dever de decidir; actos de indeferimento art. 67º nº1 alínea a);  e casos de recusa de apreciação art.67º nº1 alina c).
2.Sobrevivência do Indeferimento tácito?
A figura do indeferimento tácito prevista no art.109º do CPA desaparece, o juiz agora pode condenar a administração porque não agiu, assim o acto de indeferimento não produz efeitos e o particular não ficciona a produção desse efeito jurídico negativo. Ocorre uma revogação tácita e parcial do preceito 109 do CPA, solucionando uma lacuna até então existente na figura do indeferimento tácito. A administração deve pronunciar-se sempre, respeitando o Principio da decisão art. 9º do CPA, não podemos aderir a um sistema que pretende uma ficção da prática de um acto de indeferimento, a administração existe para agir sendo a sua última ratio a prossecução do interesse público. Para a grande maioria da doutrina a norma do CPA é revogada, no entanto, o STA num acórdão de 24 de Novembro de 2004 viria a consagrar “regimes especiais de indeferimento tácito”, parece assim uma consagração indirecta do instituto jurídico, ainda que para situações pontuais.
3.Quanto ao acto tácito positivo art.108º do CPA, não assistimos a uma revogação pois passado o prazo legal de resposta da administração de 90 dias e no âmbito das matérias do número 3 do mesmo artigo, existe a presunção legal de prática de um acto com conteúdo favorável ao particular. Não podemos condenar a administração a praticar um acto porque omitiu um comportamento ou se recusou a praticar um acto, em última análise a sua inércia corresponde a uma manifestação positiva face à pretensão do particular. O acto foi praticado ainda que de forma diversa da convencional, o silêncio tem relevância jurídica ainda que de forma limitada, assinalamos a necessidade da decorrência do prazo legal e do preenchimento de um dos critérios materiais patentes no elenco do nº3 do art.108º.
V. Condenação à abstenção de um comportamento
            Em primeiro lugar é de notar a má escolha pelo legislador em integra-la na acção administrativa comum art.37 nº2 alínea c), como refere Vasco Pereira da Silva nas suas lições existe aqui uma má qualificação, devia pertencer à acção administrativa especial. Segundo o critério que esteve na intenção do legislador, se o particular pretende um acto ou um regulamento opta-se pelo processo especial, a contrario seria de acolher o processo especial para os restantes casos. Parece que o legislador não considerou da melhor forma a matéria de abstenção da prática de actos administrativos, em coerência com o critério escolhido este seria direccionado para a acção administrativa especial.
Existe aqui uma tutela preventiva devido a uma ameaça de lesão ilegal de um direito do particular. A administração é condenada a abster-se, existe uma obrigação de non facere pois a sua actuação implicaria, segundo um juízo de razoabilidade, a lesão de um interesse legalmente protegido do particular.
É de referir que não estamos no âmbito de um procedimento cautelar, esta acção de abstenção pretende uma decisão de mérito e não apenas uma tutela provisória, à semelhança do que acontece com a tutela cautelar.

VI. Limites
O art.3 nº1 do CPTA refere que os tribunais administrativos não podem tomar decisões pela administração quando estas tenham natureza discricionária mas poderão determinar áreas de vinculação, na opinião do senhor professor Marcelo Rebelo de Sousa. A natureza de acto vinculado ou discricionário limita aqui o poder decisório do juiz administrativo.
 Outro dos limites já trabalhados é o acto tácito positivo, perante a produção de efeitos deste acto a administração não pode ser condenada a praticar o que já se efectiva, o particular não pode recorrer aos tribunais administrativos se não tem um direito legalmente protegido sob ameaça, sob pena de agir sem interesse processual.

VII. Considerações finais
Em forma de conclusão, é importante referir o âmbito de soluções condenatórias que a reforma instaurou no nosso contencioso administrativo e tributário, em primeiro lugar uma sentença de condenação da administração a agir, em segundo lugar uma sentença que condena à pratica do acto devido quando este tenha conteúdo vinculado e uma sentença que condena a administração a substituir o acto ilegalmente praticado por outro que não reincida nas ilegalidades cometidas. De outra perspectiva, os poderes de condenação a uma abstenção, como se disse, apenas em caso de fundado receio de lesar um direito do particular já existente.
Após esta exposição conseguimos retirar algumas conclusões face a este mecanismo de cariz condenatório. Só com a reforma e a consequente atribuição de poderes condenatórios ao juiz administrativo é que existem verdadeiros tribunais administrativos, antes apenas existiam instituições que não poderiam dizer como deveria a administração agir. Ao contrário do que é defendido ou posto em causa pelos mais clássicos, esta solução não viola o principio da separação de poderes, o juiz perante o litígio e a necessidade do particular ver tutelado o seu direito, não vai praticar um acto substituindo a administração mas sim reafirmar e orientar a administração para o fazer. Até então apenas existia uma tutela do particular de natureza limitada ou incompleta, o recurso contencioso não traria efeitos para a tutela da situação concreta, o particular via o acto anulado mas não via o seu direito consagrado. É com o reforço dos poderes do juiz administrativo e com a possibilidade de levar a administração a agir de acordo com o interesse público que se efectiva um verdadeiro tribunal. O interesse público surge reforçado e consagrado com este mecanismo condenatório. Com  a consagração do principio da tutela jurisdicional efectiva no plano processual chegamos a uma plenitude de justiça administrativa, vai-se mais além do que o mero reconhecimento do direito dos particulares e concretiza-se esse mesmo direito. Todas as pessoas devem poder recorrer aos tribunais quando os seus interesses ou direitos protegidos são ameaçados, só em 2004 os particulares detêm  verdadeiramente essa tutela efectiva a titulo pleno.
No plano processual, o juiz vê os seus direitos ampliados agora no âmbito da efectiva condenação da administração, trata a administração como uma verdadeira parte o que permite chegar à concretização e caracterização do nosso contencioso como um contencioso de partes. Numa linha interpretativa e seguindo uma lógica processual, se o juiz administrativo vê apenas com a reforma, nascer um amplo mecanismo para poder decidir dos litígios com neutralidade e de forma a poder condenar a administração, só com a reforma é que surgem os verdadeiros tribunais administrativos. Agora, consegue-se julgar de forma criteriosa e procurar a solução justa para o caso concreto, sem qualquer barreira inibitória de pronúncia do juiz.

Bibliografia
- MARIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
2010
- VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no diva da
psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo,
Coimbra
- Cadernos de justiça administrativa nº47 de 2004

Ana Filipa Urbano 
aluna nº19469

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