quarta-feira, 31 de outubro de 2012


O objecto do processo administrativo

Em todos os processos o objecto é um elemento essencial e fundamental, pois é a partir dele que se definem quais as relações jurídicas e quais os direitos que se pretendem tutelar através de uma sentença.
A questão de saber em que consiste o objecto do processo é sempre muito discutida pela doutrina. Porque se não houver um objecto definido a ligação entre a relação jurídica material e a relação jurídico processual não está assegurada e não sabemos  quais são  os aspectos da relação jurídica substantiva que existem entre as partes que são trazidos a juízo  A questão coloca-se em saber se o objecto é determinado por todas as questões que foram levadas a tribunal sem terem de respeitar as pretensões do autor, ou se em vez disso o que importa realmente  são as pretensões do autor. Ou em ultimo caso se podem ser as duas hipóteses possíveis e aceites pela doutrina na fixação do objecto processual do contencioso administrativo.
Para muitos dos autores o objecto do processo administrativo é identificado a partir das pretensões formuladas pelo autor, que se identificam pelo pedido e pela causa de pedir. Identificando-se assim o objecto através dos factos que se reportam ás questões submetidas a julgamento pelo Tribunal Administrativo.  Para o professor Vasco Pereira da Silva é fundamental que na identificação do objecto processual se atente à ligação do pedido e da causa de pedir, tendo de haver uma conexão entre as duas. O mesmo chega a dizer que  “é a relação material entre as partes que entra no processo através da alegação de um direito subjectivo”.  A meu ver fazendo esta afirmação todo o sentido, porque se nos dias de hoje e no actual contencioso administrativo  este tem como objectivo principal a defesa dos particulares e a tutela dos seus direitos, logo é suposto que o objecto do mesmo seja a pretensão feita pelo autor. Onde se revela uma relação material controvertida entre as partes existindo uma alegação com o intuito de proteger um direito subjectivo, sendo revelada pelo pedido  pela causa de pedir havendo uma ligação entre os dois.
Actualmente podem ser deduzidos todos os tipos de pretensões perante os tribunais administrativos, tendo apenas como limite mínimo que sejam de âmbito administrativo (artigo 2º/1 CPTA). Podem ainda haver pedidos cumulados, onde os diferentes tipos de pretensões podem ser deduzidos perante os tribunais administrativos  Ou seja, podem ser deduzidos em conjunto no âmbito de um só processo ( princípio da livre cumulabilidade de pedidos) . Contudo apenas se existir uma conexão entre esses pedidos e se os pedidos estiverem numa relação de prejudicialidade e dependência entre si (artigo 4ºCPTA) . O interessado é assim livre de optar pela cumulação.
Nem sempre o que se estabeleceu acima quanto ao objecto do processo foi assim. O Contencioso Administrativo tradicional, definia o objecto do processo através de uma perspectiva dualista. Nesta perspectiva tínhamos duas hipóteses:  um contencioso das acções (contratos, responsabilidade civil...) onde se admitia que os direitos subjectivos alegados pudessem constituir o objecto do litígio  E um contencioso de anulação, que tinha por objecto o acto administrativo. Contudo era uma dualidade aparente, porque na realidade a doutrina clássica dava primazia à discussão sobre a questão do objecto do contencioso de anulação. Havendo uma sobrevalorização do pedido chegando-se ao ponto de se confundir este com o objecto do processo.
A reforma acabou com as perspectivas dualistas e trouxe consigo uma plenitude de poderes que foram atribuídos ao juiz administrativo. Poderes estes necessários à tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares. Consagrou-se a partir daqui um modelo constitucional do Contencioso Administrativo, tornando-se este jurisdicionalizado e constitucionalizado (artigo 212º/3 CRP).  Onde se estabeleceu que a todos os direitos ou interesses legalmente protegidos corresponde a tutela adequada  junto dos tribunais  administrativos ( artigo 2º/2 CPA). Estando deste modo os direitos dos particulares no centro do processo e tendo o objecto que se basear  na defesa  dos mesmo. Sendo assim tuteláveis todos os direitos e admitidos todos os pedidos. Acabou a ideia de que o particular não era  titular de nenhuma situação jurídica subjectiva relativa á administração e de que o processo administrativo era uma forma de auto-controlo administrativo  em que era o particular que estava ao serviço da administração e não o contrário. O particular só podia actuar em defesa de um interesse público.
Hoje é o objecto do contencioso administrativo que vai estabelecer qual o tipo de de acção que o tribunal vai julgar. Tal como defende o Professor Mário Aroso de Almeida a partir do objecto podemos dizer que as acções têm três finalidades. Pode o particular pretender uma sentença de simples apreciação, para a obtenção de uma declaração sobre a existência ou não de um direito ou de uma situação jurídica  Este tipo de sentenças declarativas estão expressamente reconhecidas no artigo 39º do CPTA. Pode em segundo lugar, o particular pretender uma sentença condenatória, onde se pede o reconhecimento de uma situação jurídica á qual se submete o devedor á possibilidade de vir a ser executado se não cumprir o estipulado nessa sentença. As sentenças condenatórias estão expressas por exemplo no 37º/3 CPTA, 44º CPTA e 66ºCPTA. E em terceiro e ultimo lugar o particular pode ainda pedir uma sentença constitutiva, onde a sentença reconhece um novo efeito ou direito.
Concluindo o Contencioso Administrativo transformou-se num contencioso de plena jurisdição, tendo-se afastado a visão restritiva do objecto do processo e tendo-se passado a adoptar uma visão mais ampla. Havendo assim uma prevalência do direito invocado pelo particular.

                                                                                                  
                                                                                                     Mónica Padeiro Aluna nº: 16959


Bibliografia: Silva, Vasco Pereira da – O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, Alemdina, 2ª Edição, 2009, ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Edições Almedina, Outubro de 2010. Andrade, Vieira de «A Justiça Administrativa (Lições)», 11ª edição, Almedina, Coimbra, 2011

EUROPEIZAÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

  É hoje inegável que o Direito Administrativo, incluindo a sua vertente processual, assim como outros ramos de Direito, sofre forte influência do Direito Europeu, tendo vindo a intensificar-se recentemente. O Prof. Fausto de Quadros chega mesmo a considerar adequada a palavra "penetração" para realçar tão grande impacto.

   Segundo a divisão feita pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, a europeização do Contencioso Administrativo encontra-se temporalmente inserida nos finais do séc. XX e inícios do séc. XXI. Precedida pelo período da constitucionalização (décadas de 70 e 80), ambos os fenómenos constituem a fase do "crisma" ou da "confirmação" do referido contencioso.

   A europeização é complexa, compreendendo e definindo-se como a conjunção e interacção de dois fenómenos principais: o surgimento de fontes europeias relevantes em matérias de Contencioso Administrativo e a crescente convergência das legislações nacionais.

  Historicamente, foram os princípios jurídico-administrativos dos Direitos Administrativos nacionais a contribuir para a criação e dando forma ao chamado Direito Administrativo Europeu. Actualmente os papéis estão invertidos, decorrendo uma "revolução silenciosa" na qual os Direitos Administrativos nacionais estão a ser harmonizados e havendo um reforço do grau de exigência no que respeita à protecção dos administrados. Existe portanto uma convergência dinâmica vertical a que Miguel Prata Roque, recorrendo a uma metáfora, apelida especificamente de "efeito boomerang
" pois os princípios de Direito Administrativo comuns aos Estados-membros, depois de "lançados", regressam agora com mais velocidade, ou seja, transformados e aperfeiçoados. Sobre este ponto, o Prof. Vasco Pereira da Silva estabelece uma dupla dependência, sendo a primeira uma "dependência administrativa do Direito Europeu", uma vez que "(...) o Direito Europeu só se realiza através do Direito Administrativo (...)" e esta concretização é feita por "(...) normas, instituições e formas de actuação de Direito Administrativo, ao nível de cada um dos Estados que integram a União", e a segunda uma "dependência europeia do Direito Administrativo" já que "(...) o Direito Administrativo é cada vez mais Direito Europeu, (...) pela multiplicidade de fontes europeias relevantes no domínio jurídico-administrativo (...)".

  Ainda para este Professor, o aspecto do fenómeno de europeização é especialmente visível no âmbito do Processo Administrativo uma vez que, no que respeita ao nível europeu do Direito e Processo Administrativos, ambos andam intimamente ligados e têm na jurisprudência a principal fonte das normas substantivas e que resultam da "colaboração criadora" do Tribunal de Justiça da União Europeia com os tribunais nacionais, havendo então um Direito do Procedimento Administrativo Europeu. Relativamente às regras de procedimento e de processo administrativos, estas têm vindo a autonomizar-se das regras substantivas e a adquirir importância quer ao nível das fontes comunitárias quer nacionais, dando origem à europeização e convergência dos sistemas processuais dos Estados-membros, patente nas recentes reformas do Processo Administrativo. Aqui volta a haver nova dualidade de dependências, mas desta vez mais concretamente, "dependência processual administrativa do Direito Europeu" e "dependência europeia do Processo Administrativo".

  O Direito do Procedimento Administrativo Europeu contém "regras comuns", quer de fonte legislativa quer de fonte jurisprudencial, nomeadamente, a consagração de um princípio de "plenitude da competência do juiz nacional na sua qualidade de juiz comunitário" que vale tanto para os pedidos cautelares como para os principais, isto é, o juiz tem plena jurisdição e tal permite a criação de novos meios processuais, quando eles não existam ou sejam insuficientes, constituindo assim um dos mais importantes instrumentos da europeização; e o regime jurídico da tutela cautelar europeia em matéria de contratos públicos que vem complementar as regras substantivas.

  Uma das regras que suscitou maiores questões é a afirmação de uma dimensão europeia do direito à tutela judicial efectiva, pelo Tribunal de Justiça, ao pôr em causa o efeito preclusivo do direito de acção contra as autoridades públicas, constante de legislação nacional, quando exista incompatibilidade entre o Direito Europeu e o Direito Estadual, e ao conferir aos tribunais nacionais poderes de conhecimento oficioso desses casos. Tomando como referência o caso Foto-Frost*, pode acontecer que num tribunal administrativo nacional seja invocada a invalidade de um acto ou norma de Direito Europeu. O juiz nacional não tem competência para declarar a nulidade ou anular esse acto dado o princípio da separação entre a jurisdição nacional e a europeia mas se pelo menos tiver dúvidas sobre ela e entender que a resposta é condição da boa resolução do litígio então está obrigado, mesmo que da sentença do tribunal em causa caiba recurso jurisdicional no âmbito do direito interno, a suscitar perante o TJ a questão prejudicial de apreciação de invalidade do acto de Direito Europeu. Apesar de não estar expressamente previsto no Tratado os Estados-membros seguem-no pacificamente.

  A outra regra é relativa ao regime da responsabilidade civil extra-contratual dos poderes públicos, de acordo com o "princípio segundo o qual os Estados-membros são obrigados a indemnizar os danos causados aos indivíduos pela violação do Direito Comunitário, que lhes são imputáveis", a qual, por sua vez, fundamenta-se nos princípios constitucionais gerais da "plena eficácia das normas comunitárias" e da tutela efectiva dos direitos dos particulares. Foram afirmados pela primeira vez no caso Francovich os pressupostos da responsabilidade extra-contratual nesta situação. Para se efectivar a responsabilização do órgão ou do agente do Estado exigia-se: a ilicitude do seu comportamento (por actos legislativos, administrativos ou jurisdicionais); a violação de uma regra de Direito que proteja os direitos dos particulares; que esta violação fosse suficientemente grave e manifesta; que daí tenha resultado dano (certo, suscetível de ser avaliado pecuniariamente e emergente ou de lucro cessante); exigindo-se um nexo de causalidade entre o prejuízo e o comportamento que o provocou.

  Em termos de princípios e ligada a estas "regras comuns", levanta-se uma questão pertinente sobre o princípio da igualdade. Não pode haver , no sistema jurídico interno, domínios menos favoráveis ao particular por força de Direito de fonte interna do que outras áreas com fonte no Direito Europeu. Assim, por exemplo, porque para o Direito Europeu o critério da reparação para a efectivação da responsabilidade extra-contratual do Estado por incumprimento daquele Direito é o da reposição da situação hipotética actual, o mesmo deve ser o critério para a efectivação da responsabilidade extra-contratual do Estado por violação de Direito de fonte estritamente interna. Solução diferente desta traduzir-se-ia numa discriminação negativa quando se aplicasse o Direito de fonte interna e poderia assumir a forma de uma discriminação de nacionais quanto a não-nacionais.

   Cabe agora perceber a convergência dinâmica horizontal.
 
  Se o Prof. Vasco Pereira da Silva propõe-se a analisar a psicanálise do contencioso administrativo e refere o "comparatismo entre sistemas" ou "comparatismo das soluções jurídicas" que, segundo ele, potencia a "mestiçagem jurídica", Miguel Prata Roque estabelece um consultório de infecciologia e refere um "efeito de contágio", que levou a que cada um dos Direitos Administrativos nacionais se influenciasse reciprocamente devido a um "vírus extremamente mutável e transmissível". Segundo este último autor, à medida que os Estado-membros vão entrando em contacto com sistemas administrativos já contagiados, acabam por adquiri-lo, ainda que aquele venha a sofrer mutações decorrentes das especificidades do Direito Administrativo nacional infectado.

  A europeização do Contencioso Administrativo francês conduziu à implementação de um sistema jurisdicionalizado e vocacionado para a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, superando assim os últimos resquícios das "experiências traumáticas da juventude".

   Na Alemanha, tal não obrigou a grandes mudanças sistemáticas, sendo aliás, considerado um sistema "exemplar", mas tal não impediu que houvesse um choque naquilo que respeita à protecção dos direitos dos particulares, designadamente em sede de tutela cautelar.

  No Reino Unido, assiste-se a uma influência decisiva do Direito Europeu no Direito Administrativo, sendo os princípios europeus mais facilmente aceites como modelo e assim incorporizados. Um dos domínios em que é notória essa influência é no que concerne á organização do sistema de garantias dos particulares.

   Em Portugal, até 2004, havia um "défice de europeização", solucionado com a Reforma que entrou em vigor nesse mesmo ano e da qual resultou um Processo Administrativo que concretiza de forma adequada o modelo europeu de uma Justiça Administrativa plenamente jurisdicionalizada e efectiva dos direitos dos particulares.

   A europeização do Contencioso Administrativo não pretende nem leva à destruição ou ao desaparecimento das especificidades dos Direitos nacionais nem da sua soberania, assim como a convergência não pressupõe uma similitude integral entre cada um dos sistemas administrativos dos Estados-membros, antes vivendo da sua multiplicidade e heterogeneidade, até porque ainda que a União Europeia tenha legitimidade para adoptar actos jurídicos destinados a fazer confluir os diversos sistemas administrativos nacionais, as opções quanto ao grau de intervenção variam significativamente. Atendendo à evolução dos acontecimentos, já não se falará apenas de uma europeização, mas do surgimento de um Direito Administrativo Global.
 
 *Acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1987. – FOTO-FROST contra HAUPTZOLLAMT LUEBECK- OST. – pedido de decisão prejudicial apreciado pelo Finanzgericht Hamburg. – Incompetência dos tribunais nacionais para declararem a invalidade dos actos comunitários – Processo 314/85.

Bibliografia
· SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, págs.106 a 150.

· QUADROS, Fausto de, A europeização do Contencioso Administrativo, 2006.

. ROQUE, Miguel Prata, O Direito Administrativo Europeu, 2010.
 
 
Frederico F. F. Soares Nº 17292
Escrito em desacordo com as regras do novo acordo ortográfico

A (ir)relevância do tipo de gestão, no âmbito da Responsabilidade Civil da Administração Pública




Sendo certo que a Administração Pública é quem desempenha a Função Administrativa, esta competência manifesta-se nas mais diversas formas. Independentemente de se tratar de um regulamento, de um acto administrativo, de um contrato administrativo ou de qualquer outra manifestação de poder público administrativo, estes actos têm sempre uma particularidade em comum, vital para este nosso âmbito. Todas estas demonstrações de poder público são susceptíveis de lesar a esfera jurídica de particulares, no decorrer da concretização prática da Função Administrativa. É neste plano que se projecta o conceito de responsabilidade civil pública.
O contencioso da responsabilidade civil pública foi desde os seus primórdios algo nebuloso de apurar, com base nos mais variados motivos. No âmbito deste curto ensaio, será enfatizado o papel da actuação de gestão quer privada, quer pública, para efeitos de responsabilização das Entidades Públicas perante os particulares. Adiantando um conceito minimalista para identificar a responsabilidade civil pública, podemos defini-la como uma obrigação jurídica, que tem como alvo um ente colectivo público e implica que este indemnize o sujeito lesado pelos danos causados no exercício da função administrativa.
Este tipo de contencioso tem uma enorme relevância nos mais diversos âmbitos. Se num nível científico mais estrito ele foi um dos alicerces na construção do Direito Administrativo, num plano mais amplo, o contencioso da responsabilidade civil pública faz sentir a sua importância no nosso quotidiano. Isto porque a responsabilidade civil das entidades do Estado está intrinsecamente ligada à própria concepção de Estado de Direito. Tal reflexo está projectado na Constituição da República Portuguesa, à luz do artigo 22º e no âmbito dos direitos fundamentais.
Foi uma matéria deixada na sombra pela reforma do contencioso português, no ano de 2004. A responsabilidade civil do estado, ainda integrou a proposta de Lei nº95/VIII relativa ao Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado. Porém, em Novembro de 2001, a Assembleia da República ao discutir e aprovar na generalidade as propostas legislativas, resolveu deixar convenientemente pelo caminho, o diploma regulador da responsabilidade civil da administração pública. Escusado será referir a importância extrema que este teria no plano renovador.
De facto só em 31 de Dezembro de 2007, por meio da Lei nº67/07, entrou em vigor no território português, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. De sublinhar que este diploma não procurou harmonizar-se com a teleologia reformista da Justiça Administrativa, preconizada em 2004. Não foi desta forma a resposta esperada para a turbulência sentida neste âmbito.
Rumo ao objectivo proposto, entramos nas densas águas da dualidade do contencioso da responsabilidade civil das entidades públicas. Foi um marco persistente nesta matéria e de difíceis avanços no sentido de uma unidade no contencioso. Esta dualidade prende-se directamente com a actuação de gestão pública ou privada, por parte do Estado. Para a compreendermos, impõe-se um recuo no tempo, até aos primórdios do Direito Administrativo.
Remontando ao ano de 1873, devemos obrigatoriamente analisar o Acórdão Blanco, da autoria do Tribunal de Conflitos Francês, publicado no dia 8 de Janeiro. Iremos desta forma levantar o véu sobre o cerne deste ensaio. A decisão em causa foi vital no plano Administrativo, especialmente ao proclamar este tipo de Direito, como um ramo autónomo. Porém, é de lamentar que o fez pelas piores condições e motivos. Fê-lo no intuito de limitar a responsabilidade da Administração Pública perante o óbito de uma criança. A menina em causa era Agnès Blanco e tinha sido vítima de um atropelamento fatal, por parte de um vagão, ao serviço de uma empresa pública de tabaco sediada em Bordéus. Os seus pais depararam-se com uma confusa batalha judicial, no âmbito de indemnização por gestão danosa do Estado, não sabendo quais os tribunais competentes para tal efeito ou sequer a legislação aplicável. Uma dúvida que se alastrava também à doutrina da época. O Direito Administrativo surge assim, não para garantir a protecção efectiva dos particulares, mas sim para garantir a primazia da Administração Pública.
Em Portugal, no período anterior à reforma de 2004, inúmeras situações análogas à de Agnès Blanco reproduziram-se nos nossos Tribunais ao longo do tempo. Acontecia que, perante uma actuação administrativa danosa, se o particular reclamasse a correspondente indemnização num Tribunal Judicial, este declarar-se-ia incompetente para apreciar a questão. Alegaria como base da sua posição, estar em causa um acto de Gestão Pública, o qual não integra o âmbito de aplicação do Código Civil. Malograda tal tentativa, não seria de admirar que o sujeito lesado pelo acto supra referido, prosseguisse o seu intuito desta vez no Tribunal Administrativo. Eis que um “dejá vú” contencioso atormenta o sujeito queixoso. No fundo, este vê o Tribunal mudar, mas a declaração de incompetência repete-se. Desta vez, é o tribunal Administrativo quem vem deitar por terra as pretensões de Justiça do ofendido, numa declaração análoga à do Tribunal Judicial. Defende ainda, que a administração danosa em causa é uma actividade de Gestão Privada e como tal, é do âmbito das relações entre particulares, tuteladas pelo Código Civil.
Face a esta incógnita ao nível da competência e do direito aplicável a matérias relacionadas com actuações danosas por parte de entidades públicas, só o Tribunal de Conflitos veio dar paz a todas as “famílias Blanco”. Foram inúmeros os casos de pessoas que tanto batalharam ao longo do tempo, pela persecução de Justiça em Portugal e noutros países europeus como França.
É doutrinalmente pacífico que, após a decisão do tribunal de Conflitos e até à reforma de 2004, assistíamos a uma dualidade de critérios, nos mais variados níveis. Refira-se que se a Administração causasse danos, no âmbito de uma Gestão Privada, ela respondia à luz do Direito Civil e em sede de Tribunal Judicial. Se por outro lado, o dano fosse causado a certo sujeito, no exercício de actividades de Gestão Pública, ela respondia sob a égide do Direito Administrativo, perante Tribunais Administrativos.
Fica patente a fragmentação inerente a uma dualidade de regimes jurídicos e tribunais competentes. Prejudicando directamente os cidadãos e suas garantias. É um sistema despromovido de lógica, especialmente porque a distinção entre Gestão Pública e Privada há muito tempo perdera sustentabilidade no âmbito da responsabilidade que aqui analisamos. Foi a Jurisprudência quem deu o primeiro passo no sentido de uma inovação prática. Deixou de lado o tipo de gestão em causa, em detrimento de um conceito mais amplo e preciso para a multiplicidade de casos em concreto. Esse conceito apurador de responsabilidade das entidades públicas, foi tão-somente a susceptibilidade do acto que produz lesão a outrem, se introduzir ou não no âmbito da Função Administrativa.
A dualidade é finalmente posta de lado, num processo lógico de uniformização do Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Pública. O “ambiente” de Função Administrativa vem assim por termo a um sistema injusto, dotado de uma bicefalia difícil de definir a todos os níveis e que por várias vezes se traduziu numa denegação de justiça. Uma grave restrição à protecção plena e efectiva dos particulares. Algo que assume em certos casos, o cariz de direito fundamental, constitucionalmente protegido.
Ressalva feita a que a dualidade legislativa manteve-se até à entrada em vigor da Lei nº 67/2007, mesmo perante um cenário de unidade jurisdicional. A Lei supra referida, vem introduzir um novo regime de responsabilidade civil pública.
Refira-se ainda que, no âmbito da jurisdição administrativa a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais é fixada com base nas relações jurídicas em causa. Num plano prático, é de referir o artigo 212, nº3 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 1º, nº1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e por fim o artigo 4º também ele do ETAF. São ambos sinónimos da referida união jurisdicional, que pôs termo à dualidade entre os dois tipos de gestão e seus reflexos processuais. Desta forma, todo o contencioso da responsabilidade civil pública, passa a ser da competência dos Tribunais Administrativos.

Gonçalo A. A. Mata de Castro Lousada
N.17297



Bibliografia:
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Ed. Almedina, 2009
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo como Direito Concretizado ou “Ainda por Concretizar”?, Almedina,1999
FREITAS DO AMARAL, Diogo, Direito Administrativo – Volume III
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos Preparatórios da Reforma, Coimbra Editora, 2002



O Pressuposto Processual Legitimidade: Situação Jurídica dos Contra-Interessados

Considerações Iniciais
Dos primórdios do estudo científico do Direito Administrativo, a partir do último quarto do século XIX até às décadas de 70 e 80 do século passado, a Administração foi vista, sobretudo, como poder. Poder esse, que por um lado era preciso limitar para que os direitos subjectivos públicos ou os interesses legítimos dos particulares se tornassem possíveis, mas que por outro, não deveria ter demasiados entraves na prossecução do interesse publico, que lhe cabia realizar. A construção científica que o sistematizava traduzia um compromisso entre as prerrogativas da Administração como “potentior persona” e as liberdades do cidadão.

Muitos publicistas portugueses, na esteira dos fundadores franceses, alemães e italianos colocaram pedras angulares na construção processada até então. O interesse público, estruturado como entidade homogénea de natureza superior aos interesses dos particulares, bem como o acto administrativo, tido como manifestação da vontade autoritária reguladora dos destinatários, deram lugar a uma dessacralização do interesse público. Bem como os direitos fundamentais, na sua dupla dimensão objectiva (institucional e de verdadeiros direitos subjectivos – para alguns autores) eliminaram definitivamente a concepção de particulares como súbditos, objecto do poder estadual, e contribuíram também para dar relevo aos terceiros.
Em Portugal, a Constituição de 1976, com o estatuto que atribuíu aos direitos, liberdades e garantias, e mais tarde com o desenvolvimento processado nesta matéria pelo Código do Procedimento Administrativo, abandonou-se o modelo administrativo de tipo francês, que enfileirávamos desde a legislação de Mouzinho da Silveira, e aproximámo-nos do germânico.
Paradigma do novo Direito administrativo, sobretudo em domínios do ambiente, urbanismo, consumo e cultura são as relações jurídicas multilaterais. Actualmente, as relações jurídicas relacionadas com o exercício de poderes de autoridade por parte da Administração são frequentemente complexas, isto é, multipolares, pressupondo um conjunto alargado de pessoas cujos interesses são afectados pela actuação, num sentido ou noutro da Admininstração.
Assim, surgem situações, em casos concretos, em que existem interessados que pretendem a anulação de um acto administrativo que consideram ilegal ou a prática de um acto administrativo que consideram devido, e é normal que existam interessados, que sendo beneficiários do acto ilegal ou podendo ser afectados pelo acto devido, tenham interesse em que ele não seja anulado, e pelo contrário que se mantenha na ordem jurídica, ou que ele não seja praticado. É esta a situação que se analisará em seguida: os contra-interessados.

Impõe-se a tomada de atenção para esta questão, uma vez que, o autor, se conhecer, tem de determinar os sujeitos passivos do litisconsórcio necessário passivo, logo no momento da propositura da acção, sob pena de ilegitimidade com consequências gravosas (78º/2,f); 81º/1; 89º/1,f); 155/2).

Situação Jurídica dos Contra-Interessados
Em primeiro lugar, referir que é uma categoria expressamente prevista nos artigos 10.º n.º1, 57.º e 68.º n.º2 do CPTA.
O artigo 10.º, n.º1 tem o cuidado de fazer referência à eventual necessidade de a acção não ser apenas proposta “contra a outra parte na relação material controvertida”, mas também “quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos ao do autor”.
Já, da combinação dos outros dois artigos, uma vez que os dois artigos caracterizam os contra-interessados do mesmo modo, poderá retirar-se que se trata dos sujeitos a quem a procedência da acção possa prejudicar ou que tenham interesse na manutenção da situação contra a qual se insurge o autor, e que possam ser identificadas em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.
Quanto à inserção sistemática do tratamento desta matéria nestes dois últimos artigos, considera-se muito pertinente, uma vez que é tratada tal categoria a propósito da impugnação de actos administrativos e da condenação à prática desse tipo de actos. Isto porque tratam-se de domínios, em que a acção é proposta contra a Administração, contra a entidade que praticou/omitiu/recusou o acto administrativo, mas em que existem sujeitos que também são partes no litígio, na medida em que os seus interesses coincidem com os da Administração e possam ser directamente afectados na sua consistência jurídica, com a procedência de tal acção. Daí a especificidade, fase à previsão genérica do art. 10º. E por outro lado, atenta-se também à presença do propósito de objectivizar a operação de delimitação do universo dos titulares aqui em causa.
Os contra-interessados são verdadeiras partes no litígio, e para o efeito devem ser demandados em juízo, em situação de litisconsórcio necessário passivo (unitário) com a entidade pública, em virtude da existência do programa da norma que ‘une’ as posições matérias de autor e de réu.
Assim, torna-se conveniente lembrar que o objecto destes processos não se define por referência às situações subjectivas dos contra-interessados, mas à posição em que a Administração se encontra colocada, no quadro do exercício dos seus poderes de autoridade. Portanto, sem retirar a qualidade de parte ao contra-interessado.
Lembrar ainda que o CPTA separa, de modo nítido, a participação destes, da dos restantes terceiros (10º/8 e 320ºss CPC).
Por último, a doutrina alemã aprofundou o conceito de relação jurídica poligonal, da qual podem emergir os litígios que justificam as posições dos contra-interessados. A conclusão a que chega a nossa doutrina, sobre estas correntes é que se torna possível seguir, nas relações jurídicas poligonais, um processo de individualização e concretização dos direitos subjectivos públicos dos particulares, de que sejam titulares os autores ou contra-interessados, em tudo semelhante as posições dos particulares nas relações verticais com a Administração.
No tocante ao recurso à noção de relação horizontal, alguns autores, a propósito da matéria dos contra-interessados defendem que a relação material controvertida entre autor e o contra-interessado é a relação horizontal, que não consubstancia uma relação concreta, equivalente as relações verticais entre particular e autoridade administrativa, antes o juízo comparativo de valoração realizado no plano normativo.
Para o futuro, o Professor Vasco Pereira da Silva propõe a revalorização da posição dos ‘impropriamente chamados terceiros’ no CA, como sujeitos principais dotados de legitimidade activa e passiva, tratados ao nível das regras gerais do CPTA.

Bibliografia
Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Adiministrativo, Almedina, 2010.
Aroso de Almeida, Mário, O Novo Regime do Processo  nos Tribunais Administrativos
Chancerelle de Machete, Rui, Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano
Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009

Joana Beirão 19656